Tsunami informativo, falta de leitura pelo consumidor e encargo pesado para as empresas

Doutrina

Em 2022, publiquei com A.R. Lodder, Professor da Vrije Universiteit Amsterdam (Países Baixos), o texto Online Platforms: Towards an Information Tsunami with New Requirements on Moderation, Ranking, and Traceability. Este artigo foi escrito no âmbito das atividades do Jean Monnet Centre of Excellence ‘Consumers and SMEs in the Digital Single Market (Digi-ConSME)’, dirigido pelo Professor Federico Ferretti, da Unidade de Bolonha.

Nos dias 2 a 4 de fevereiro de 2023, realizou-se o evento de encerramento do projeto, no qual participaram, além dos investigadores que contribuíram para as atividades do Centro, representantes das instituições europeias e de associações de consumidores e de pequenas e médias empresas.

O Professor Hans-Wolfgang Micklitz fez uma intervenção inicial desafiante, na qual identificou a crescente fragmentação do Direito do Consumo, por via de uma distinção cada vez maior entre consumidores, nomeadamente por meio da identificação de diferentes vulnerabilidades. Colocou, nomeadamente, a questão de saber se o conceito de pessoa jurídica, inexistente no Direito da União Europeia, está a ser preenchido por esta via.

No evento final, A.R. Lodder e eu apresentámos algumas conclusões do nosso trabalho.

Partimos de três pressupostos de base:

  1. Ninguém[1] lê os chamados “terms and conditions”, ou seja, a lista de cláusulas contratuais gerais constante de todos os sites e plataformas;
  2. O número de elementos de informações que deve ser incluído no processo de contratação pelo profissional e pela plataforma é cada vez mais abundante;
  3. É difícil para o profissional e para plataforma cumprir os deveres de informação, pois é difícil que, com tantos elementos de informação para transmitir, a informação possa ser clara e compreensível, como a lei exige.

A conclusão é a de que o sistema vigente não é bom nem para os consumidores, que não têm acesso efetivo à informação, nem para as empresas, que têm um encargo pesado e, na prática, impossível de cumprir, pois (quase) nenhum consumidor que use de comum diligência, adaptando a expressão constante do regime português das cláusulas contratuais gerais, toma conhecimento da informação em causa.

Coloca-se então a questão de saber se se pretende que a informação seja realmente dirigida ao consumidor concreto que está diante do profissional ou da plataforma, com vista a dela tomar conhecimento efetivo.

Temos de concluir que não, tendo em conta os três pressupostos enunciados. Os interesses dos consumidores podem ser indiretamente protegidos se considerarmos que em muitos casos o objetivo é, por um lado, obrigar o profissional a pensar sobre os assuntos em causa e ter de assumir por escrito a perspetiva adotada e, por outro lado, permitir o controlo por parte das entidades fiscalizadoras e reguladoras e o private enforcement, através de ações coletivas.

Torna-se então necessário distinguir entre elementos de informação que

  • têm de ser apresentados ao consumidor em destaque e no momento específico em que a questão se coloca; e
  • outros que podem sê-lo apenas nos chamados “terms and conditions”.

Garante-se, relativamente a estes últimos, (i) que a empresa tem uma política sobre o tema em causa, (ii) que ficam disponíveis para qualquer consumidor interessado, sendo que a maioria dos consumidores não está interessada, e (iii) que podem ser fiscalizados pelas entidades de supervisão e por associações de consumidores.

Por exemplo, no Digital Services Act (Regulamento dos Serviços Digitais), os novos elementos de informação relacionados com moderação de conteúdos (art. 14.º) e rastreabilidade dos profissionais (art. 30.º) estão no segundo grupo, enquanto parte dos relativos a publicidade (art. 26.º) e sistemas de recomendação (art. 27.º) estão no primeiro. Ficam aqui algumas ideias para reflexão e discussão. Embora o tema esteja longe de ser novo, parece não haver, em especial da parte das instituições europeias, vontade de fazer as mudanças necessárias para ajustar o direito à realidade.


[1] Digamos “quase ninguém”, por precaução (científica). Desde logo, leem os juristas que elaboram as cláusulas e os que pretendem, em caso de litígio, colocá-las em causa.

A Web Summit no presente do futuro do consumo

Doutrina

Estamos no day after da Web Summit que, como a maioria das pessoas em Portugal sabe, aconteceu em Lisboa, de terça a sexta. Neste fim de semana, na próxima semana e, se tudo correr bem, nos próximos meses, os contactos entre quem se encontrou por ali vão dar frutos contribuindo, entre outras coisas, para alterar as relações entre profissionais e consumidores, o modo como se consome e para trazer novos desafios ao Direito que tem de conseguir enquadrar e dar solução aos desenvolvimentos que os mercados vão impondo.

A Web Summit, já em pré-registo para 2023, fechou a 4 de novembro, com o Presidente da nossa República a cumprimentar Paddy Cosgrave, o CEO da organização, com um carinho que lhe pode ter deslocado um ombro e a anunciar-lhe que a feira vai ficar em Portugal até 2028, como está combinado, mas também depois, como espera que se irá combinar, com a promessa de aumento de construção do espaço, feita pelo mayor anterior, agora Ministro das Finanças, a dever ser cumprida pelo mayor atual, de nome Moedas, sob a atenta vigilância do PR, que do palco o avisou. Paddy, a tentar recuperar o equilíbrio do aperto de mão de entrada, do rombo que a pandemia fez nas suas finanças e do facto de ter de encaixar o evento numa área que afinal ainda não cresceu, não disse que sim, nem que não.

Para quem por lá andou é muito evidente que o espaço se torna exíguo para este retorno pleno ao presencial. Estiveram mais de 70.000 participantes de cerca de 160 países e o maior número de sempre de startups e investidores. Incluindo o Altice Arena, quatro pavilhões de consideráveis dimensões a que foi possível acrescentar um quinto improvisado, uns food trucks e mais umas barracas e estruturas amovíveis, ou não fosse uma feira, ainda assim a simples circulação é difícil, implicando uma permanente gincana, no perpetuo movimento que é necessário entre a visita às empresas, às mais de dez salas e palcos de Conferências e de apresentações que estiveram sempre a abarrotar e as reuniões entre os participantes. Ser o ponto de encontro é o mantra da Web Summit: “Where the tech world meets”.

A efervescência impera e, saudavelmente, são mais as perguntas que as respostas. Impera, também, a investigação. Toda a gente está a fazer investigação. Ligada a Universidades, a empresas, a ambas, a consórcios, a grupos de várias naturezas, investigar, desenvolver, experimentar, falhar, voltar a tentar é o dia a dia de quase todos. Qual vai ser o resultado é o que menos importa, porque é pelo caminho que vai acontecendo o que é relevante. Vive-se um ambiente de dúvida, mas metódica e criadora.

Se há uma certeza, é a de que é tudo muito rápido, sempre mais rápido, por várias razões. A principal, provavelmente, é o facto de que a par do desenvolvimento autónomo de tecnologias diferenciadas, se vai dando a interligação entre elas, o que provoca saltos, muitas vezes inesperados e intensos. É o que está a acontecer, por exemplo, com o denominado metaverso. A big data e a inteligência artificial aliadas à realidade virtual e aumentada, que foi caminhando para a denominada realidade mista, estão a levar a indústria e o comércio a novos modelos de negócio, alterando-se a relação entre profissionais e consumidores e a maneira como estes atuam no(s) mercado(s). Este assunto foi já abordado neste blog, a propósito dos smartglasses. A conjugação daquelas tecnologias, com as potencialidades da blockchain, o aumento da capacidade de computação e a imaginação, estão na base do enorme desenvolvimento daquilo a que se vem apresentando como o metaverso. Do que vimos, os mundos “alternativos”, virtuais, mistos, em que a realidade física se mistura com a realidade virtual, têm tudo para se tornarem incontornáveis. Saíram, definitivamente, do campo restrito dos jogos, para entrarem no do trabalho, da produção, da venda de bens e produtos, físicos e virtuais.

Naomi Gleit, responsável de produto da Meta (que veio a incluir o Facebook, o Instagram, o Whatsapp e mais uma série de outras empresas e/ou marcas), será provavelmente uma das pessoas mais habilitadas a explicar e no palco principal da Web Summit, fê-lo da melhor forma possível: com toda a simplicidade. Disse que o metaverso é o futuro da internet, que vamos experienciar a três dimensões. É isto. O metaverso é, pois, a internet a três dimensões. A gestora afirmou ainda, entre várias outras coisas muito interessantes, que “A Meta não vai ser dona do metaverso”, como nenhuma empresa é dona da internet e que o metaverso vai acontecer, com ou sem a Meta. Vão existir vários players no mercado a fornecer as plataformas e os serviços para que todos possam vir a usar.  

O tema das realidades virtual e aumentada, na internet, não é nada novo. Por certo que muitos se lembram do Second Life que, lançado em 2003, já tinha avatares e permitia uma vida paralela num mundo virtual. E, desde há vários anos que jogadores passam grande parte do seu tempo dentro de mundos virtuais em jogos crescentemente complexos e com ambientes próximos da “realidade real”. Também a experiência de óculos como os da Google, do Facebook ou outros é relativamente comum. Já para não falar do fenómeno incrível que dominou o verão de 2016 quando o mundo se lançou numa insana caça aos Pokemons, descarregando a aplicação para smartphone do jogo que ganhou 25 milhões de utilizadores no mês de lançamento. Nas suas casas e nas ruas, parques, campos e cidades pelo mundo fora, as pessoas corriam, de telefone em punho, em direção de desenhos animados virtuais, que através do telemóvel apareciam no mundo físico. Depois passou. No entanto, de um modo bastante corrente, estas tecnologias foram ficando, tornando-se quase banais. Muitos de nós usam, sem grandes reflexões prévias, aplicações de telemóvel para experimentar, online, roupa, ou como é que um móvel ficaria na sua sala, ou algo de semelhante. Isto é, seja em jogos, seja comercialmente, estas tecnologias vão estando incluídas no cardápio do cidadão comum que as usa porque é divertido e prático, sem pensar muito, nem antes, nem depois

O tema ainda será relativamente de nicho, mas do que foi possível observar, dir-se-ia que vai haver uma explosão de metaverso, muito rapidamente. Se vai ser um hype, ou se virá para ficar e dominar, é o que se verá. Por vezes há temas em grande ascensão que, de repente, estagnam. Foi o que aconteceu, por exemplo, com os veículos autónomos e com os robots “humanoides”, quem sabe se por evidenciarem demasiado a possibilidade de a humanidade ser ultrapassada por máquinas.

A humanidade não gosta de pensar nessas coisas e, talvez por isso e por não ser o melhor para o negócio, terá havido várias pressões para que fosse desconvidado o linguista, cientista cognitivo e filósofo Noam Chomsky que, juntamente com Gary Markus, da Universidade de Nova York foram “Desmascarar a grande mentira da Inteligência Artificial” (Debunking the great AI lie), no último painel da Web Summit, numa Altice Arena a rebentar pelas costuras. O foco foi nas habilidades do GPT-3 e de outros sistemas semelhantes de processamento de linguagem natural (NLP) que, laboriosamente, colocam palavras a seguir a palavras, naturalmente não percebendo patavina do que fazem, pelo menos do ponto de vista do que é a construção e a compreensão humana da linguagem. Quando uma pessoa diz ou escreve “Este quadro de Picasso é bonito” estará a equacionar o conceito de beleza, objetivo e subjetivo, a comparar a obra com outras que conheça do autor, com a de outros autores, com a realidade que representa e a pensar em mais uma infinidade de coisas que contribuem para o juízo que profere. Quando o GPT-3 diz ou escreve a mesma frase, está a contabilizar as vezes que foi dita e escrita a propósito do quadro em causa e a calcular, com base na quantidade descomunal de informação a que acede e que consegue processar, qual a melhor sucessão de palavras que pode apresentar no contexto em que é solicitado. O que pode dar sarilho.

São, pois, de grande pertinência as advertências em relação à Inteligência Artificial, principalmente quando foram feitas atempadamente, há décadas.

Com a convergência de tecnologias, o aumento da informação, da capacidade de computação e das habilidades da inteligência artificial, a caminho do metaverso, riscos e benefícios sobem de escala.

A proteção dos consumidores, vamos ver como se fará, mas poder-se-á admitir como provável a existência de novos elencos de informação, que o avatar do consumidor, como o próprio, aceitará. 

NAVEGAR (ONLINE) É PRECISO, VIVER (OFFLINE) NÃO É PRECISO: o preenchimento dinâmico e descritivo do conteúdo da vulnerabilidade digital

Doutrina

A velocidade das transformações do mercado de consumo é, sem dúvidas, um dos maiores desafios do Direito do Consumidor. Especialmente pelos influxos da internet, desde a sua concepção até o descobrimento de seu potencial comercial, surgiram novas tecnologias, novos modelos de negócio, novos meios de oferta e de contratação, assim como novas práticas relativas à publicidade, à perfilização e à organização de estruturas sociais e econômicas que daí emergem, as quais passam a operar por uma lógica data-driven mercantilizada de rede em um espaço (não físico) de fluxos informacionais[1].

Neste espaço de fluxos informacionais, navegar é preciso: qualquer interação ou relação estabelecida na ambiência digital é controlada, armazenada e gerenciada com táticas e técnicas para tornar a navegação e os layouts, bem como os outputs, ajustáveis e programáveis conforme os interesses de quem emprega a tecnologia. Nesse sentido, atributos, características, ânimos, personalidades e demais subjetividades são utilizadas na base da probabilidade e da estatística como parâmetros objetivos na condução de negócios.

Essa nova realidade permite a identificação de novos e renovados fatores que determinam assimetrias nas relações entre consumidores e fornecedores, cujo efeito é a impotência daqueles na dimensão digital do mercado. Relaciona-se com a falta do poder de barganha, com desigualdades estruturais ou outras condições sociais ou econômicas que facilitam uma sujeição estrutural do consumidor diante dos fornecedores.

A isso é dado o nome de vulnerabilidade. É descrita por Marques e Miragem, de modo geral, como um estado da pessoa de inerente risco, um sinal de confrontação excessiva de interesses, uma situação permanente ou provisória, individual ou coletiva, cujo efeito é o desequilíbrio de determinada relação ou interação e, consequentemente, o enfraquecimento do sujeito de direitos[2]. Se explorada, haverá o potencial de influenciar diretamente e negativamente a capacidade de o consumidor lidar satisfatoriamente com as práticas mercadológicas e com os contratos que estabelece, bem como de impactar a sua autonomia no que tange a tomar decisões de acordo com seus próprios interesses.

Conceituar a vulnerabilidade não é tarefa fácil, talvez nem mesmo seja necessária ou aconselhável. A dificuldade (e o perigo) em sua definição em matéria de consumo reside justamente na criatividade negocial e nas – sempre em evolução – necessidades do mercado, as quais são impostas contemporaneamente por intermédio das estruturas e das arquiteturas codificadas cada vez mais complexas, opacas e rapidamente modificáveis do ambiente online, bem como porque os consumidores se localizam em uma teia de relações e de instituições sociais diferentes, de modo que as vulnerabilidades também serão sentidas mais ou menos de modo particularizado – viver (offline) não é preciso –, o que contrasta como uma proposta de definição rígida ou mesmo atinente somente a determinados grupos de pessoas, como bem pontuou aqui no blog Sara Fernandes Garcia.

O caso brasileiro pode ser um bom exemplo para ilustrar essa questão. Lá, todos os consumidores pessoas naturais destinatárias finais fáticas e econômicas são vulneráveis por expressa determinação legal do Código de Defesa do Consumidor (art. 4º, I, CDC), cabendo ainda gradações ou sobreposições de camadas de vulnerabilidade em determinados casos, o que é conhecido como hipervulnerabilidade ou vulnerabilidade agravada. O CDC, sabiamente, não trouxe definições jurídicas acerca do conceito de vulnerabilidade, cabendo originalmente à doutrina e à jurisprudência a conformação do sentido e do alcance dinâmico do texto da lei, emprestando ao princípio certa plasticidade para a atualidade do diploma e para a tutela mais efetiva dos consumidores. 

Há, todavia, o Projeto de Lei (PL) n. 895/2021, em tramitação na Câmara dos Deputados, que se prestaria a estabelecer medidas de proteção do consumidor em situação de vulnerabilidade, pretendendo-se a alteração do CDC em diversos pontos.

O PL traria, desta maneira, uma definição: “entende-se por vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo a situação em que pessoas físicas, de forma individual ou coletiva, por suas características, necessidades ou circunstâncias pessoais, econômicas, educativas ou sociais, se encontrem, ainda que territorial, setorial ou temporalmente, em uma situação especial de subordinação, impotência ou desproteção que impeça o exercício de seus direitos como pessoas consumidoras em condições de igualdade”; na sequência, afirma que será prestada atenção especial a setores que “(…) contem com maior proporção de consumidores vulneráveis entre seus clientes ou usuários (…)” e que o direito básico à informação do consumidor (art. 6º, III, CDC), bem como no que concerne à oferta (art. 31, CDC), se dará “principalmente quando se tratar de consumidor vulnerável”. Há outras menções no PL de cunho (restritivo) semelhante.

Parafraseando Drummond de Andrade, “no meio do caminho tinha uma pedra”. E essa “pedra” nos excertos trazidos do texto proposto é justamente uma situação especial, maior proporção de consumidores vulneráveis e principalmente, que vai de encontro à principiologia do CDC ao cercar a vulnerabilidade a algumas hipóteses. A justificativa da proposta encontra respaldo na Nova Agenda do Consumidor da União Europeia que, segundo o PL, concebe “a vulnerabilidade como um conceito dinâmico, em que uma pessoa pode ser considerada vulnerável em determinado âmbito de consumo, mas não em outros, e em algum momento de sua vida, mas não em outros”.

A União Europeia tem, contemporaneamente, um quadro definido de consumidores que considera vulneráveis, como os doentes, idosos e crianças, e, nesse sentido, a Agenda se presta à expansão, não à contração (como seria se o PL fosse aprovado no Brasil). Ora, se todos os consumidores são vulneráveis, não há razão de elaborar uma proposta normativa no sentido de considerar apenas alguns em especial vulneráveis, contrariando todo um arcabouço técnico, dogmático e jurisprudencial. Paradoxalmente, o que pretende se efetivar, em verdade, está se limitando, embaraçando o movimento expansionista do reconhecimento de novos fatores que dão causa à vulnerabilidade, tema tão importante em tempos de transformação digital.

Isto não significa que o CDC ou quaisquer normas que se destinem à proteção dos consumidores não necessitem de atualização ou de revigoramento em atenção a determinadas temáticas e situações, como o mercado de consumo digital. Muito antes o contrário. A noção aberta da vulnerabilidade tem pelo menos dois propósitos fundamentais: um, de ordem conceitual (o quê), busca investigar os diversos fatores que levam à vulnerabilidade e; dois, de ordem prática[3] (para quê), busca identificar e criar instrumentais jurídicos e de políticas públicas para promover a resiliência dos sujeitos vulneráveis no mercado.

É claro, como operadores do Direito, lidamos com termos técnicos e precisos, mas também a interpretação aqui desempenha papel fundamental na concreção da vulnerabilidade porque ela é, de fato, dinâmica e polissêmica: devido às circunstâncias que se modificam rapidamente no mercado de consumo, quem hoje não é considerado vulnerável poderá amanhã o ser – o que está se tornando regra no mercado digital.

De acordo com uma equipa liderada por Micklitz[4], a noção de vulnerabilidade digital descreve o poder e a capacidade de atores comerciais de afetarem decisões, desejos, necessidades e comportamentos de uma maneira que o consumidor tende a não tolerar, mas também não está em posição de impedir. Serve, assim, para delinear um estado universal de indefesa e de suscetibilidade à exploração de desequilíbrios por parte do parceiro que em algum sentido é mais forte, o que é favorecido pela automação do mercado de consumo, pela sua arquitetura, pela utilização de dados pessoais e pela concentração das funções de gerenciamento e de condução da dimensão digital em plataformas[5].

Trata-se de uma vulnerabilidade facilmente percebida, passível de reconhecimento a partir de abordagens distintas[6]: a falta ou o excesso de informação; a falta de compreensão dos termos unilateralmente elaborados em termos e condições de uso e congêneres (se e quando lidos); a ausência ou insuficiência de mecanismos jurídicos aptos a tutelar o sujeito em meio digital; autoexecutabilidade de smartcontracts; a opacidade de sistemas, produtos e serviços inteligentes; a questão da privacidade; a falta de conhecimentos especializados nem só sobre o bem de consumo, mas sobre toda a jornada do consumidor; a prática de gamificação em plataformas para atrair a atenção e possibilitar condutas pré-programadas; a falta de familiaridade com aparatos digitais; iliteracia digital e analfabetismo funcional; dependência; a natureza cativa das relações com as plataformas, que possibilita o aperfeiçoamento de perfis dos consumidores e que poderão ser utilizados para a tomada de decisões automatizadas; discriminações por intermédio de Inteligência Artificial ou outras tecnologias, e influência injustificada nas decisões dos consumidores são alguns dos fatores que refletem o conteúdo a ser preenchido da vulnerabilidade digital. Daí que, possivelmente, a melhor abordagem para a vulnerabilidade não seja sua conceituação rígida. Mas, sim, sua descrição e o seu reconhecimento a partir do refinamento de fatores que dão causa a desequilíbrios e assimetrias nas relações entre fornecedores e consumidores, em geral, e no ambiente digital, em especial.


[1] CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 502.

[2] MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: RT, 2014. p. 52

[3] Assim, por exemplo, a atualização do CDC pela Lei do Superendividamento no Brasil: Art. 54-C. É vedado, expressa ou implicitamente, na oferta de crédito ao consumidor, publicitária ou não: (…) IV – assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio.

[4] MICKLITZ, Hans Wolfgang et al. Choice Architectures in the Digital Economy: Towards a New Understanding of Digital Vulnerability. Journal of Consumer Policy, 2021, 1-26.

[5] MARTINS, Guilherme; MUCELIN, Guilherme. Inteligência Artificial, perfis e controle de fluxos informacionais: a falta de participação dos titulares, a opacidade dos sistemas decisórios automatizados e o regime de responsabilização. In DE LUCCA, Newton et al. (orgs.). Direito e Internet: Internet das Coisas e Inteligência Artificial em Ambiente de Liberdade Econômica. 2022. No prelo.

[6] MIRAGEM, Bruno. Princípio da vulnerabilidade: perspectiva atual e funções no direito do consumidor contemporâneo. In: _____; MARQUES, Claudia; MAGALHÃES, Lúcia Ancona. Direito do Consumidor: 30 anos do CDC – da consolidação como direito fundamental aos atuais desafios da sociedade. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 249.

AR Smartglasses – a próxima dimensão do consumo

Doutrina

A realidade aumentada (Augmented Reality – AR) e a realidade virtual (Virtual Reality – VR) não são novas.

A primeira manifestação mais ampla da AR aparece sob a forma do protótipo de óculos que a Google lança em 2013 e que, em 2014, são disponibilizados ao grande público. Na altura causaram sensação, pensou-se que vinham para ficar, mas não foi o caso. Em 2015, a empresa anunciava que iria parar a venda e que logo se veria. Esse era o tempo dos wearables, tecnologia usável, que os mais abastados, curiosos e/ou adeptos do show-off consumiam e diligentemente transportavam e mostravam nas redes sociais que, embora ainda fraquinhas se as compararmos com a atualidade, já davam para fazer grande furor. Quem, nessa altura, queria usar e ostentar tecnologia tinha de carregar com ela, já que quase tudo vinha à parte. Aos óculos juntavam-se os relógios de fitness, as t-shirts medidoras, os GPS para o carro, os comandos para diversas coisas. Não era prático, mas antigamente, aí pelo início da segunda década do novo milénio, era assim.

A segunda manifestação de AR, mais ampla e socialmente incrível, poderá ter sido a caça ao Pokemon. O jogo foi lançado em julho de 2016 e tornou-se rapidamente um fenómeno viral, num instante enlouquecendo crianças e adultos por todo o mundo. Os jogadores convergiam como zombies para sítios reais, onde estavam bonequinhos virtuais, que pretendiam apanhar. As pessoas corriam em várias direções, saltavam vedações, eram atropelados por carros à frente dos quais se especavam, empurravam-se e lutavam para chegar a locais e saíam de casa à noite, porque parece que havia mais. Tudo isto para apanharem figurinhas virtuais, que não existiam fisicamente, mas eram vistos através de AR no espaço físico. Depois acabou, quase tão depressa como tinha começado. Um ano depois, a caça tinha perdido o interesse.   

Uma das grandes diferenças do primeiro para o segundo caso, estava no facto de o jogo dos Pokemons se fazer através do telemóvel, já bastante smartphone. Isto permitia que, sem a menor dificuldade, se usasse um dispositivo que, por essa altura, já ia sendo um prolongamento da pessoa. Alheio ao sucesso não terá sido também o facto de se tratar de um jogo. O ser humano, racional, ponderado, inteligente, dificilmente resiste a um bom jogo. Daí advém o sucesso da denominada gamification, de que falaremos noutra ocasião. 

Quanto à realidade virtual, nos seus primórdios, implicava o uso de uma espécie de óculos de mergulho e começou por ser usada em parques temáticos, dando-nos a ilusão de que estávamos efetivamente numa pista de corridas, numa montanha russa ou no espaço. Em usos mais profissionais ou culturais permitia, por exemplo, visitar uma casa ainda em projeto do arquiteto, a um monumento ou museu. Era uma espécie de 3D, revista e melhorada.

A distinção entre AR e VR, que podia não ser fácil em algumas situações, torna-se atualmente muito mais difícil, com o caminho para aquilo a que se poderá chamar realidade mista, em que ambas são usadas em simultâneo. Simplificando, podemos dizer que a AR tem a ver com o mundo real e acrescenta-lhe coisas do mundo virtual. Por exemplo, no âmbito do consumo, acontece quando “pegamos” num móvel que vimos online e o “experimentamos” na casa real em que estamos, ou fazemos qualquer outra experiência de “ver como fica” aquilo que queremos comprar. Continuando a simplificar, podemos dizer que a VR tem a ver com o mundo virtual e transporta-nos para cenários que nos parecem reais e com os quais interagimos. Por exemplo, no âmbito do consumo, podemos ser “transportados” para uma loja para ver os objetos que ali se vendem como se fossem reais, ou conduzir um automóvel num simulador que replica a condução como seria na estrada.

Não será difícil aceitar que experiências como estas, só possíveis devido aos avanços da tecnologia, alteram estruturalmente o modo de comprar e põem em causa conceitos basilares do Direito do Consumo.

Um novo passo nesta senda, e noutras, está a ser dado com a massificação, que se prevê próxima, do acesso a AR, VR e ao resultado da mistura de ambas.  

Por um lado, a Google, que como vimos largou os óculos, não largou as lentes e aposta nos smartphones, tanto para a AR, como para a VR. Veja, com os seus próprios olhos, garanto que vale a pena.

Por outro lado, o Facebook, em parceria com a Ray-Ban, criou uns óculos que em pouco se distinguem de normais óculos escuros, mas que têm duas camaras incorporadas, recebem comandos de voz e estão conectados com o smartphone.

São, pois, AR Smartglasses e se usarmos a imaginação para a qual, temos de reconhecer, há cada vez menos espaço de manobra, podemos começar a perspetivar a celebração de um contrato de compra e venda de um bem neste contexto.

Poderá ser algo como: vamos na rua, vemos uma bicicleta presa a um poste (eu sei que já não se usa, toda a gente anda de Gira, mas para este exemplo não serve), dizemos “Hey Facebook, take a picture” (em inglês ou, se como é provável, houver tradução simultânea incorporada, podemos dizer em português e em várias outras centenas de línguas). A foto vai direta para o telefone esperto que procura e encontra à venda bicicletas semelhantes. É-nos facultada informação sobre a loja mais próxima e indicado o caminho no mapa digital. Não nos apetece lá ir, pelo que seguimos a sugestão que, amável e desinteressadamente, nos é apresentada, entretanto, sobre a possibilidade de comprar online e receber em casa. Carregamos, aborrecidos, em vários “Aceito” relativos a diversas coisas que não sabemos quais são, nem nos interessam, nem interessam a ninguém, porque só queremos andar para a frente, o que conseguimos, não sem pelo caminho autorizar e prescindir de muito. Pagamos, eventualmente proferindo “Hey Facebook, paga”, coisa que o smarthphone fará sem dificuldade. Depois a bicicleta é entregue em casa, onde é arrumada, porque não precisávamos dela e porque não sabíamos que a podíamos devolver, o que estava num dos intermináveis clausulados subjacentes a um “Tomei conhecimento” em que também clicámos.

A AR Smartglasses parece poder trazer uma nova dimensão ao consumo. O consumidor vê, à venda ou simplesmente no espaço físico em que se está a movimentar, algo que lhe interessa. Pode com a combinação óculos/smartphone pesquisar imediatamente onde se vende, experimentar como fica, comprar, pagar e receber ou mandar entregar. A compra não se iniciou com o consumidor a dirigir-se a uma loja física ou online, ainda que precedida de publicidade “clássica”, em que já se está a considerar incluída a realizada através de meios digitais. A compra iniciou-se porque o consumidor, que ia simplesmente a existir, viu um bem de que gostou, que poderia nem estar à venda. Como tem consigo a tecnologia que lhe permite adicionar realidade virtual e informação à realidade física (AR) e, eventualmente, até entrar num ambiente digital (VR) em que consegue experimentar o que seria para si ter aquele bem, faz isso. Depois, compra-o, quer dirigindo-se à loja física que lhe é indicada online, quer acedendo instantaneamente à loja online.

Poderíamos ficar por aqui, com esta nova dimensão do consumo, se a tudo isto não estivesse agregado o objetivo de desenvolver um sistema de Inteligência Artificial com atributos muito especiais. Deste tema contamos tratar em próxima publicação. Para já, damos nota de que o Facebook passou ter um novo “Horizon” e a integrar, literalmente, o Meta(universo), como o seu criador, Mark Zukerberg explica neste video “Watch Mark Zuckerberg’s vision for socializing in the Metaverse”, mostrando magistralmente como a vida irreal pode, e vai, ser irresistível. Entretanto, milhares ou milhões de pessoas vão aderir às novas realidades aumentadas, virtuais e mistas, tão divertidas e úteis, vão mostrar como veem o mundo do sítio onde estão os seus olhos biológicos e, se tudo correr de feição, vão comprar ainda mais, quem sabe dizendo aos óculos que façam o favor de clicar “Sim” em todas as quadrículas de aceitação que forem aparecendo. Ou, porque não?, seria tão mais prático, pré-programando essa funcionalidade.  

Modalidades afins de jogos de fortuna ou azar – um regime de incerteza

Legislação

Sorteios ou giveaways, concursos publicitários e de conhecimento são algumas das mais conhecidas modalidades afins de jogos de fortuna ou azar, com as quais o consumidor se cruza no seu dia-a-dia, através dos mais variados suportes publicitários.

No fundo, trata-se de “operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico predeterminado à partida”, conforme dispõe o art. 159.º, n.º 1 do Decreto-Lei 422/89, de 2 de dezembro (“Lei do Jogo”).

Assim, de acordo com esta definição, estão sujeitos ao regime das operações sob análise, não apenas os sorteios onde o elemento de sorte é predominante, como aqueles frequentemente organizados por marcas de produtos de cosmética, e publicitados por influenciadoras digitais, mas também todas as demais iniciativas, que atribuem prémios aleatórios de diferentes montantes e características, já que, também nesses casos, estará presente um elemento de sorte no que ao prémio a atribuir diz respeito.

Neste contexto, importa notar que o regime em questão é particularmente restritivo da liberdade dos operadores económicos, já que prevê uma proibição geral da exploração destas modalidades, por parte de entidades com fins lucrativos. Sem prejuízo, estão excecionados desta proibição os concursos de conhecimentos, passatempos ou outros, organizados por jornais, revistas, emissoras de rádio ou de televisão, bem como os concursos publicitários de promoção de bens ou serviços.

Acontece que a lei não define expressamente concursos publicitários de promoção de bens ou serviços, o que, na prática, esvazia de sentido útil a proibição referida, uma vez que qualquer ação deste género, levada a cabo por uma empresa com fins lucrativos, terá necessariamente a finalidade de promover bens ou serviços. Assim, bastará ao operador promover a ação num formato de concurso publicitário, para que a proibição mencionada não se lhe aplique.

Não obstante, está legalmente prevista uma barreira adicional, desta vez com um sentido prático inerente. Nomeadamente, por forma a levar a cabo uma modalidade afim de jogo de fortuna ou azar, os operadores económicos terão que obter uma autorização por parte da entidade competente, a qual avaliará a conformidade do regulamento da operação com as leis e diretrizes formais e estruturais aplicáveis.

É precisamente neste ponto que o regime aplicável às operações sob análise acaba por levantar mais questões.

Em primeiro lugar, como consequência de uma alteração ao regime em discussão, levada a cabo por meio do Decreto-Lei n.º 98/2018, de 27 de novembro, a entidade competente para autorizar deixou de ser a Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna (SGMAI), para passar a ser o presidente da respetiva câmara municipal (quando os jogos estejam circunscritos à área territorial do município), ou o presidente da câmara municipal da situação da residência ou da sede da entidade que procede à exploração da operação (quando não circunscritos à área territorial do município).

Sucede que, apesar de a transferência de competências se ter tornado efetiva a 1 de janeiro de 2021, facto é que muitos dos municípios ainda não regulamentaram as condições em que irão autorizar os regulamentos que lhes sejam apresentados, tarefa que lhes cabe, nos termos da Lei do Jogo.

Assim, o clima de incerteza neste contexto é acentuado, o que poderá levar a situações de incumprimento por parte das empresas (as quais poderão estar sujeitas à coima legalmente aplicável), e consequente desproteção do consumidor, que será alvo de práticas comerciais especialmente atrativas, sem que as mesmas sejam controladas por quem de direito.

Especialmente no contexto televisivo, não são raras as vezes em que o consumidor é alvo de práticas comerciais particularmente intrusivas da sua decisão de contratar, sendo estas, também não raramente, enquadráveis no contexto das práticas comerciais desleais. Um tema já analisado de forma mais aprofundada no blog, e consultável aqui.

Tal como referido no texto para o qual se remeteu, mantemos o entusiasmo enquanto aguardamos a intervenção do Grupo de Trabalho para a Revisão do Regime dos Concursos e Passatempos, conforme disposto no Despacho n.º 1620/2021, de 11 de fevereiro.

De notar que a intervenção deste grupo ambiciona implementar medidas de três ordens: proibir os concursos que recorram a números de telefone com custos acrescidos (os típicos 760 e 761), rever o regime de fiscalização das modalidades afins de jogos de fortuna ou azar e proibir a utilização de cartões de débito como prémios neste contexto.

Importa notar que apesar de desejada, a atualização deste regime está já atrasada, uma vez que resulta do Despacho sob análise que o Grupo de Trabalho constituído deveria apresentar conclusões capazes de implementar os objetivos propostos até ao dia 15 de abril de 2021.

Squid Game – Uma narrativa sobre escolhas

Doutrina

Esta é a história sobre como, no último mês, uma plataforma de streaming conseguiu a proeza de colocar o mundo de olhos postos numa distopia sul-coreana, rejeitada por várias produtoras, ao longo de uma década[1].

Num total de nove episódios, “Squid Game apresenta concorrentes desesperados, com graves problemas financeiros, numa luta pela sobrevivência, ao longo de várias rondas compostas por jogos infantis mortais. O prémio final deste macabro concurso é de 45,6 mil milhões de wons (cerca de 32 milhões de euros) e só há lugar para um vencedor.

Esta alegoria, que pode ser encarada como uma abordagem crítica ao sistema capitalista, junta violência, sangue e gritaria, temperados com uma pitada de revivalismo, e assenta numa fórmula que, não sendo particularmente inovadora, obteve resultados surpreendentes.

A série, lançada pela Netflix a 17 de setembro de 2021, é já a mais vista na plataforma e mantém-se em primeiro lugar em mais de 80 países, incluindo Portugal.

Os efeitos da nova sensação do momento ultrapassam largamente a ficção. Desde a estreia da série, o modelo branco das sapatilhas clássicas da Vans, semelhante aos usados pelos protagonistas, teve um aumento de vendas na ordem dos 7800% e até a procura pelos famosos doces Dalgona sofreu um crescimento de 250%. Também o Duolingo registou um aumento de 76% nos novos utilizadores que procuram aprender coreano no Reino Unido, através da plataforma[2]. De resto, já aqui nos debruçámos sobre o impacto das produções da Netflix no consumo global, a propósito da série “Queen’s Gambit” (“Gambito de Dama”).

A 12 de outubro, a Netflix anunciava no Twitter que “Squid Game” tinha atingido oficialmente 111 milhões de espectadores em todo o mundo, tornando-se, assim, no seu maior lançamento de sempre. Mas o que explica que este k-drama, a par de tantos outros produtos disponíveis no catálogo, tenha sido visto por esta quantidade de utilizadores, convertendo-se num fenómeno de popularidade global sem precedentes?

Note-se que, neste caso particular, a Netflix não revelou as métricas usadas para chegar aos valores apresentados. Tradicionalmente, a plataforma mede a popularidade das suas séries e filmes contabilizando a quantidade de pessoas que interagiram com o conteúdo durante mais de 2 minutos nos 28 dias após a estreia, o que pode indiciar uma tendência para o inflacionamento destes números.

Ainda que o seu maior trunfo pareça assentar na disponibilização de uma grande quantidade e variedade de conteúdos, ao estilo “All you can eat”, em bom rigor, a Netflix destaca-se dos concorrentes no mercado do streaming por outra caraterística diferenciadora − a capacidade de fornecer sugestões personalizadas, em função dos perfis criados, com base nos dados recolhidos sobre as preferências dos utilizadores, com particular eficácia e precisão[3]. E nunca escondeu ao que veio. Nas palavras do seu CEO, Ted Sarandos”, There’s no such thing as a ‘Netflix show’. Our brand is personalization”.

Para tanto, a plataforma criou um sistema de recomendações, alicerçado num mecanismo de machine learning, que combina algoritmos de filtragem baseada no conteúdo e de filtragem colaborativa (é possível encontrar aqui uma explicação mais completa e detalhada sobre o funcionamento desta ferramenta).

A filtragem baseada em conteúdo recorre à experiência passada do utilizador. Os dados são recolhidos de acordo com as suas interações com a plataforma, revelando o histórico de visualização, as classificações que atribui aos títulos, em que dispositivos visualizou, a que horas e durante quanto tempo, por exemplo.

Para produzir recomendações e personalizar a experiência de um utilizador, estes dados são combinados com outros conjuntos de dados que contêm informações derivadas dos títulos de filmes e televisão oferecidos pela Netflix em todo o mundo, incluindo itens como o seu género, categoria, atores, realizador e ano de lançamento.

Já a filtragem colaborativa envolve o mesmo processo de extração de dados, mas efetua recomendações de acordo com uma combinação ponderada das preferências dos outros utilizadores, imitando, assim, as recomendações.

Numa fase inicial, as recomendações de filtragem colaborativa do sistema limitavam-se aos dados extraídos de utilizadores numa região ou país específico. Agora, as recomendações são retiradas das preferências de visualização dos utilizadores em todo o mundo e os utilizadores são agrupados algoritmicamente em “comunidades”, de acordo com os gostos revelados. Existem, atualmente, mais de 2000 clusters estabelecidos.

Ora, esta poderosa ferramenta de segmentação permite à Netflix conhecer os elementos dominantes nos perfis de consumo e apostar na compra e produção de conteúdos que correspondam exatamente a essas preferências, chegando a fórmulas de entretenimento que, no fundo, consistem em juntar os ingredientes certos.

Como qualquer mecanismo de machine learning, à medida que vamos fornecendo mais dados, através da utilização contínua do serviço, o sistema vai conhecendo mais sobre nós, aprimora-se e afina a personalização de conteúdos, a um nível cada vez mais detalhado e preciso. Nesse sentido, é possível que, através das técnicas de apresentação dos títulos, com base numa complexa combinação de preferências manifestadas, a “máquina” nos empurre para o que vamos consumir a seguir, condicionando previamente as nossas opções, com o benigno propósito de nos facilitar a vida e permitir poupar tempo de pesquisa.

De resto, a própria Netflix explica que para além de escolher os títulos que são incluídos nas faixas na página inicial, o sistema também ordena os títulos dentro da faixa, organizando depois as próprias faixas, recorrendo a algoritmos para proporcionar uma experiência personalizada. Assim, esclarece, “quando vê a sua página inicial da Netflix, os nossos sistemas ordenaram os títulos de um modo concebido para que lhe seja apresentada a sequência que lhe poderá dar mais prazer”, sendo que as faixas com a recomendação mais forte são apresentadas na parte superior e os títulos da esquerda para a direita em cada faixa, a menos que tenham sido selecionados os idiomas árabe ou hebraico no sistema.

Nada é deixado ao acaso. Recentemente, a Netflix passou a personalizar os “thumbnails associados aos filmes e séries. Assim, as imagens em miniatura que identificam e promovem o título mudam frequentemente, considerando uma combinação entre aquilo que o utilizador já viu com os demais títulos apresentados. No fundo, o produto é o mesmo, mas surge aos olhos de cada utilizador de forma distinta, com o propósito de o tornar visualmente mais apelativo, segundo a experiência de consumo de cada um, de forma a captar a sua atenção.

Em fevereiro de 2020, a Netflix introduziu mais um elemento no sistema de recomendações personalizadas à página inicial dos seus utilizadores: o Top 10. A lista, atualizada diariamente, ordena os 10 títulos mais vistos no país. Para além de colocar em evidência os produtos mais populares, esta ferramenta pode servir para os promover durante algum tempo e, assim, manter o ciclo de visualizações. Com efeito, se o utilizador, por mera curiosidade, visualizar o conteúdo destacado no Top 10, por mais de 2 minutos, na contabilidade da Netflix, já é um dos seus espectadores, o que pode contribuir para perpetuar a sua popularidade.

Graças ao manancial de dados que armazena sobre as nossas preferências de consumo, é possível que a Netflix saiba mais sobre os nossos gostos do que nós mesmos. O sistema de recomendação deu a esta plataforma um poder nunca antes experimentado pela indústria do audiovisual: o de prever e influenciar o que vamos ver a seguir, mantendo-nos alegremente numa bolha de consumo de entretenimento, especialmente desenhada para cada um de nós, tornando possível determinar com alguma segurança qual será o próximo hit[4].


[1] Numa entrevista ao The Korea Times, o autor, Hwang Dong-hyuk, revelou que a série, criada em 2008, foi rejeitada por vários estúdios e investidores, ao longo de 10 anos.

[2] A 13 de outubro, o Korean Cultural Center (KCC) nos Emirados Árabes Unidos organizou uma encenação dos jogos da série para duas equipas de 15 participantes, sem violência, em Abu Dhabi. O evento foi visto como uma forma de promoção da cultura sul-coreana. 

[3] Ainda que algumas das suas concorrentes tenham desenvolvido ferramentas semelhantes, a Netflix é a plataforma com maior número de utilizadores e consegue trabalhar com uma maior quantidade de dados sobre a utilização do seu serviço, potenciando, assim, os efeitos da personalização.

[4] Não deixa de ser paradigmático que, numa fase inicial, este serviço se tenha demarcado dos meios tradicionais pela ampla liberdade dada ao utilizador, oferecendo-lhe a possibilidade de ver quando e onde quisesse qualquer um dos muitos títulos disponíveis no catálogo.

A Garantia dos Non-Fungible Tokens: realidade ou ficção?

Legislação

Numa realidade em que a tecnologia está cada vez mais presente nas nossas vidas, o diálogo entre o consumidor e o mundo digital tornou-se constante.

Se o consumidor, em contexto offline, já se encontra numa posição de desequilíbrio em relação ao profissional, é facto incontornável que os elementos característicos do ciberespaço (como a falta de contacto físico entre as partes, frequentemente acompanhada da impossibilidade de negociar sobre as condições do contrato a celebrar), adicionam uma camada de complexidade à relação contratual.

Para complicar este cenário, vigora entre nós uma incerteza generalizada sobre a aplicabilidade de determinados diplomas desenhados para o contexto offline às atividades prosseguidas por meios digitais.

Sem prejuízo, ainda que se conceba a aplicação de tais diplomas a atividades levadas a cabo em contexto online, estará sempre presente o risco de desadequação dos elementos legais, já que estes foram geralmente pensados para se aplicarem a situações em que o consumidor tem facilidade de acesso às instalações do operador económico.

Em especial, ocupa-nos, por ora, o quadro legal previsto para as desconformidades entre o bem e o contrato, i.e., as garantias. Concretamente, serão analisados os casos em que poderá haver tal desconformidade entre o bem e o contrato, quando o bem ou conteúdo se trata de um produto artístico digital, nomeadamente um Non-Fungible Token (NFT).

Quanto à definição e enquadramento do que será afinal um NFT, não sendo este o tema que ora nos ocupa, remeto para um outro texto, já publicado no Blog, que poderá ser consultado aqui.

Os NFTs, bem como a informação disponível relativamente à obra e ao artista, estarão, por definição, alojados num link.

Todos os utilizadores da World Wide Web saberão que não é rara a ocasião em que um determinado nome de domínio acaba por direcionar para o vazio, ilustrando apenas uma mensagem de erro informático, tal como melhor se expõe aqui.

Nos casos em que a venda de NFTs é feita entre um consumidor e um profissional, não será esta uma verdadeira situação de desconformidade do bem com o contrato, nos termos do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril?

O Decreto-Lei n.º 67/2003 define, como âmbito de aplicação, os contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores. Assumindo o critério subjetivo do âmbito de aplicação como dado adquirido, respondo afirmativamente à questão colocada.

Sem prejuízo, o Artigo 1.º-B do diploma, nomeadamente na sua alínea f), define “garantia legal” como sendo o compromisso assumido pelo profissional em relação à conformidade de um bem de consumo com o contrato.

Neste contexto, sucede que a alínea b) do mesmo artigo define “bem de consumo” como sendo um bem corpóreo.

Ora, sabemos que um bem digital não será corpóreo, a menos que o profissional o faça acompanhar da sua versão impressa.

Quererá isto dizer que o diploma sob análise não deverá aplicar-se caso o profissional decida não fazer acompanhar o bem digital de uma versão impressa? Caso se entenda afirmativamente, será justo que em consequência da atitude de querer entregar um extra ao consumidor resulte uma obrigação de garantia que, de outro modo, não se aplicaria?

A meu ver, o diploma não previu a sua aplicação a bens ou conteúdos digitais incorpóreos, pelo simples facto de estes não serem uma realidade tão presente nas nossas vidas, aquando da sua redação – aplicando-se o mesmo raciocínio à Diretiva 1999/44/CE, que foi o “diploma-mãe” do Decreto-Lei sob análise.

Assim, numa interpretação teleológica do diploma, que assume um cunho protecionista do consumidor e que pretende harmonizar o nível de proteção conferido por todos os Estados-Membros, não se compreende como poderão os bens digitais, no contexto atual, receber um tratamento diferente dos restantes bens, especialmente quando tal tratamento é menos protecionista do consumidor.

Deste modo, no período de transição em que os NFTs já estão presentes na vida dos consumidores, mas o processo de transposição da Diretiva (UE) 2019/770 e da Diretiva (UE) 2019/771 ainda não foi concluído, considero que a abordagem mais prudente será assumir a aplicação do regime legal das garantias à venda destes ativos digitais, promovida entre um profissional e um consumidor.

Quando o projeto de Decreto-Lei que transpõe a Diretiva em questão passar a vigorar, algumas das dúvidas ora analisadas serão, na sua essência, esclarecidas.

Caso consideremos os NFTs enquanto conteúdos ou serviços digitais, i.e. “um serviço que permite ao consumidor criar, tratar, armazenar ou aceder a dados em formato digital” ou “um serviço que permite a partilha ou qualquer outra interação com os dados em formato digital carregados ou criados pelo consumidor ou por outros utilizadores desse serviço”, nos termos do projeto de Decreto-Lei já conhecido pelo público e consultável aqui, o profissional ficará indubitavelmente adstrito ao cumprimento da obrigação de fornecimento de conteúdo.

Esta obrigação consiste, nos termos do projeto de Decreto-Lei, na disponibilização dos conteúdos digitais ou serviços, bem como dos meios necessários para aceder a estes ou os descarregar, incluindo através de uma instalação física ou virtual escolhida por este para o efeito.

As Zonas Livres Tecnológicas e o modelo português de Regulatory Sandbox

Doutrina

Depois de um período de férias, o NOVA Consumer Lab retorna sua atividade com o ânimo renovado para discutir e analisar as novidades relacionadas ao Direito do Consumo. Na ordem do dia, trazemos, então, à tona, breve análise sobre as recém-aprovadas Zonas Livres Tecnológicas, que constituem um grande passo para a promoção de investimento estrangeiro e desenvolvimento nacional.

Atualmente, a vertiginosa velocidade de desenvolvimento de inovação exige que os Estados busquem ativamente compreender os riscos associados a esta realidade enquanto desenvolvem políticas e orientações apropriadas para colher benefícios, e , ao mesmo tempo,protegem seus consumidores. Apesar do empenho realizado, a verdade é que a existência de uma desconexão regulatória entre a realidade e aquilo que o Direito prescreve tem feito com que a sociedade, empresas, o mercado e até mesmo o próprio Estado desenvolvam o que alguns autores passaram a chamar de “incerteza ou medo regulatório”[1].

Nesse contexto, e também como medida de proteção dos consumidores, progressivamente, os operadores de Direito têm assistido à expansão do Regulatory Sandbox[2], como um regime alternativo para o desafio atual de adaptar a regulação deste “novo” mercado às inovações que no mesmo surgem diariamente. Inseridas neste ambiente, em uma dialética regulatória, as empresas podem desfrutar de uma ampla interação com os reguladores para o desenvolvimento controlado dos serviços e produtos oferecidos. Desta maneira, em momento posterior e de forma mais segura, as agências reguladoras poderão escolher “se”, “como” e “quando” conceder autorizações definitivas para o ingresso e atuação real destas empresas no mercado de consumidores.

Em uma iniciativa mais integrativa e abrangente em relação ao conteúdo, o Governo português tem discutido, desde 2020, as bases para o estabelecimento das chamadas “Zonas Livres Tecnológicas” (ZLT). Em termos genéricos, este espaço pretende ser uma estrutura geral e intersetorial para a experimentação de tecnologias inovadoras. Em outros termos, esta seria uma representação correspondente ao conceito do regime de sandbox regulatório.

Inicialmente, por meio da RCM n.º 29/2020[3], Portugal assumiu os seus anseios pela criação de um quadro legal comum “para os testes e experimentação em ambiente real no país de quaisquer novas tecnologias e soluções”, seja qual for a indústria, diferenciando-se assim das experiências de outros países que têm recorrido a este modelo para facilitar a inovação especificamente nas áreas econômicas, de regulação financeira e securitária.

Mais recentemente, o Governo aprovou e publicou no Diário da República, o enquadramento legal para as ZLT, consubstanciado no DL 67/2021[4], de 30 de julho, e onde restou estabelecido o regime e definido o modelo de governação para promoção da inovação de base tecnológica através da criação destas zonas.

Com 4 capítulos e 16 artigos, muitos dos quais concretizados por meio de inúmeras alíneas, a promulgação da normativa vem, apesar de com algum atraso, responder à tendência global de promoção da inovação e aumentar a transferência de conhecimento científico e tecnológico para a economia. Para além disto, Portugal ainda parece enxergar na criação das ZLT a possibilidade de aumentar a atratividade de projetos inovadores e investimento estrangeiro relacionado às tecnologias emergentes para o mercado nacional.

Atenta ao desenvolvimento dos novos stakeholders da economia global, e tentando recuperar o atraso de sua recente desatenção para com o setor ao longo dos últimos anos, em comparação ao restante da União Europeia, Portugal ainda anunciou em 2020 um plano de medidas de apoio às mais de 2.500 startups em Portugal, voltado à superação das consequências da pandemia de  COVID-19. O conjunto de medidas, no valor global superior a 25 milhões de euros, pretende representar, em média, 10 mil euros de apoio potencial para cada startup[5].

Vale aqui lembrar, por exemplo, que,  em larga medida, foi justamente na sequência da exímia criação de um sandbox regulatório pela Autoridade Financeira britânica, em 2015, que surgiu a Revolut, hoje uma das FinTechs mais valiosas da Europa.

Desta forma, apesar de algumas merecidas críticas, não se podem menosprezar os esforços legislativos realizados, uma vez que, inserida em um ambiente harmonizado, e com a já sólida presença das innovation hubs, a implementação das ZLT esteja voltada a mitigar as barreiras regulatórias à entrada em diferentes setores econômicos, reduzindo as incertezas e, sobretudo, potencializando a inovação em Portugal.

Esperamos em breve voltar com mais análises e novidades sobre o tema.


[1] Sobre o tema, há na literatura quem utilize a exata expressão “regulatory uncertainty and regulatory fear” para tratar do tema e de seus riscos. Vide QUAN, Dan (2020) “A few thoughts on regulatory sandboxes”, Technical report, Stanford PACS, Stanford University.

[2] A tradução literal da língua inglesa é, justamente, “caixa de areia”, em referência ao ambiente controlado em que as empresas se desenvolvem progressivamente sob supervisão direta das autoridades.

[3] Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/2020, de 21 de abril.

[4] Decreto-Lei n.º 67/2021, de 30 de julho. Pps. 29-37.

[5] Vide “Novas medidas de apoio ao ecossistema de empreendedorismo no valor de 25 milhões de euros. Comunicados da República Portuguesa. 21.abril.2021.

Do #NOFILTER ao #FILTERDROP: o esforço legislativo no combate à distorção digital da beleza

Doutrina

Tem circulado pela internet nos últimos dias a notícia de que fora sancionada no último dia 11, através do Decreto Legislativo 146 (2020-2021), a emenda à Lei de Marketing norueguesa, que “visa ajudar a reduzir a pressão corporal na sociedade devido às pessoas idealizadas na publicidade[1]. Após uma esmagadora votação de 72 votos a favor e 15 contra, a alteração legislativa passa a obrigar os influenciadores digitais a identificar as fotografias que tenham sido retocadas. As redes sociais visadas pela medida vão desde o Instagram, passando pelo Facebook, TikTok, Twitter e Snapchat.

Não é de hoje que o NOVA Consumer Lab tem trabalhado sobre a influência das redes sociais e das tecnologias sobre o comportamento social. Mais do que nunca, as redes sociais deixaram de ser meros instrumentos de compartilhamento de rotina e vida pessoal, com fotos de família, crianças e animais para ceder espaço ao lucro e à comercialização de produtos e serviços. Hoje, a regra é clara: curvas incríveis, padrões inigualáveis e um quase “conto de fadas da beleza”.

Por trás da perfeição dos corpos e lifestyle presentes nas mídias sociais, sob a égide da despretensiosa naturalidade, estão, entretanto, os patrocínios, parcerias, publicidades e, sobretudo, os inúmeros retoques às fotos e vídeos publicados por aqueles que ditam, para além de tendências, o novo ideal de vida e beleza.  Naomi Wolf, autora feminista e ativista dos direitos civis nos EUA, já em 1992 apontava o fato de o mito da beleza estar sempre prescrevendo comportamentos, não aparência[2]. Cada vez mais incomodados com os resultados sociais advindos dessa dita pressão estética, reguladores e legisladores pelo mundo estão a reagir à propaganda da perfeição aparente. Em fevereiro deste ano, logo após uma campanha que circulava dentro das próprias redes sociais (#filterdrop), a Advertising Standards Authority (ASA) – agência reguladora de propagandas do Reino Unido, aprovou uma legislação muito semelhante à norueguesa, e passou a determinar que os influenciadores digitais do país não fizessem mais uso de filtros “enganosos” em campanhas com produtos de beleza nas mídias.

Na França, desde 2017, vigora a determinação de obrigatoriedade da mensagem “photografie retouchée” para fotos que tenham sofrido qualquer tipo de alteração por programas digitais, demonstrando o esforço por tornar a mídia mais responsável em termos de publicidade.

Já na Noruega, a regra visa proibir que os influenciadores compartilhem imagens sem a devida sinalização de retoque e uso de filtros de beleza, os quais foram projetados para melhorar a aparência, incluídos como recursos comuns aos aplicativos de redes sociais atuais. Proposta pelo Ministério da Infância e da Família, a lei integra os esforços públicos de contenção da distorção de imagem no país, devendo ser seguida por todos influenciadores e celebridades que recebam pagamento para criação de anúncios nas redes com uso de técnicas de pré e pós-produção de imagem. O não cumprimento da lei pode implicar não somente em sanções pecuniárias, como também pena de prisão.

Acerca da construção de um ideal de beleza física e da influência das redes sociais sobre o bem-estar, uma pesquisa recente realizada pela Dove, e conduzida pela Edelman Data & Intelligence, com mulheres dos EUA, Reino Unido e Brasil, aponta que 84% das jovens com 13 anos já aplicaram filtro ou realizaram algum tipo de edição em suas fotos. Os dados divulgados pela pesquisa ainda tratam do fato de que mais da metade das mulheres se compara com as fotos publicadas na internet, além de temer publicar fotos de seu corpo em virtude dos padrões atualmente estabelecidos.

Em Portugal, a pesquisa aponta que 2 em cada 3 raparigas tentem mudar ou esconder pelo menos uma parte do corpo antes de publicarem uma fotografia sua, tal como a cara, o cabelo, a pele, a barriga ou o nariz, para removerem “imperfeições” e corresponderem a padrões de beleza irrealistas”.

As técnicas de produção que aprimoram ou alteram uma imagem com fins comerciais não são novidade no mundo da publicidade e exige atenção dos consumidores que, em razão dos retoques realizados, possam vir a ser enganados pelas alegações visuais exageradas ou, até mesmo, impossíveis de atingir. Em Portugal, o tema ainda não tem nenhum tipo de tratamento especial, embora vigore o Código da Publicidade e a Constituição da República Portuguesa estabeleça, no art. 60º, a proibição à publicidade considerada oculta, o que, em nossa visão, pode estar pressuposta em posts relacionados a produtos e serviços de estética, alimentação ou emagrecimento, por exemplo.

No mesmo sentido, a Entidade Reguladora da Saúde, em 2015, após a aprovação do Decreto-Lei n.º 238/20, tornou-se a entidade competente para a fiscalização em matéria de publicidade em saúde. A normativa é mais uma a prescrever a obrigatoriedade de clareza na publicidade, em seu art. 7.º, ainda que não trate especificamente da abordagem relacionada às redes sociais. 

Fato é que padrões de beleza sempre existiram e as características ideais variam ao longo da história. A despeito do esforço legislativo em favor do combate à distorção digital de corpos e da construção de padrões inatingíveis de beleza física, normalmente ocultos sob retoques e adaptações de imagem, é preciso notar que nem sempre o Direito terá as soluções para problemas cujas raízes são de cunho muito mais social, e psíquico, do que legal. Atualmente, até mesmo a mercantilização do movimento “body positive” pode impedir uma autêntica solução da questão que, historicamente, remonta ao uso de espartilhos, pílulas de arsênicos, maquiagens com chumbo e dietas absurdamente restritivas.

Ainda que os instrumentos regulamentares sejam necessários e possamos enxergá-los como meios hábeis a reduzir a pressão sobre a imagem física, é preciso compreender o espectro limitado dessas atuações e recordar que a idealização da beleza é muito mais profunda e complexa do que a utilização de filtros. Não podemos, não queremos e nem devemos nos reduzir a somente legislar o tema, quando é preciso discutir seriamente questões como representação, sexualização e objetificação do corpo como instrumento comercial, atentos ao fato de que redes sociais são mais do que redes de socialização, mas grandes empresas voltadas, sobretudo, ao lucro.


[1] Tradução da Decisão resumida da emenda legislativa à Lei de Marketing, 2009, da Noruega.

[2] WOOLF, N. O Mito da Beleza. Como as Imagens de Beleza são usadas contra as Mulheres. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro. Ed. Rocco, 1992


Non-Fungible Tokens (NFT) – o que são estes cripto-ativos? Mais uma bolha?

Doutrina

Para quem tem acompanhado a evolução dos mercados financeiros, commodities e cripto durante 2021, este tem sido um ano cheio de episódios que desafiam conceções básicas que temos como garantidas. Em Janeiro (e depois em Março, embora menos comentado na comunicação social), a saga do r/Wallstreetbets a tentar provocar um short squeeze das ações da GameStop, AMC (entre outros) chocou o mundo quanto à possibilidade de grupos de investidores amadores se conseguirem “coordenar” em redes sociais. Em Fevereiro, após o Elon Musk ter adicionado a hastag #bitcoin na sua bio do Twitter, o anúncio de que a Tesla tinha comprado mais de mil milhões de doláres em Bitcoins e que passaria a aceitar pagamentos feito com esta criptomoeda, provocou mais uma subida vertiginosa do seu valor, quebrando recordes.

Este tipo de notícias atraiu os olhares de muitas pessoas para os mercados de cripto-ativos, procurando replicar as inúmeras histórias de pequenos amadores que viraram milionários – acabando por descobrir os Non-Fungible Tokens (NFT), através de notícias de leilões milionários de arte em NFT, como o que ocorreu com a venda de um NFT representando o popular vídeo do Nyan Cat. Mas afinal, o que são NFT?

Non-Fungible Tokens (NFT) ou em português, “Tokens” (fichas) não fungíveis, são um tipo de cripto-ativo, um token criptográfico, que, como o nome indica, representa algo único, não fungível. Distinguem-se assim da generalidade das tokens já conhecidas do público em geral, como as criptomoedas e cripto-ativos emitidos em ICOs com obrigações de crédito associados (por exemplo). Como estes cripto-ativos estão registados em Blockchain, a sua infungibilidade é assegurada – devido ao carácter descentralizado da Blockchain e do sistema de certificação peer-to-peer, nenhum NFT pode ser duplicado, nem falsificado (na Blockchain) – se alguém quiser um determinado NFT, tem de conseguir que o seu detentor lhe transmita o ativo.

Qual é a utilidade dos NFT? A sua infungibilidade e a forma como podem ser transmitidos utilizando diversas plataformas interoperáveis entre si, permite que estes possam atuar como uma espécie de “propriedade virtual” – as transações de NFT são autenticadas e registadas na Blockchain, permitindo o tracking da detenção de cada ativo singular. Desta forma, NFT podem ser utilizados para funções onde a escassez é necessária, seja para criar itens digitais exclusivos, colecionáveis, itens em jogos criptografados e “arte criptográfica”. 

A ideia de ter itens digitais que podem ser colecionados, que são escassos e alvo de grande cobiça já é antiga – desde que há videojogos online que permitem aos jogadores possuir e trocar itens virtuais, que isto se verifica em parte, com o surgimento de autênticos mercados secundários (geralmente não oficiais), em que certos itens são vendidos por grandes quantias monetárias. A questão é que ao contrário dos NFT, esses items virtuais, mesmo quando são excecionalmente raros, não são “verdadeiramente” únicos e exclusivos – mesmo quando existe apenas um, a empresa que opera o videojogo online, o prestador de serviço nesta relação, tem a capacidade de facilmente criar mais itens iguais – pode “editar” o número existente deste item, copiando o item supostamente único. Além de aumentar a quantidade, as próprias funções e características (incluindo a possibilidade de serem transmitidos entre contas de utilizadores) podem também ser alteradas da mesma forma. Assim, esta suposta ideia de escassez é “artificial”, baseada na relação de confiança entre o operador da plataforma e a comunidade de jogadores. Um simples update pode mudar tudo, sem que os utilizadores o possam impedir – sendo que os Termos de Utilização geralmente permitem isto. Com a utilização da tecnologia Blockchain, estas preocupações (que não impediram o surgimento de um mercado que vale milhões), não se aplicam.

A utilização inicial de NFT foi em jogos de cartas “cripto-colecionáveis”, mas a sua grande popularidade recente deveu-se à sua relação com a Arte, nomeadamente a Arte Digital ou Criptográfica. Vários artistas e personalidades, desde o produtor de música “Deadmau5”, o bilionário Mark Cuban, Justin Roiland da série Rick and Morty, até à atriz Lindsay Lohan, têm emitido e vendido NFT, que vão desde um clip de vídeo do LeBron James num jogo de baskteball, a quadros e desenhos, tweets[1] e músicas. A emissão e venda de NFT foi uma importante fonte de receitas para diversos artistas impedidos de realizar as suas atuações presenciais devido à pandemia da Covid-19. 

É importante referir que quando algum artista vende um NFT de uma música original da sua autoria, o comprador não adquire quaisquer direitos de autor (o “Copyright”) da música em si[2], mas um ativo único, exclusivo, não replicável que apenas “representa” a música[3] – é a autenticidade e exclusividade que atrai os colecionadores. Qualquer pessoa pode ser proprietária de uma cópia da Mona Lisa, mas existe apenas um original autêntico que se encontra no Louvre. 

Em termos de Direito de Consumo Europeu – enquanto a proposta de Regulamento de Mercados de Cripto-ativos (MiCA) (que já abordamos neste Blog) não é aprovada – o contrato realizado para a obtenção de um NFT trata-se de um contrato para o fornecimento de conteúdos digitais, sendo de destacar a aplicação dos seguintes diplomas (assumindo que estamos perante uma relação profissional-consumidor): 

-Diretiva das Cláusulas Contratuais Abusivas (93/6/CEE); 

-Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (2005/29/CE);

-Diretiva dos Direitos dos Consumidores (2011/83/UE);

-Diretiva dos Conteúdos e Serviços Digitais (UE 2019/770)[4];

Quanto à Diretiva de Bens de Consumo (UE) 2019/771, é de destacar que mesmo quando bens de consumo são vendidos acompanhados por um NFT que representa aquele bem físico – o fenómeno da tokenização de certos bens exclusivoscomo ténis da Nike –  esta não será aplicável à transmissão do NFT. Neste contrato misto, o fornecimento do NFT é uma prestação separada da venda do bem, dado que o token não está incorporado ou interligado com o bem físico, segundo as definições do nº 3 e 4 do artigo 2º, e o nº 4 do artigo 3º da Diretiva da Conteúdos Digitais e os nº 5-B e nº 10 do artigo 1º e o nº3 do artigo 3º da Diretiva de Bens de Consumo. 

No entanto, mesmo com aplicação das normas destes diplomas, a melhor forma de proteção dos consumidores neste caso é o seu conhecimento sobre este tipo de ativos e a moderação das suas expetativas – neste momento há muitas pessoas que estão a adquirir estes ativos apenas com o objetivo de aproveitar o potencial especulativo do seu valor. Todas as semanas há vendas que batem recordes e é fácil cair no entusiamo. 

Existem receios fundados que algumas destas vendas podem frustrar seriamente as expectativas dos seus detentores – é possível que exista ou se esteja a formar uma “bolha” e que estes ativos estejam sobrevalorizados – da mesma forma que existem alegações similares para outros tipos de cripto-ativos, e mesmo quanto aos mercados financeiros tradicionais. A possibilidade de uma inflação galopante se abater sobre o dólar também alimenta estes receios.

A verdade é que os NFT representam várias realidades muito diferentes entre si, sendo difícil de falar destes no seu todo. Por um lado, é muito provável que vários estejam sobrevalorizados e que uma bolha rebente – de forma similar à especulação dos colecionadores no mercado de bandas desenhadas nos anos 90 – e ou que continuem a ser bastante procurados, mantendo-se o interesse – de forma semelhante ao mercado de venda de arte, onde os colecionadores continuam bastante participativos em grandes leilões


[1] Dominic Cummings, ex-conselheiro do Primeiro-Ministro do Reino Unido Boris Johnson, ameaçou vender um NFT de documentos cruciais que demonstravam a incompetência e negligência do governo britânico na gestão da pandemia.

[2] Exceto no caso dessa transmissão estiver mesmo incluída nas cláusulas do contrato celebrado com o comprador do cripto-ativo. Neste caso a transmissão dos direitos de autor acontece devido a esta cláusula, não devido à transmissão do cripto-ativo, são prestações diferentes de um contrato misto. 

[3] Geralmente, devido à quantidade de memória exigida, a própria obra de arte digital que o token representa não se encontra armazenada na Blockchain, mas num website, geralmente de terceiros. O token funciona assim como um certificado, um registo de detenção. Devido a isto, surge frequentemente o problema de links mortos (dead links, due to link rot), isto é, o website onde estava alojada a obra foi apagado ou o link foi alterado. 

[4] O problema dos links mortos será particularmente relevante para a questão da conformidade do conteúdo digital com o contrato, de acordo com os artigos 7º e 8º da Diretiva dos Conteúdos e Serviços Digitais.