Comparação da Proteção do Utilizador Profissional e do Consumidor nas Plataformas Digitais

Doutrina

No passado mês de agosto, foi publicado em Diário da República o Decreto-Lei n.º 68/2023, de 16 de agosto, que vem, finalmente, estabelecer coimas para o incumprimento dos  deveres previstos no Regulamento (UE) 2019/1150 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019 relativo à promoção da equidade e da transparência para os utilizadores profissionais de serviços de intermediação em linha (Regulamento).

Este Regulamento concentra, num único documento, matérias que, no que à proteção do consumidor diz respeito, estão distribuídas por inúmeros diplomas europeus (nomeadamente, as Diretivas (UE) 2019/771 e (UE) 2019/770, a Diretiva (UE) 2019/2161 e o Regulamento (UE) 2022/2065), que estão atualmente refletidos nos mais variados diplomas nacionais.

Assim, o presente texto propõe-se a comparar a proteção conferida aos consumidores com aquela conferida aos utilizadores profissionais de serviços de intermediação em linha.

Em primeiro lugar, cumpre esclarecer qual o papel que, em termos práticos, cada um destes intervenientes tem na relação triangular típica das plataformas digitais. Para tal, o exemplo que se afigura como típico será o das plataformas digitais de transporte, como é o caso da Uber ou da Bolt. Nessa sede, o consumidor será o cliente, o utilizador profissional o condutor e o prestador de serviços de intermediação em linha a plataforma.

Quanto ao regime que protege os utilizadores profissionais, este prevê, à semelhança do que decorre do direito do consumo, deveres de transparência na comunicação por parte dos prestadores de serviços de intermediação em linha (doravante “plataforma”).

Destaca-se, em especial, a necessidade de as cláusulas contratuais gerais estarem disponíveis em local acessível em todas as fases da relação contratual, incluindo em momento prévio à contratação.

Por outro lado, no que ao conteúdo mínimo das cláusulas contratuais gerais diz respeito, é possível afirmar que, quanto a determinados tópicos, o legislador foi mais longe na proteção do utilizador profissional, conferindo-lhe um direito à transparência quanto à afetação dos direitos de propriedade intelectual. Ainda no tópico da proteção da propriedade intelectual do utilizador profissional, o legislador adotou um papel protecionista, ao munir o utilizador profissional de conhecimento quanto ao regime aplicável às informações fornecidas ou geradas pelo próprio, no contexto do serviço de intermediação em linha.

Ao contrário do que se poderia esperar, não são raros os tópicos em que a proteção do utilizador profissional vai além da proteção do consumidor.

Outro exemplo prático desta abordagem, é o requisito, imposto pelo Regulamento, de as plataformas notificarem, num suporte duradouro, os utilizadores profissionais de qualquer proposta de alteração das suas cláusulas contratuais gerais.

Ainda que esta seja a abordagem de muitas empresas, de facto não existe na jurisdição portuguesa uma obrigação tão expressa quanto esta, que imponha a comunicação de alterações em formato duradouro. É facto que o próprio regime das Cláusulas Contratuais Gerais acaba por, indiretamente, obrigar a uma tal comunicação, por decorrência dos deveres de comunicação e informação. Sem prejuízo, não vigora entre nós uma obrigação expressa e direta que imponha uma tal comunicação em formato duradouro aquando de uma alteração das cláusulas.

Em termos práticos, a consequência que daqui advém é que haverá sempre margem para a empresa levar a tribunal a questão da comunicação efetiva dos típicos “termos e condições” a um consumidor. Por outro lado, quanto aos utilizadores profissionais, por decorrência da norma sob análise, ainda que tal opção não esteja, obviamente, proibida, existindo uma norma expressa a determinar a forma de comunicação de alterações às cláusulas, a predisposição de uma empresa para disputar o tema em tribunal será certamente mais reduzida.

Em contraste, encontramos também no âmbito do diploma que nos ocupa, direitos que podem beneficiar o consumidor. Prevê o Regulamento que as plataformas devem garantir que a identidade do utilizador profissional seja claramente visível, espelhando o disposto no artigo 45.º n.º 1 alínea b) do Decreto-Lei n.º 84/2021 de 18 de outubro. Também as obrigações de transparência quanto às classificações, vertidas no artigo 5.º do Regulamento, são semelhantes às aplicáveis à plataforma face ao consumidor, tendo estas obrigações sido introduzidas no direito do consumo por decorrência da transposição da Diretiva (UE) 2019/2161, relativa à defesa dos consumidores.

Destaca-se ainda uma outra obrigação, prevista no Regulamento, ilustrativa da opção do legislador de proteger de forma mais afincada o utilizador profissional do que o consumidor. O artigo 4.º do Regulamento limita a discricionariedade de a plataforma restringir, suspender e cessar a própria prestação de serviços. No fundo, para lançar mão da opção de restrição, suspensão ou cessação dos serviços a determinado utilizador profissional, a plataforma deve fundamentar e esclarecer o utilizador, bem como respeitar um pré-aviso de 30 dias (no caso da cessação).

Por fim, merece destaque o robusto procedimento interno de tratamento de reclamações que o legislador incumbe a plataforma de disponibilizar ao utilizador profissional, sendo este também um elemento sem paralelo no direito do consumo.

Quer o Regulamento, quer o diploma nacional de execução, encontram-se em pleno vigor e preveem coimas que poderão ir até ao valor de 5.000.000 euros.

No fundo, é possível concluir que o legislador europeu considerou que a posição frágil do utilizador profissional merece especial cuidado nos ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros, tendo conferido a profissionais informados, que agem para fins relacionados com a sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional, uma proteção mais abrangente do que ao consumidor, que em muitos casos, poderá dispor de menos informação do que o próprio utilizador profissional.                

Para os entusiastas do mundo das plataformas digitais que tenham interesse em explorar as obrigações legais impostas à parte B2B da relação triangular, recomenda-se a leitura do seguinte texto, que aborda o recente Digital Markets Act, onde são estabelecidas “regras harmonizadas que assegurem para todas as empresas (…) a disputabilidade e a equidade dos mercados no setor digital em que estejam presentes controladores de acesso, em benefício dos utilizadores profissionais e dos utilizadores finais”. Este diploma, ainda que preveja também obrigações para a fração B2B da relação triangular, restringe o seu âmbito de aplicação aos grandes players do mercado.

Modalidades afins de jogos de fortuna ou azar – um regime de incerteza

Legislação

Sorteios ou giveaways, concursos publicitários e de conhecimento são algumas das mais conhecidas modalidades afins de jogos de fortuna ou azar, com as quais o consumidor se cruza no seu dia-a-dia, através dos mais variados suportes publicitários.

No fundo, trata-se de “operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico predeterminado à partida”, conforme dispõe o art. 159.º, n.º 1 do Decreto-Lei 422/89, de 2 de dezembro (“Lei do Jogo”).

Assim, de acordo com esta definição, estão sujeitos ao regime das operações sob análise, não apenas os sorteios onde o elemento de sorte é predominante, como aqueles frequentemente organizados por marcas de produtos de cosmética, e publicitados por influenciadoras digitais, mas também todas as demais iniciativas, que atribuem prémios aleatórios de diferentes montantes e características, já que, também nesses casos, estará presente um elemento de sorte no que ao prémio a atribuir diz respeito.

Neste contexto, importa notar que o regime em questão é particularmente restritivo da liberdade dos operadores económicos, já que prevê uma proibição geral da exploração destas modalidades, por parte de entidades com fins lucrativos. Sem prejuízo, estão excecionados desta proibição os concursos de conhecimentos, passatempos ou outros, organizados por jornais, revistas, emissoras de rádio ou de televisão, bem como os concursos publicitários de promoção de bens ou serviços.

Acontece que a lei não define expressamente concursos publicitários de promoção de bens ou serviços, o que, na prática, esvazia de sentido útil a proibição referida, uma vez que qualquer ação deste género, levada a cabo por uma empresa com fins lucrativos, terá necessariamente a finalidade de promover bens ou serviços. Assim, bastará ao operador promover a ação num formato de concurso publicitário, para que a proibição mencionada não se lhe aplique.

Não obstante, está legalmente prevista uma barreira adicional, desta vez com um sentido prático inerente. Nomeadamente, por forma a levar a cabo uma modalidade afim de jogo de fortuna ou azar, os operadores económicos terão que obter uma autorização por parte da entidade competente, a qual avaliará a conformidade do regulamento da operação com as leis e diretrizes formais e estruturais aplicáveis.

É precisamente neste ponto que o regime aplicável às operações sob análise acaba por levantar mais questões.

Em primeiro lugar, como consequência de uma alteração ao regime em discussão, levada a cabo por meio do Decreto-Lei n.º 98/2018, de 27 de novembro, a entidade competente para autorizar deixou de ser a Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna (SGMAI), para passar a ser o presidente da respetiva câmara municipal (quando os jogos estejam circunscritos à área territorial do município), ou o presidente da câmara municipal da situação da residência ou da sede da entidade que procede à exploração da operação (quando não circunscritos à área territorial do município).

Sucede que, apesar de a transferência de competências se ter tornado efetiva a 1 de janeiro de 2021, facto é que muitos dos municípios ainda não regulamentaram as condições em que irão autorizar os regulamentos que lhes sejam apresentados, tarefa que lhes cabe, nos termos da Lei do Jogo.

Assim, o clima de incerteza neste contexto é acentuado, o que poderá levar a situações de incumprimento por parte das empresas (as quais poderão estar sujeitas à coima legalmente aplicável), e consequente desproteção do consumidor, que será alvo de práticas comerciais especialmente atrativas, sem que as mesmas sejam controladas por quem de direito.

Especialmente no contexto televisivo, não são raras as vezes em que o consumidor é alvo de práticas comerciais particularmente intrusivas da sua decisão de contratar, sendo estas, também não raramente, enquadráveis no contexto das práticas comerciais desleais. Um tema já analisado de forma mais aprofundada no blog, e consultável aqui.

Tal como referido no texto para o qual se remeteu, mantemos o entusiasmo enquanto aguardamos a intervenção do Grupo de Trabalho para a Revisão do Regime dos Concursos e Passatempos, conforme disposto no Despacho n.º 1620/2021, de 11 de fevereiro.

De notar que a intervenção deste grupo ambiciona implementar medidas de três ordens: proibir os concursos que recorram a números de telefone com custos acrescidos (os típicos 760 e 761), rever o regime de fiscalização das modalidades afins de jogos de fortuna ou azar e proibir a utilização de cartões de débito como prémios neste contexto.

Importa notar que apesar de desejada, a atualização deste regime está já atrasada, uma vez que resulta do Despacho sob análise que o Grupo de Trabalho constituído deveria apresentar conclusões capazes de implementar os objetivos propostos até ao dia 15 de abril de 2021.

A Garantia dos Non-Fungible Tokens: realidade ou ficção?

Legislação

Numa realidade em que a tecnologia está cada vez mais presente nas nossas vidas, o diálogo entre o consumidor e o mundo digital tornou-se constante.

Se o consumidor, em contexto offline, já se encontra numa posição de desequilíbrio em relação ao profissional, é facto incontornável que os elementos característicos do ciberespaço (como a falta de contacto físico entre as partes, frequentemente acompanhada da impossibilidade de negociar sobre as condições do contrato a celebrar), adicionam uma camada de complexidade à relação contratual.

Para complicar este cenário, vigora entre nós uma incerteza generalizada sobre a aplicabilidade de determinados diplomas desenhados para o contexto offline às atividades prosseguidas por meios digitais.

Sem prejuízo, ainda que se conceba a aplicação de tais diplomas a atividades levadas a cabo em contexto online, estará sempre presente o risco de desadequação dos elementos legais, já que estes foram geralmente pensados para se aplicarem a situações em que o consumidor tem facilidade de acesso às instalações do operador económico.

Em especial, ocupa-nos, por ora, o quadro legal previsto para as desconformidades entre o bem e o contrato, i.e., as garantias. Concretamente, serão analisados os casos em que poderá haver tal desconformidade entre o bem e o contrato, quando o bem ou conteúdo se trata de um produto artístico digital, nomeadamente um Non-Fungible Token (NFT).

Quanto à definição e enquadramento do que será afinal um NFT, não sendo este o tema que ora nos ocupa, remeto para um outro texto, já publicado no Blog, que poderá ser consultado aqui.

Os NFTs, bem como a informação disponível relativamente à obra e ao artista, estarão, por definição, alojados num link.

Todos os utilizadores da World Wide Web saberão que não é rara a ocasião em que um determinado nome de domínio acaba por direcionar para o vazio, ilustrando apenas uma mensagem de erro informático, tal como melhor se expõe aqui.

Nos casos em que a venda de NFTs é feita entre um consumidor e um profissional, não será esta uma verdadeira situação de desconformidade do bem com o contrato, nos termos do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril?

O Decreto-Lei n.º 67/2003 define, como âmbito de aplicação, os contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores. Assumindo o critério subjetivo do âmbito de aplicação como dado adquirido, respondo afirmativamente à questão colocada.

Sem prejuízo, o Artigo 1.º-B do diploma, nomeadamente na sua alínea f), define “garantia legal” como sendo o compromisso assumido pelo profissional em relação à conformidade de um bem de consumo com o contrato.

Neste contexto, sucede que a alínea b) do mesmo artigo define “bem de consumo” como sendo um bem corpóreo.

Ora, sabemos que um bem digital não será corpóreo, a menos que o profissional o faça acompanhar da sua versão impressa.

Quererá isto dizer que o diploma sob análise não deverá aplicar-se caso o profissional decida não fazer acompanhar o bem digital de uma versão impressa? Caso se entenda afirmativamente, será justo que em consequência da atitude de querer entregar um extra ao consumidor resulte uma obrigação de garantia que, de outro modo, não se aplicaria?

A meu ver, o diploma não previu a sua aplicação a bens ou conteúdos digitais incorpóreos, pelo simples facto de estes não serem uma realidade tão presente nas nossas vidas, aquando da sua redação – aplicando-se o mesmo raciocínio à Diretiva 1999/44/CE, que foi o “diploma-mãe” do Decreto-Lei sob análise.

Assim, numa interpretação teleológica do diploma, que assume um cunho protecionista do consumidor e que pretende harmonizar o nível de proteção conferido por todos os Estados-Membros, não se compreende como poderão os bens digitais, no contexto atual, receber um tratamento diferente dos restantes bens, especialmente quando tal tratamento é menos protecionista do consumidor.

Deste modo, no período de transição em que os NFTs já estão presentes na vida dos consumidores, mas o processo de transposição da Diretiva (UE) 2019/770 e da Diretiva (UE) 2019/771 ainda não foi concluído, considero que a abordagem mais prudente será assumir a aplicação do regime legal das garantias à venda destes ativos digitais, promovida entre um profissional e um consumidor.

Quando o projeto de Decreto-Lei que transpõe a Diretiva em questão passar a vigorar, algumas das dúvidas ora analisadas serão, na sua essência, esclarecidas.

Caso consideremos os NFTs enquanto conteúdos ou serviços digitais, i.e. “um serviço que permite ao consumidor criar, tratar, armazenar ou aceder a dados em formato digital” ou “um serviço que permite a partilha ou qualquer outra interação com os dados em formato digital carregados ou criados pelo consumidor ou por outros utilizadores desse serviço”, nos termos do projeto de Decreto-Lei já conhecido pelo público e consultável aqui, o profissional ficará indubitavelmente adstrito ao cumprimento da obrigação de fornecimento de conteúdo.

Esta obrigação consiste, nos termos do projeto de Decreto-Lei, na disponibilização dos conteúdos digitais ou serviços, bem como dos meios necessários para aceder a estes ou os descarregar, incluindo através de uma instalação física ou virtual escolhida por este para o efeito.

A iliteracia financeira enquanto vulnerabilidade dos consumidores

Doutrina

Nas últimas semanas, tem tido destaque o tema da iliteracia financeira explorada como oportunidade de negócio, em termos que podem não ser os mais favoráveis para o consumidor.

A prática de comercialização de cursos sobre a monetarização dos mercados financeiros, à semelhança da comercialização de dicas de investimento, com promessas de um enriquecimento rápido, tem-se vindo a verificar há já algum tempo, afetando em grande escala as camadas mais jovens.

No fundo, um dos elementos-chave destes modelos de negócio está nas fortes técnicas de persuasão empregues na divulgação de cursos ou mesmo dicas de investimento, que levam muitas vezes os jovens a acreditar que, ao pagarem o respetivo preço, terão uma espécie de acesso automático ao estilo de vida luxuoso, despreocupado e livre de responsabilidades que os influenciadores digitais responsáveis pela divulgação dos materiais ilustram nas suas redes.

Por um lado, quanto ao comportamento dos influenciadores digitais em geral, é certo que por vezes a publicidade desenvolvida através das redes sociais desrespeita em larga escala os princípios resultantes do Código da Publicidade.

Neste contexto, cabe relembrar que tais princípios serão de aplicar também no universo digital, devendo assim, a título de exemplo, toda a mensagem publicitária ser devidamente identificada enquanto tal, obrigação que decorre do princípio da identificabilidade.

Por outro lado, no âmbito das estratégias de divulgação utilizadas em sede das plataformas digitais frequentadas por utilizadores de todas as idades, importa mencionar o princípio da veracidade, conforme disposto no art. 10.º do Código da Publicidade, que impõe como regra que a publicidade respeite a verdade, não deformando os factos.

Por outro lado, a propósito da publicidade especificamente feita a cursos, dispõe ainda o Código da Publicidade, no seu art. 22.º, que a mensagem publicitária deve indicar a natureza dos cursos, bem como a expressão “sem reconhecimento oficial” sempre que este não tenha sido atribuído pelas entidades oficiais competentes.

Numa perspetiva de direito criminal, será pertinente referir os crimes de burla, burla qualificada e usura. Nesse sentido, cabe relembrar que, para que determinada conduta seja qualificável enquanto crime, é necessário que o agente cometa um facto típico, ilícito, culposo e punível.

De acordo com o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 663/98, de 25 de novembro de 1998, proferido no processo n.º 235/98, e relatado pelo Cons. Sousa e Brito, “a burla, a extorsão e a usura, caracterizam-se por o prejuízo ser causado pela própria vítima através da provocação ou exploração ilícitas pelo agente de um vício da vontade: o erro na burla, a coação na extorsão, a situação de necessidade na usura. (…) São necessárias circunstâncias adicionais que tornam socialmente tão grave a culpa do incumprimento que se torna necessária a intervenção do direito penal.”

Nomeadamente, no que ao crime de burla diz respeito (cf. art 217.º do Código Penal), trata-se de um crime semipúblico, pelo que o procedimento criminal depende de queixa. Ademais, em relação à conduta típica, são três os elementos a considerar: a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo; que tal enriquecimento seja obtido por meio de erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados pelo agente; e que tais factos provocados pelo agente determinem outrem à prática de atos que lhe causem, a si ou a terceiro, um prejuízo patrimonial. No fundo, para que o tipo de crime se preencha, será necessário que haja um nexo de causalidade forte entre o prejuízo patrimonial do ofendido e o enriquecimento do agente.

Por outro lado, provando-se que o agente pratica o crime de burla como modo de vida (não tendo para tal que se dedicar de forma exclusiva à prática do ato em questão, cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 16/06/2015 e relatado por Inácio Monteiro), ou mesmo que o agente, aquando da prática do ilícito, se aproveitou de situação de especial vulnerabilidade da vítima, nomeadamente em razão de idade, poderemos estar em face de um crime de burla qualificada, no âmbito do qual a moldura penal pode ir até aos oito anos. Neste caso, estamos perante um crime público, que como tal poderá ser investigado e submetido a julgamento pelo Ministério Público, mesmo sem ou contra a vontade do ofendido.

Ademais, cabe relembrar que o Código Penal prevê ainda o tipo de crime de usura, no seu art. 226.º, de acordo com o qual é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial, para si ou para outra pessoa, explorando situação de necessidade, anomalia psíquica, incapacidade, inépcia, inexperiência ou fraqueza de carácter do devedor, ou relação de dependência deste, prometa, sob qualquer forma, a seu favor ou a favor de outra pessoa, vantagem pecuniária que for, segundo as circunstancias do caso, manifestamente desproporcionada com a contraprestação. Neste caso, a intervenção do direito de ultima ratio deriva da necessidade de prevenção da exploração económica de um sujeito que se encontra numa situação de especial vulnerabilidade, sendo levado a acreditar pelo agente da prática do crime que será o negócio usurário que o levará a ultrapassar o seu estado de fragilidade.

Em suma, dúvidas não restam quanto ao facto de a iliteracia financeira ser uma questão bastante séria e capaz de influenciar em larga escala as decisões de contratar dos consumidores, especialmente nos casos em que estes não estão munidos de todas as informações necessárias para uma escolha informada.

A responsabilidade das plataformas digitais pela segurança dos consumidores – A propósito do Ac. do STJ, de 10/12/2020

Jurisprudência

Numa realidade em que a pegada digital de cada consumidor se tornou maior do que a sua pegada física, é no reino das plataformas que o consumidor se vê, de forma evidente, mais fragilizado.

Certo é que a corrida entre o direito e as tecnologias está desequilibrada desde o momento da partida. Todavia, há que notar que cada vez mais são feitos esforços para fornecer ao consumidor a rede de proteção que lhe é devida, tanto a nível legislativo, como jurisprudencial.

Por ora, em Portugal, a responsabilidade das plataformas vem regulada pelo Decreto-Lei n.º 7/2004, de 7 de janeiro, que transpôs para o direito interno a Diretiva 2000/31/CE.

Apesar de navegar nas redes sociais ser talvez o hobbie mais generalizado dos consumidores, as plataformas são, em regra, qualificadas enquanto meros prestadores intermediários de serviços, o que resulta na sua generalizada desresponsabilização.

Todavia, apesar de não estarem sujeitos a uma obrigação geral de vigilância sobre as informações que transmitem ou armazenam, ou a uma obrigação de investigação de eventuais ilícitos praticados no seu âmbito, os prestadores intermediários de serviços não estão isentos de deveres, sendo estes, por exemplo, o de informar as autoridades competentes sobre as atividades ilícitas que se desenvolvam por via dos serviços que prestam, o de satisfazer os pedidos de identificar os destinatários dos serviços com quem tenham acordos de armazenagem, o de cumprir prontamente as determinações destinadas a prevenir ou pôr termo a uma infração, bem como o de fornecer listas de titulares de sítios que alberguem, quando lhes for pedido.

Mas o que são afinal os prestadores intermediários de serviços em rede? De acordo com o disposto no art. 4.º-5 do diploma que regula o comércio eletrónico, serão prestadores intermediários de serviços em rede os que “prestam serviços técnicos para o acesso, disponibilização e utilização de informações ou serviços em linha, independentes da geração da própria informação ou serviço”. Nesta definição cabem então o Facebook, a Booking, o Instagram, o TikTok e muitos outros gigantes que dominam o mercado.

Enquanto entidades dominantes do oligopólio gerado em volta da atenção do consumidor, não estarão estas plataformas em posição de assumir uma maior responsabilidade pela segurança dos seus consumidores? Afinal, apesar de não serem elas as responsáveis pelos conteúdos partilhados, a verdade é que é devido à sua existência que o discurso de ódio tem um palco acessível a qualquer interessado, ou que qualquer um se pode tornar num revendedor de produtos falsificados sem comprometer a sua identidade.

O diploma português que regula o comércio eletrónico prevê três modalidades de serviços em rede: o simples transporte (art.º 13), a armazenagem intermediária (art.º 14) e a armazenagem principal (art.º 15). O véu da responsabilidade é mais denso nas últimas duas modalidades do que na primeira.

De facto, muito se tem escrito sobre os prestadores intermediários de serviços em rede, mas em termos nacionais, foi apenas a 10 de dezembro de 2020 que foi esboçada uma definição jurisprudencial para tal figura ambígua. Assim, e de acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10/12/2020, no âmbito do Processo n.º 44/18.6YHLSB.L1.S2, que teve como relator Ferreira Lopes, os prestadores intermediários de serviços em rede são, de facto “as pessoas, singulares ou coletivas, que intervindo de forma autónoma, permanente e organizada, criam e disponibilizam os meios técnicos para que um determinado conteúdo circule na internet”.

Neste Acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça veio desresponsabilizar uma sociedade de direito espanhol (a Ré), pelo uso, no seu sítio na internet, dos sinais distintivos de que a Autora é titular, sem as devidas autorizações necessárias para efeitos legais.

Uma vez que a Recorrente se dedica à “criação e desenvolvimento, alojamento, assessoria, gestão e exploração de páginas web, plataformas de formação e páginas de venda online e gestão de cobrança e pagamentos por conta dos seus clientes”, prestando serviços de intermediação, e não sendo responsável pelos conteúdos colocados nos endereços eletrónicos que detém, o Tribunal decidiu que a mesma deve ser classificada enquanto prestadora intermediária de serviços em rede, dado que “os serviços que presta são de ordem meramente técnica, (…) sem qualquer intervenção nos conteúdos da informação ou serviço, que eram da exclusiva responsabilidade do cliente”.

Assim, apesar de ser titular do site a partir do qual foi violado o direito da Autora, o Tribunal deliberou que a mesma não será responsável pelos conteúdos aí disponibilizados, o que só sucederia, à luz do princípio do art. 12.º, se de alguma forma participasse ou tivesse interferência sobre o conteúdo da informação transmitida ou armazenada. Ademais, nos termos do art. 16.º do diploma sob análise, a “Recorrente só seria responsável se soubesse ou devesse ter conhecimento da ilicitude da atividade ou informação, ou que a ilicitude fosse manifesta”, o que, na opinião do Tribunal a quo, não sucedeu.

Desta forma, regista-se mais uma decisão que propugna pela desresponsabilização das plataformas, ainda que neste caso, o alvo da decisão, não tenha sido um consumidor.

Impressiona, contudo, que o Tribunal não tenha analisado, para resolução desta questão, o que já muito foi discutido a nível europeu e, nomeadamente, pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).

A nível europeu, e conforme descrito supra, vigora a Diretiva 2000/31/CE, que naturalmente consagra o mesmo sistema de desresponsabilização que o diploma português que a transpõe.

Releva, para estes efeitos, o Processo C‑324/09 (L’Oréal v. eBay), que esclarece a definição do conceito de “ter conhecimento”, consagrado no art. 14.º-1 da Diretiva (e no 16.º-1 do Decreto-Lei 7/2004).

No fundo, o TJUE considera que, quando o prestador de serviços em rede, em vez de se limitar a uma prestação neutra, através de um processamento puramente técnico e automático dos dados fornecidos pelos seus clientes, desempenha um papel ativo suscetível de lhe facultar um conhecimento ou um controlo destes dados, não deverá ser considerado enquanto prestador intermediário e beneficiar da isenção de responsabilidade, nos termos previstos na legislação que aborda o comércio eletrónico. Ademais, é suficiente para levantar este véu de irresponsabilidade que tal operador tenha tido conhecimento de factos ou de circunstâncias com base nos quais um operador económico diligente devesse constatar a ilicitude em causa. Para estes efeitos, o TJUE esclarece que o “conhecimento”, neste caso deve ser interpretado no sentido de que se refere a qualquer situação na qual “o prestador em causa toma conhecimento, por qualquer forma, desses factos ou circunstâncias, abarcando as situações em que o operador de um sítio de comércio eletrónico toma conhecimento da existência de uma atividade ou de uma informação ilegais na sequência de um exame efetuado por sua própria iniciativa, e em que a existência dessa atividade ou dessa informação lhe é notificada”. Neste segundo caso, se é verdade que uma notificação não pode automaticamente retirar o direito à isenção de responsabilidade sob análise, podendo as notificações revelar-se insuficientemente precisas e demonstradas, não é menos certo que constitui, regra geral, um elemento que o juiz nacional deve levar em conta para apreciar, tendo em consideração as informações transmitidas ao operador, a realidade do conhecimento por este dos factos ou das circunstâncias com base nos quais um operador económico diligente devesse constatar a ilicitude.

Por outro lado, há que referir que o considerando 42 da Diretiva 2000/31/CE esclarece que as situações de exoneração de responsabilidade abrangem exclusivamente os casos em que a atividade da sociedade da informação exercida pelo prestador de serviços reveste carácter “puramente técnico, automático e de natureza passiva”, o que implica que o referido prestador de serviços “não tem conhecimento da informação transmitida ou armazenada, nem o controlo desta”.

Neste contexto o TJUE defendeu, no âmbito dos processos apensos C‑236/08 a C‑238/08 (Google France v. Louis Vuitton) que, a fim de verificar se a responsabilidade do prestador de serviços da sociedade de informação poderia ser limitada, “deve examinar‑se se o papel desempenhado pelo referido prestador é neutro, ou seja, se o seu comportamento é puramente técnico, automático e passivo, implicando o desconhecimento ou a falta de controlo dos dados que armazena”.

Sem prejuízo destas conclusões jurisprudenciais, a Comissão Europeia, na sua Comunicação da Comissão sobre a Economia Colaborativa, avança que a isenção de responsabilidade sob análise permanece limitada à prestação de serviços de armazenagem e não se estende a outros serviços ou atividades realizadas pelas plataformas. Tal isenção não exclui, nomeadamente, a responsabilidade decorrente da legislação de proteção de dados pessoais, no que diz respeito às atividades da própria plataforma.

Acresce que o simples facto de uma plataforma também realizar outras atividades – além de fornecer serviços de armazenagem – não significa necessariamente que essa plataforma já não possa contar com a isenção de responsabilidade relativamente aos seus serviços de armazenagem. Em qualquer caso, a forma como as plataformas concebem o seu serviço da sociedade da informação e implementam medidas voluntárias para combater conteúdos ilegais em linha continua a ser, em princípio, uma decisão empresarial e a questão de saber se beneficiam da isenção de responsabilidade intermédia deve ser sempre avaliada caso a caso.

Em termos conclusivos, é possível assumir que tanto a Diretiva 2000/31/CE como o Decreto-Lei 7/2004 estão largamente desatualizados em relação à realidade em que vivemos. Estes instrumentos foram pensados e construídos numa época em que o Tik Tok ainda não dominava os dias de grande maioria dos menores de idade ou em que ter uma página de Facebook ou Instagram não era requisito essencial para construir uma amizade.

Neste contexto, tem grande relevo o Digital Services Act, uma iniciativa recente da Comissão Europeia, já analisada por nós em posts anteriores: aqui, aqui e aqui.

Novamente os saldos, as promoções e as liquidações – Decreto n.º 3-B/2021, de 19 de janeiro

Legislação

Em face da evolução da atual pandemia, o Governo tem vindo a adotar, progressivamente, medidas para o combate à propagação do vírus Sars-CoV-2, adaptadas às necessidades de controlo da mesma.

Ainda há uns dias anunciávamos aqui no blog as medidas previstas no Decreto-Lei n.º 6-E/2021, de 15 de janeiro, em matéria de saldos. O art. 11.º deste diploma veio flexibilizar o anúncio de saldos, determinando que a comercialização em saldos que se venha a realizar durante o período de suspensão das atividades e encerramento dos estabelecimentos no âmbito do estado de emergência não releva para efeitos de contabilização do limite máximo temporal previsto legalmente para a venda em saldos, de 124 dias por ano, nos termos do art. 10.º-1 do Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março.

Pois bem: poucos dias depois temos uma nova regra emergencial sobre anúncio de reduções de preços, incluindo saldos, promoções e liquidações, esta de sentido contrário.

Assim, no passado dia 19 de janeiro, foi publicado em Diário da República o Decreto n.º 3-B/2021, que altera o anterior Decreto n.º 3-A/2021, de 14 de janeiro.

O Decreto n.º 3-B/2021 adita um novo art. 15.º-A ao Decreto n.º 3-A/2021: “é proibida a publicidade, a atividade publicitária ou a adoção de qualquer outra forma de comunicação comercial, designadamente em serviços da sociedade da informação, que possam ter como resultado o aumento do fluxo de pessoas a frequentar estabelecimentos que, nos termos do presente decreto, estejam abertos ao público, designadamente através da divulgação de saldos, promoções ou liquidações”.

Para compreender o art. 15.º-A é essencial segmentá-lo em três partes distintas.

Em primeiro lugar, determina-se a proibição da publicidade, da atividade publicitária ou de qualquer outra forma de comunicação comercial, designadamente em serviços da sociedade de informação.

O conceito de publicidade, bem como o de atividade publicitária, conforme dispostos nos arts. 3.º e 4.º, respetivamente, do Código da Publicidade, são bastante abrangentes. Será considerada publicidade a comunicação, no âmbito de uma atividade comercial, industrial, artesanal ou liberal, com o objetivo de promover, com vista à sua comercialização ou alienação, quaisquer bens ou serviços.

Na segunda parte do artigo restringe-se o seu âmbito, referindo-se que a proibição nos termos expostos se aplica “designadamente em serviços da sociedade de informação, que possam ter como resultado o aumento do fluxo de pessoas a frequentar estabelecimentos que (…) estejam abertos ao público”.

Os serviços da sociedade de informação são, nos termos legais, quaisquer serviços prestados à distância, por via eletrónica, no âmbito de uma atividade económica. Assim, sendo claro que os estabelecimentos atualmente abertos ao público não poderão promover, por meios publicitários, os seus produtos online, dúvidas restam quanto à permissibilidade de práticas publicitárias desses mesmos bens ou produtos nos próprios estabelecimentos.

Se recorrermos à ratio do diploma, i.e., a necessidade de diminuição da circulação dos cidadãos, por forma a mitigar os contágios do vírus SARS-CoV-2, facilmente percebemos que o artigo sob análise tem como objetivo desencorajar que os consumidores se dirijam a espaços físicos de comércio ou prestação de serviços, por incentivo de mensagens publicitárias.

Assim, poderia defender-se, quanto à publicidade feita dentro dos próprios estabelecimentos abertos ao público, que, não tendo os consumidores acesso às promoções via online, não seriam motivados a dirigir-se ao estabelecimento por força das práticas promocionais aí praticadas (porque não teriam conhecimento das mesmas antes de entrar no estabelecimento), mas antes por necessidade estrita de acesso a bens ou serviços essenciais.

A última parte da norma sob análise vem estreitar, mais uma vez, o seu âmbito de aplicação, dizendo que é designadamente proibida a divulgação de saldos, promoções ou liquidações que possam ter como resultado o aumento do fluxo de pessoas a frequentar estabelecimentos abertos ao público.

Resta a dúvida sobre a consagração, neste trecho, de um numerus clausus de práticas publicitárias proibidas.

Desta forma, as conclusões a tirar serão que, por um lado, aos estabelecimentos encerrados ou cujas atividades tenham sido suspensas por ordem do Governo não será de aplicar a presente proibição, beneficiando estes do regime mais favorável consagrado recentemente para os saldos (e que já foi analisado aqui).

É também de concluir que a proibição sob análise não será de aplicar aos operadores económicos que, apesar de estarem, de momento, abertos ao público, promovam práticas comerciais com redução de preço aplicáveis exclusivamente às compras através de plataforma online, contando que o processo de venda e pós-venda seja passível de ser concluído sem necessidade de contacto com o estabelecimento físico do operador económico.

É ainda clara a aplicabilidade da proibição de anunciar saldos, promoções ou liquidações em estabelecimentos abertos ao público, publicitando tais práticas com redução de preço online.

Restam dúvidas quanto a saber se a proibição aqui em causa se aplica, de facto, a toda a publicidade, ou antes, conforme descrito na respetiva epígrafe, apenas à publicidade a práticas comerciais com redução de preço.

Encerramento de estabelecimentos comerciais, garantias, trocas e saldos

Legislação

Na sequência da mais recente prorrogação do estado de emergência em Portugal, o Governo aprovou um conjunto de diplomas que regulam as medidas de combate à pandemia causada pelo vírus Sars-Cov-2.

Estando grande parte dos estabelecimentos comerciais encerrados, tornou-se imperioso agir com vista à proteção dos direitos dos consumidores e dos operadores económicos. Neste sentido, foi publicado o Decreto-Lei n.º 6-E/2021, de 15 de janeiro, prevendo um regime especial para as garantias e para a venda em saldos, cujo conteúdo passaremos a destacar de seguida.

Em primeiro lugar, o diploma estabelece um regime especial para as garantias, alterando provisoriamente o disposto no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril. Assim, quanto aos direitos de reparação, substituição, redução do preço e resolução do contrato, que assistem ao consumidor em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, estabelece-se a prorrogação do prazo para o seu exercício por parte do consumidor.

Há que notar que o prazo definido pelo Decreto-Lei n.º 67/2003 para o exercício dos direitos referidos é ora de dois meses a contar da data de deteção da desconformidade, desde que dentro do prazo de dois anos contados desde a entrega do bem, ora de um ano, desde que dentro do período de cinco anos contados nos mesmos termos, conforme se trate, respetivamente, de um bem móvel ou imóvel. Assim, por efeito do Decreto-Lei n.º 6-E/2021, caso este prazo termine durante o período de suspensão de atividades e encerramento de instalações e estabelecimentos, no âmbito do estado de emergência, ou nos 10 dias posteriores àquele, será prorrogado por 30 dias, contados desde a data de cessação das medidas de suspensão e encerramento.

Ademais, nos casos em que o operador económico atribua ao consumidor o direito a efetuar trocas ou até o direito a solicitar um reembolso mediante devolução dos produtos, o prazo para o exercício de tais direitos ficará também suspenso durante o período de encerramento de instalações e estabelecimentos e suspensão de atividades, no âmbito do estado de emergência.

Por outro lado, o Governo tentou também acautelar as legítimas expectativas dos operadores económicos. Assim, determinou que a venda em saldos que se venha a realizar durante o período de suspensão das atividades e encerramento dos estabelecimentos, também no âmbito do presente estado de emergência, não relevará para efeitos de contabilização do limite máximo temporal previsto legalmente para a venda em saldos, de 124 dias por ano, conforme resulta do art. 10.º-1 do Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março. Cumulativamente, o comerciante que pretenda vender em saldos durante tal período, estará dispensado da obrigação de emitir uma declaração à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), conforme previsto no n.º 5 do mesmo artigo.

De notar que esta iniciativa legislativa vem reproduzir algumas das medidas excecionais já aplicadas no âmbito do anterior confinamento, sobre as quais já nos tínhamos pronunciado em posts anteriores, que poderá consultar, respetivamente, aqui quanto aos saldos, e aqui no que às garantias diz respeito, para mais esclarecimentos.