Que razões levam a uma escassa aplicação prática do Direito do Consumo em Portugal?

Doutrina

Por Ana Rita Agostinho, Andreia Gouveia, Carolina Furtado, Catarina Teixeira, Jorge Morais Carvalho, Laís Tourinho, Madalena Duarte, Mafalda Coimbra, Margarida Riso, Mariana Pais Albuquerque e Rafael Carvalho

No dia 11 de setembro, teve início a Pós-Graduação em Direito do Consumo, organizada pela Jurisnova e pela NOVA School of Law. Os participantes foram desafiados, desde logo, a responder à seguinte questão: que razões levam a uma escassa aplicação prática do Direito do Consumo em Portugal? A escassa aplicação prática reflete-se não só na perceção de um nível de cumprimento baixo, em comparação com uma legislação especialmente exigente, mas também na pouca jurisprudência dos tribunais judiciais, poucos reenvios prejudiciais, poucas decisões administrativas.

Neste texto, responde-se a essa questão, salientando os aspetos que foram assinalados na análise feita pelos participantes[1].

Destaca-se, em primeiro lugar, o nível baixo de literacia da generalidade dos consumidores. Os consumidores estão, em geral, pouco (e mal) informados sobre os seus direitos e deveres. A formação escolar a este nível é deficiente, o que leva a que o problema comece, desde cedo, na vida das pessoas, acentuando-se ao longo da vida, tendo em conta a falta de formação para a cidadania em geral e para o consumo em especial.

A falta de conhecimento da legislação aplicável está ligada a este baixo nível de literacia, sendo acentuada pela dispersão legislativa característica do Direito do Consumo em Portugal. A existência de normas dispersas pelo ordenamento jurídico, de forma pouco clara e organizada, constitui um entrave ao seu conhecimento efetivo. Neste sentido, assinala-se as vantagens que poderiam advir da aprovação de um código ou, pelo menos, de uma lei mais ampla, que agrupasse e sistematizasse os principais direitos e deveres dos consumidores.

O desconhecimento é especialmente evidente no que respeita a consumidores mais vulneráveis, com especial destaque para os imigrantes, que têm uma dificuldade no acesso e na compreensão da realidade, por não estarem tão adaptados à cultura jurídica e prática das relações de consumo.

O nível de conhecimento dos profissionais é também bastante baixo. Com um tecido empresarial dominado por micro e pequenas empresas, os aspetos indicados a propósito dos consumidores aplicam-se, quase sem variações, aos profissionais. Assim, as pessoas que devem cumprir a generalidade das normas de Direito do Consumo também não as conhecem em toda a sua extensão e complexidade. A dispersão legislativa torna o Direito de difícil apreensão, verificando-se ainda algumas incongruências e contradições em diferentes diplomas legais. A codificação poderia contribuir para melhorar a literacia dos profissionais em matéria de Direito do Consumo. Outro aspeto assinalado é a necessidade de formação dos profissionais, em especial os que têm contacto direto com o público, que deveria ser incentivada ou mesmo tornada obrigatória.

Por vezes, mesmo que o profissional queira cumprir, não o consegue fazer, pois, além de ser difícil, mesmo para quem procure, saber ao certo o que tem de ser feito, o nível de exigência é muito elevado, passando por um conjunto excessivo de deveres, por vezes sem eficácia prática, com custos muito elevados (quer financeiros quer organizacionais). Uma microempresa não tem, muitas vezes, condições para dar resposta a tudo aquilo que lhe é, no Direito escrito (ou em teoria), exigido. O Direito em ação (ou na prática) acaba, depois, por isso, por corresponder a menos do que a lei prevê.

É igualmente assinalada uma questão cultural, ligada à anterior, com impacto no nível de cumprimento da legislação de consumo. Os consumidores e os profissionais concordam muitas vezes, ainda que tacitamente, que ao negócio em causa não é aplicável toda a legislação de consumo. Estamos a falar de relações pessoais existentes entre o cliente habitual e o dono do café, do cabeleireiro ou da papelaria, muitas vezes a única pessoa que nele trabalha, que levam a uma informalidade com efeitos na consciência dos direitos subjacentes. Um pouco como se, nesses pequenos estabelecimentos, as regras não fossem as mesmas. O traço cultural de não conflituosidade confrontativa leva também os consumidores a, muitas vezes, não assinalar o incumprimento da lei perante o profissional

Outro aspeto indicado é a insuficiência da fiscalização de práticas contrárias ao Direito do Consumo.

Por um lado, salienta-se a falta de meios humanos das entidades fiscalizadoras e a ausência de orientações claras e transversais quanto à aplicação das normas de consumo. Acresce a perceção da inexistência de uma ação concertada por parte das várias entidades competentes nos casos em que a competência é partilhada.

Por outro lado, realça-se a inexistência de sanções adequadas em caso de incumprimento dos deveres por parte dos profissionais.

Do ponto de vista das normas de direito substantivo, é realçada, em especial por comparação com o direito brasileiro, a circunstância de o ressarcimento por danos não patrimoniais ser raro nas relações de consumo em Portugal e de, nos casos em que são atribuídas indemnizações, o seu valor ser baixo. Também as dificuldades de prova, por parte do consumidor, não são porventura compensadas por uma suficiente inversão do ónus. A utilização de conceitos indeterminados em vários diplomas constitui igualmente uma dificuldade no que respeita à aplicação prática do Direito do Consumo.

A verificação de pouca jurisprudência dos tribunais judiciais em matéria de Direito do Consumo estará relacionada com o valor médio baixo dos litígios, o que leva a que os consumidores internalizem o risco e não recorram a tribunal. Os custos associados ao acesso aos tribunais judiciais não compensam, na maioria dos casos, a propositura da ação. Os centros de arbitragem têm um papel importante neste domínio, sendo importante que se tornem mais conhecidos e que as suas decisões sejam publicadas. Por fim, é ainda realçado o papel que poderão ter algumas vias privadas de resolução de litígios, como as redes sociais ou os portais dedicados a inserção de queixas pelos consumidores. Estes mecanismos podem ser, em alguns casos, mais eficazes, mas fazem de certa forma concorrência à própria legislação e à sua aplicação, pois não se baseiam, em regra e no essencial, na estrita consideração do Direito aplicável.


[1] Tratando-se de um texto coletivo, é possível que alguma ideia não corresponda à perspetiva de todos os autores.

TOI Story: Crónicas de uma Desvinculação

Consumo em Ação

Por Guilherme Bica Vicente, João Maria Dias e Sara de Almeida Patrício Mendes

Caso prático: No dia 1 de fevereiro, António recebeu uma chamada de um representante da TOI propondo-lhe a celebração de um contrato de prestação de serviços de comunicações eletrónicas incluindo internet, televisão, telefone e telemóvel.

Foi ainda informado de que, se aderisse de imediato, receberia totalmente grátis um telemóvel iCoiso XII, sendo a instalação do serviço (estimada pela empresa em € 300) também oferecida. O valor mensal seria, neste caso, de € 120, com um período de fidelização de 24 meses.

António aceitou de imediato. Recebeu, cinco minutos depois, uma mensagem SMS com a referência ao acordo e um pedido para confirmar se realmente pretendia aderir. António respondeu dizendo que sim.

No dia seguinte (2 de fevereiro), a TOI foi a casa de António instalar o serviço e este ficou operacional. No dia 8 de fevereiro, o telemóvel foi entregue também na casa de António. António reparou que se tratava de um iCoiso X (e não de um iCoiso XII conforme prometido). Estava tão atarefado que decidiu que reclamaria mais tarde.

No dia 21 de fevereiro, António ficou desempregado. Pretende reduzir despesas, pelo que o/a contactou nesse mesmo dia para saber se tem alguma forma de se desvincular do contrato celebrado com a TOI sem o pagamento de qualquer valor.

Resolução: Em primeiro lugar, cumpre fazer o enquadramento jurídico do contrato celebrado para depois invocar os diplomas de Direito do Consumo que são relevantes para o caso sub judice.

Ora, neste caso, estamos perante a celebração entre António (doravante “A”) e a TOI de um contrato misto com elementos de prestação de serviços/empreitada (em relação ao serviço de internet, da televisão e do telefone e respetiva instalação), de compra e venda (em relação ao telemóvel) e de locação (quanto aos bens associados aos serviços prestados – box, router, telefone fixo).

Por sua vez, trata-se de um contrato com período de fidelização, muito frequente no que respeita a contratos de comunicações eletrónicas, e que corresponde ao “período durante o qual o utilizador final se compromete a não denunciar um contrato ou a não alterar as condições acordadas” [art. 3.º, n.º 1, al. ee), da Lei n.º 16/2022, de 16 de agosto].

Nos termos da Lei n.º 16/2022, só é possível estabelecer-se períodos de fidelização mediante a atribuição de vantagens específicas ao consumidor (art. 131.º, n.º 4), que, neste caso, são, por um lado, a oferta do serviço de instalação (no valor de €300) e, por outro, a entrega “gratuita” de um telemóvel iCoiso XII.

No respeitante à oferta do telemóvel, desde logo, é importante esclarecer que, por muito que a TOI anuncie ao A que este irá receber o mesmo de forma totalmente gratuita, tal não significa que estejamos perante um negócio de doação que mereça autonomização.

Isto porque o consumidor não deixa de ter de pagar um preço para aceder ao conjunto de benefícios contratados (onde se inclui o telemóvel). Assim, a partir do momento em que A tem de pagar uma mensalidade de €120 durante 24 meses para que lhe seja entregue o telemóvel, não existe qualquer liberalidade.

Trata-se também de um contrato de adesão, na medida em que implica a aceitação por A de um conjunto de cláusulas não negociadas, predispostas unilateralmente pela TOI, pelo que o Decreto-Lei n.º 446/85 será também relevante.

Releva desde logo o Decreto-Lei n.º 84/2021, sendo que a sua aplicação (e dos demais diplomas) está dependente da circunstância de podermos classificar esta relação contratual como sendo uma relação de consumo. Olhando para a alínea g) do art. 2.º-A, é com efeito um consumidor ao abrigo deste diploma: trata-se de uma pessoa singular (elemento subjetivo) que celebra um contrato objetivamente abrangido pelo diploma e que atua com fins não-profissionais (elemento teleológico). Dada a informação da hipótese, é seguro assumir que os serviços e bens contratados são para uso doméstico.

Por sua vez, para compreender o elemento objetivo, devemos atender ao art. 3.º, n.º 1, alíneas a) e b). Daí, resulta que estão abrangidos os “contratos de compra e venda celebrados entre consumidores e profissionais” [al. a)] e os “bens fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada ou de outra prestação de serviços (…)” [al. b)]. Dito isto, o diploma é também aplicável aos bens fornecidos pela TOI como resultado dos serviços prestados, (router, box, telefone, entre outros). Já no que respeita à entrega do telemóvel, a conclusão de que este não se trata de um negócio gratuito autónomo permite a sua inclusão na alínea a) deste art. 3.º. Por fim, temos de averiguar se a TOI pode ou não ser considerada profissional nos termos da al. o) do art. 2.º (elemento relacional). Com a informação de que dispomos, tudo indica que a TOI se dedica à prestação deste tipo de serviços, atuando assim no âmbito da sua atividade profissional.

Concluímos, então, pela existência de uma relação de consumo nos termos do DL 84/2021. Por sua vez, sabemos que este diploma só se aplica aos contratos celebrados após 1 de janeiro de 2022, sendo que os negócios celebrados em data anterior continuam a ser regidos pelo já revogado Decreto-Lei nº 67/2003. Não tendo informação específica sobre o ano em que o contrato foi celebrado, vamos assumir que as datas mencionadas se referem ao presente ano de 2023. Assim, tendo o contrato sido celebrado a 1 de fevereiro de 2023, o DL 84/2021 é aplicável.

Estamos ainda perante um contrato celebrado por via telefónica, na sequência de um contacto promovido pela TOI, pelo que devemos ter também em conta o Decreto-Lei nº 24/2014.

Em primeiro lugar, no que se refere à definição dos elementos que compõem a relação de consumo, o DL 24/2014 aproxima-se do DL 84/2021, como podemos ver no art. 3.º, alíneas e) e n), do primeiro. Logo, os elementos subjetivo, teleológico e relacional estão também preenchidos no que toca a este novo diploma, sendo que só em relação ao elemento objetivo é que existem algumas particularidades, dada a natureza dos contratos que se incluem no âmbito objetivo de aplicação do diploma.

Em termos de âmbito de aplicação objetivo, este contrato é um contrato celebrado à distância (art. 2.º, n.º 1, do DL 24/2014). Isto porque se enquadra na definição prevista pela alínea h) do art. 3.º: além de o consumidor e o representante da TOI estarem fisicamente em locais diferentes, são utilizadas duas técnicas de comunicação à distância até à celebração do contrato (chamada telefónica e SMS). Por último, é necessário também que o contrato tenha tido por base um “sistema de venda ou prestação de serviços organizado para o comércio à distância”. Ora, o facto de o primeiro contacto ter partido do profissional por aquele canal específico é indicativo de que, à partida, se trata de uma forma utilizada pela TOI para contratar com os seus clientes.

Assim, concluímos que estamos perante um contrato celebrado à distância nos termos do DL n.º 24/2014 e que este diploma é aplicável.

Finalmente, a natureza dos serviços prestados pela TOI é relevante. Com efeito, os serviços de comunicações eletrónicas são abrangidos especificamente pela Lei n.º 23/96, nos termos do seu art. 1.º, n.º 2, al. d). De facto, o conceito de “comunicações eletrónicas” referido na lei é bastante amplo, incluindo a prestação de todo um conjunto de serviços que, na prática social, costumam ser contratados em “pacote” pelos consumidores, como sejam a própria Internet, televisão, telefone e telemóvel. 

Este diploma aplica-se às relações entre utentes e prestadores de serviços, nos termos dos n.os 3 e 4 do já referido art. 1.º. Assim, enquanto pessoa a quem são prestados serviços de comunicações eletrónicas, A é considerado utente (n.º 3). Já a TOI é considerada prestadora de serviços, enquanto entidade que presta o respetivo serviço de telecomunicações.

Feito este enquadramento e uma resenha dos principais diplomas aplicáveis, é agora altura de olhar para a questão colocada: poderá o A desvincular-se do contrato celebrado com a TOI sem o pagamento de qualquer valor?

Comecemos pelo DL 24/2014.

Primeiramente, em termos formais, cumpre-nos analisar os requisitos especiais de forma previstos no art. 5.º. Tendo sido a TOI a efetuar o primeiro contacto telefónico junto de A, não se aplica a exceção do n.º 8 deste artigo, pelo que o contrato está sujeito a forma especial: o consentimento escrito do consumidor. Tendo A confirmado a celebração do contrato via SMS, temos acordo escrito por parte do consumidor: o requisito especial de forma está preenchido, pelo que questões formais não poderão ser invocadas por A no sentido de se desvincular do contrato celebrado.

Como vimos, estamos perante um contrato misto: analisando as alíneas j) e k) do art. 3.º, é de destacar, aqui, que predomina o elemento do serviço, apesar de o contrato pressupor a aquisição do iCoiso XII. Isto porque o telemóvel assume uma relevância menor no plano estrutural do contrato, quando comparado com a prestação dos serviços. Isto terá implicações ao nível dos prazos para o exercício do direito ao arrependimento.

Não temos dados suficientes que indiquem a violação de deveres de informação pré-contratual (elencados no art. 4.º) pela TOI. Pode levantar-se a questão de saber se o dever de informação relativo ao direito de resolução [art. 4.º, n.º 1, alínea m)] foi cumprido pela TOI, uma vez que A não parece ter presente a ideia de que pode exercer, em abstrato, esse direito. Atendemos à circunstância de A estar em dúvida quanto aos fundamentos a que pode lançar mão para se desvincular do contrato: questão central do caso em apreço. É, por isso, possível suscitar a hipótese de que A não fora informado, nos termos da alínea m) do n.º 1 do art. 4.º, dado que, se a comunicação tivesse sido feita de forma efetiva, este estaria ciente dos direitos que lhe assistem. Esta hipótese poderia ter consequências ao nível do prazo previsto no art. 10.º, n.º 1, que veremos adiante. O incumprimento de deveres de informação (ainda que tivesse ocorrido e fosse relevante) não gera, em geral, qualquer invalidade, mas apenas sanções contraordenacionais (art. 31, n.º 2).

A figura central deste diploma é o direito ao arrependimento (direito de livre resolução), previsto no art. 10.º, idóneo para a pretensão de A de resolver o contrato sem quaisquer encargos.

A situação não se enquadra em qualquer exceção prevista no art. 17.º.

Ora, analisando o regime, temos três modalidades em termos de prazos de arrependimento: a alínea a), relativamente a contratos de prestação de serviços, e a alínea b), afeta aos contratos de compra e venda, são as que mais nos interessam, uma vez que estamos perante um contrato misto.

É controversa a questão de saber qual o elemento predominante deste contrato para efeitos do prazo para o exercício do direito de arrependimento: a vantagem concedida ao consumidor, nomeadamente, o iCoisoXII – quer pelo seu valor, preferência pessoal ou exclusividade da oferta – pode criar um incentivo acrescido à adesão a contratos de fidelização de serviços de telecomunicações, também com o propósito de aquisição do telemóvel. No entanto, entendemos que o elemento caracterizador do contrato se prende com a prestação dos serviços de telecomunicações, uma vez que, mesmo sendo relevante, a oferta do iCoiso XII surge como vantagem associada à fidelização ao serviço. Parece evidente que A queria, antes de tudo, poder usufruir de televisão, internet e serviços de telefone e telemóvel, sendo a oferta do iCoiso XII relevante, no limite, para a escolha da operadora ou da modalidade de fidelização. Assim, concluímos que a alínea b) do art. 10.º se deve aplicar ao caso sub judice.

Desta forma, A disporia de 14 dias para exercer o seu direito de livre resolução (partindo do pressuposto de que as partes não acordaram, nos termos do n.º 4 do art. 10.º, um prazo mais alargado), a contar da data da celebração do contrato, tal como consta do art. 10.º, n.º 1, al. a).

Tendo o contrato sido celebrado no dia 1 de fevereiro, a dia 21 já transcorrera o prazo para o exercício do direito de livre resolução. Conclui-se, então, que A também não poderia desvincular-se livremente do contrato por esta via.

É, no entanto, importante mencionar que, caso tenham efetivamente sido incumpridos os deveres de informação, pela TOI, constantes da alínea m) do n.º 1 do art. 4.º, o prazo para exercício do direito de resolução estender-se-ia para 12 meses, o que tornaria possível, nestes termos, a pretensão de livre resolução de A (art. 10, n.º 2).

Ressalve-se que, se A conseguisse exercer o direito de arrependimento, no que à prestação de serviços diz respeito e ocorrendo esta, pelos dados de que dispomos, desde o dia 2 de fevereiro (pelo que se presume o cumprimento do disposto no n.º 1 do art. 15) é pacífica a conclusão de que, tendo usufruído do serviço durante cerca de 19 dias, A deva compensar a TOI pelo período em que utilizou o serviço, nos termos do n.º 3 e para os efeitos do n.º 2 do art. 15.º. Assim, se €120 corresponderem a 31 dias, A deveria compensar a TOI em cerca de € 73,55. Não se abate, no montante total da prestação mensal, o valor – ou qualquer parcela do valor – do telemóvel que também é devolvido[1].

Avançando, no que respeita à obrigação de entrega do telemóvel, temos um problema de conformidade, na aceção do DL 84/2021, o qual merece uma análise mais detalhada. 

Nos termos do art. 5.º, incumbe ao profissional entregar ao consumidor bens que estejam em conformidade, de acordo com requisitos subjetivos e objetivos de conformidade.

In casu, as partes acordam expressamente na entrega de um telemóvel iCoiso XII, mas que na verdade é entregue um telemóvel de dois modelos abaixo: um iCoiso X. Trata-se assim de uma situação em que, claramente, o bem entregue pelo profissional não corresponde ao “tipo” previsto no contrato celebrado entre as partes [art. 6.º, al. a), do DL 84/2021], pelo que os requisitos subjetivos de conformidade não são respeitados. Apelamos a estes porque pode até acontecer que o telemóvel entregue não tenha qualquer problema, funcionando totalmente de acordo com o que é expectável daquele equipamento, do ponto de vista objetivo. Porém, haverá sempre um problema de conformidade, já que o consumidor não celebrou um contrato para a entrega de um iCoiso X, mas sim de um iCoiso XII. Concluímos, assim, pela existência de uma falta de conformidade entre a prestação realizada pelo profissional e o contrato celebrado com o consumidor. 

O profissional é responsável por qualquer falta de conformidade que se manifeste no período de três anos (art. 12.º, n.º 1), sendo que nos dois primeiros anos a contar da data da entrega do bem o consumidor beneficia de uma presunção bastante favorável: se a desconformidade se revelar nesse prazo, então esta presume-se existente à data da entrega do bem (art. 13, n.º 1). Num contexto em que o que está em causa é a entrega de um telemóvel de modelo diferente e em que, por isso, a falta de conformidade se manifesta imediatamente à data da entrega, não existem dúvidas de que a TOI é responsável. Pela sua própria natureza, a desconformidade só pode ser originária, pelo que a presunção do n.º 1 do art. 13 não pode ser ilidida pelo profissional.

Posto isto, a questão que agora se coloca é a seguinte: poderá esta falta de conformidade servir de fundamento à desvinculação unilateral do contrato por A, mediante o exercício de um direito de resolução [art. 15, n.º 1, al. c)]? 

Em primeiro lugar, existe uma hierarquização específica feita pelo art. 15.º em relação aos direitos que o consumidor pode exercer perante uma situação de desconformidade, nos termos da qual o recurso à resolução contratual é residual e só pode ocorrer com fundamento num dos pressupostos do n.º 4 do mesmo artigo, nomeadamente se não for possível proceder à reposição da conformidade do bem. Ainda assim, o art. 16.º prevê a possibilidade de o consumidor ultrapassar esta hierarquia, já que, se a desconformidade se manifestar no prazo de 30 dias após a entrega do bem, este pode solicitar, de imediato, a sua substituição ou a resolução do contrato (última parte). Ademais, no nosso caso, o bem foi entregue a 8 de fevereiro e a falta de conformidade manifestou-se precisamente nesse mesmo dia, já que A reparou desde logo que o bem não estava de acordo com o modelo que lhe havia sido prometido. Consequentemente, o prazo previsto no art. 16 foi plenamente respeitado, podendo A, à partida, solicitar a imediata resolução do contrato.

O problema está em que devemos olhar para os direitos que o DL 84/2021 atribui ao consumidor, perante uma situação de desconformidade, à luz da relevância que aquela assume no plano estrutural do contrato, entendido na sua globalidade. Neste sentido, estamos perante uma desconformidade que se refere apenas a uma parte dos bens prestados, já que só identificamos esse problema em relação à entrega do telemóvel. 

Como estabelece o n.º 3 do artigo 20.º, a regra geral em situações em que a desconformidade afeta apenas uma parte dos bens é a de que o consumidor tem direito a resolver o contrato apenas na parte relativa ao bem desconforme (resolução parcial do contrato). Contudo, excecionalmente, poder-se-á admitir a resolução do contrato como um todo, com base em desconformidade parcial, se provarmos que “não é razoavelmente expectável que o consumidor aceite a manutenção do contrato apenas com os bens conformes”. O critério é, portanto, de expetativa razoável do consumidor[2], com base em considerações como “a natureza e a finalidade do contrato, as circunstâncias do caso e os usos e práticas das partes envolvidas” (considerando 24 da Diretiva 2019/771/EU).

Outro aspeto importante é que o n.º 3 do art. 20.º só se refere expressamente às situações em que o consumidor tem um fundamento de resolução nos termos do art. 15.º (n.º 4), pelo que se poderia colocar a questão de saber se essa norma se aplica também às situações de resolução que resultem do exercício de um direito de rejeição (art. 16.º). Com efeito, entendemos que não faria sentido que o direito atribuído ao consumidor (poder optar imediatamente pela resolução do contrato caso a desconformidade se manifeste pouco tempo após a entrega) não estivesse sujeito às limitações previstas no n.º 3 do art. 20.º, nos casos de desconformidade de parte dos bens prestados, sob pena de comprometer a lógica já referida.

Dito isto, atendendo à “natureza e finalidade” do contrato misto sub judice, a desconformidade relativa ao telemóvel em nada contamina o funcionamento dos restantes serviços prestados pelo profissional e dos quais o consumidor já usufruiu.

Na verdade, trata-se de uma desconformidade que não faz com que seja irrazoável, à luz da ratio do DL 84/2021, que o consumidor mantenha o contrato só com os bens conformes, tendo em conta que, no âmbito de um contrato como este, o consumidor não deixa de preservar o interesse nos serviços de telecomunicações que lhe são prestados e que constituem a parte mais significativa do contrato (conforme supramencionado), bem como nos respetivos bens que os incorporam (a box, o router, o telefone, etc.).

Diferente seria se a falta de conformidade se reportasse ao router, por exemplo, deixando este de funcionar: neste cenário, não deixamos de estar perante uma desconformidade em apenas parte dos bens entregues, mas a sua relevância já seria significativa, ao ponto de afetar o funcionamento de outros serviços prestados pela TOI (como o serviçoda televisão, que regra geral só funciona havendo Internet), o que poderia motivar a irrazoabilidade da subsistência da relação contratual como um todo.

Por isso, concluímos que não deve ser admitido que A se possa desvincular unilateralmente do contrato com fundamento na entrega do telemóvel de modelo errado, tendo em conta uma análise holística desta relação contratual.

Em suma, o consumidor tem apenas direito à resolução parcial do contrato, restituindo o telemóvel à TOI [art. 20.º, n.º 4, al. a)]. O problema está em saber como é que se deve concretizar a obrigação de restituição do preço pela TOI [art. 20.º, n.º 4, al. b)], já que o consumidor não pagou um preço específico pelo bem (paga, apenas, pela prestação dos serviços de telecomunicações, no qual o valor do bem está incluído).

No nosso entender, na ausência de qualquer previsão legal relativa à restituição do preço, há duas soluções que se afiguram possíveis: a primeira seria descontar a totalidade do valor do telemóvel na totalidade do preço a pagar durante o período de fidelização (€ 2.880, correspondentes à soma de cada prestação durante os 24 meses), devolvendo a diferença ao consumidor. Outra solução, que nos parece mais acertada, seria a de dividir o valor total do telemóvel pelos 24 meses de fidelização e descontar parte correspondente desse valor a cada prestação mensal, de forma a reduzir o preço pago pelo consumidor em cada mês.

Esta solução afigura-se-nos enquanto a mais correta uma vez que permite acautelar a circunstância de o contrato poder cessar antes dos 24 meses de fidelização, pelo que talvez não faça sentido ter como valor de referência o preço total da fidelização (que só se alcança se o contrato for executado na totalidade), sendo preferível ter por referência o valor a pagar a cada mês. Assim, assegura-se que, devolvendo o telemóvel, o consumidor paga apenas pelos serviços de telecomunicações de que usufrui efetivamente a cada mês.

Tratando-se de um contrato de adesão com período de fidelização como supramencionado cabe abordar a matéria das cláusulas contratuais gerais (“CCG”), previstas no DL 446/85. Como sabemos, estas são cláusulas pré-elaboradas por uma das partes sem negociação prévia e cujo conteúdo o destinatário não pode influenciar[3]. Por esta natureza de imposição unilateral, é importante que tais cláusulas passem por um controlo triplo, nomeadamente: 1. Conexão com o contrato; 2. Comunicação ao aderente e 3. Prestação de esclarecimentos e informações. A inserção dessas CCG num contrato singular implica a verificação destes três requisitos cumulativos.

Ora, no caso sub judice não parece haver qualquer problema de conexão, já que a TOI fez referência às cláusulas integrantes do contrato quer oralmente, quando explicou o contrato ao telefone, quer por escrito (SMS com referência ao acordo). Num segundo momento, cabe avaliarmos a comunicação destas CCG. O art. 5.º, n.º 1, do DL 446/85 prevê este requisito, explicitando, no seu n.º 2, os elementos que a comunicação deve respeitar, nomeadamente a realização de modo adequado e com a antecedência necessária. Acresce ainda que deve ser tomada em conta a importância do contrato, a sua extensão e a complexidade das cláusulas. Assim sendo, tratando-se de um contrato cujo objeto são comunicações eletrónicas (isto é, serviços essenciais no quotidiano digital), com uma fidelização de 24 meses, parece-nos tratar-se de um contrato de elevada importância e complexidade. Posto isto, podemos aqui questionarmo-nos se, porventura, foram devidamente comunicadas todas as cláusulas relevantes à celebração deste contrato. Aí, seria importante perceber se o critério da antecedência adequada foi respeitado ou se, por outro lado, o meio utilizado era idóneo a que um consumidor de comum diligência conhecesse das cláusulas.

Se concluíssemos pelo não preenchimento do requisito da comunicação, e ao abrigo do art. 8.º, al. a), isto resultaria na exclusão das cláusulas não comunicadas. Não obstante, e ainda que esta hipótese seja interessante, não nos parece de grande pertinência para o resultado desejado por A.

Para além disso, cabe agora olharmos para as práticas comerciais utilizadas pela TOI para celebrar o contrato com A, à luz do Decreto-Lei n.º 57/2008.

O art. 4.º proíbe as práticas comerciais desleais. Temos categorias específicas de práticas comerciais desleais, entre as quais as ações enganosas. O art. 7.º, n.º 1, estabelece como enganosa qualquer prática comercial “que contenha informações falsas ou que, mesmo sendo factualmente corretas, por qualquer razão, nomeadamente a sua apresentação geral, induza ou seja suscetível de induzir em erro o consumidor (…)”, conduzindo-o, ou sendo passível de o conduzir, a tomar uma decisão que não tomaria. Cabe acrescentar que, ao prever a possibilidade de a informação ser “factualmente correta”, o regime assegura que não basta a informação ser verdadeira, mas que o seu fornecimento também tem de ser realizado de forma correta pelo profissional, de modo a não induzir o consumidor em erro. 

Assim sendo, a TOI, ao prometer um iCoiso XII, entregando, depois, um iCoiso X, estará sempre a incorrer numa prática comercial desleal: quer tenha fornecido informações falsas a título de publicidade enganosa para incentivar o consumidor a contratar; ou ainda, quer tenha prestado informações factualmente corretas, mas fornecendo bem diferente do prometido. Trata-se assim de uma ação enganosa prevista no art. 7.º, n.º 1, al. a), do DL 57/2008.

Além disso, o art. 8.º apresenta, taxativamente, um conjunto de ações que são sempre tidas como enganosas, independentemente das circunstâncias. Na alínea i), proíbe-se a declaração falsa de que o bem ou as condições especiais só estarão disponíveis durante um período muito limitado: isto porque se procura evitar que o profissional obtenha uma decisão imediata do consumidor, pouco ponderada e informada. Ora, neste caso, a TOI liga a A, apresentando uma proposta contratual à qual acrescenta um conjunto de condições especiais, caso o último aderisse de imediato (a aquisição do iCoiso XII e a instalação do serviço de modo gratuito). Atendendo à natureza genérica do bem oferecido (o iCoiso XII), não parece haver elementos que justifiquem que a sua disponibilidade seja de tal forma limitada que o consumidor tenha de aderir de imediato, sob pena de não aceder ao mesmo. Diferente seria se o bem se revestisse de características muito específicas ou que fosse mais raro: caso em que a declaração de que só estaria disponível se o consumidor aderisse de imediato poderia ser razoavelmente presumida como verdadeira.

Independentemente disso, tal prática comercial não é apenas enganosa (criando no consumidor a ideia incorreta de que a disponibilidade das condições fornecidas é limitada), como permite ao profissional explorar a posição vulnerável do consumidor, limitando a sua liberdade de decisão e fazendo-o crer que encontra uma oportunidade única, não havendo espaço para esclarecimento, ponderação e comparação. Isto resulta numa sujeição de A a um contrato que limita a sua liberdade contratual e capacidade negocial durante 24 meses, influenciado sob pressão de aproveitar estas vantagens e ofertas “especiais”.

Ademais, a classificação do telemóvel e da instalação como “totalmente gratuito(s)” é, ainda, uma prática enganosa à luz da al. x) do art. 8.º. Aqui, está em causa a indução do consumidor em erro relativamente à gratuitidade do bem e serviço: como sabemos, não basta estar a palavra “gratuito” para o ser, já que A não deixa de pagar um preço (€ 120/mês). A ratio por detrás desta prática é semelhante à anterior: proteger o consumidor de contratar acreditando estar a ter uma vantagem quando, na realidade, fora apenas uma técnica de incentivo e manipulação comportamental do mesmo.

Os direitos do consumidor lesado vêm previstos no art. 14.º, n.º 1, do DL 57/2008. Esta norma atribui ao consumidor o direito à redução adequada do preço (o que aqui parece não fazer sentido, dado que A se quer desvincular do contrato sem o pagamento de qualquer valor) ou à resolução do contrato, relativamente aos produtos adquiridos por efeito de uma prática comercial desleal. Por sua vez, o n.º 2 prescreve que tal direito não poderá ser exercido se constituir um abuso de direito; ora, teremos aqui algum abuso de direito por A? 

Antes do mais, cabe destacar que o DL 57/2008 estabelece uma proteção objetiva do consumidor, prevendo um conjunto de práticas comerciais desleais que devem ser sancionadas. Assim sendo, estando desempregado ou não, A não deixou de ser enganado por tais práticas, tendo, por isso, fundamento para, ao abrigo do art. 14.º, n.º 1, solicitar a resolução do contrato. O facto de A querer desvincular-se do contrato, fruto da situação de desemprego em que se encontra, não torna o exercício deste direito abusivo, na medida em que, objetivamente, tivemos a utilização de práticas comerciais desleais pela TOI.

Não obstante, em última instância, a própria Lei 16/2022 reconhece a suspensão do contrato em situações de desemprego do consumidor [art. 137.º, n.º 1, al. e)], transformando-se posteriormente em caducidade, caso a situação se prolongue por mais de 180 dias (art. 137.º, n.º 4). Logo, de todo o modo, a circunstância de A estar desempregado é atendível à luz deste diploma.

Por fim, tendo em vista o exercício dos direitos que aqui explorámos, o consumidor poderia provocar a intervenção de um Tribunal Arbitral, sem que o profissional a isso se pudesse opor, uma vez que o valor da causa é inferior a € 5.000 (art. 14.º da Lei de Defesa do Consumidor).


[1] Seguimos, aqui, apesar da existência do telemóvel enquanto objeto do contrato, o raciocínio do Tribunal de Justiça da União Europeia, no Acórdão de 8 de outubro de 2020, EU contra PE Digital GmbH, C‑641/19, EU:C:2020:808, n.º 27-29, 31 e 32, concluindo-se, neste último, que “(…) para determinar o montante proporcional a pagar pelo consumidor ao profissional (…), deve, em princípio, ter‑se em conta o preço acordado nesse contrato para o conjunto das prestações objeto do mesmo contrato e calcular o montante devido pro rata temporis. Só quando o contrato celebrado prevê expressamente que uma ou várias das prestações são fornecidas integralmente desde o início da execução do contrato, de maneira distinta, a um preço a pagar separadamente, é que o preço integral previsto para tal prestação deve ser tido em conta no cálculo do montante devido ao profissional (…)”. Ver, também, no mesmo sentido (por analogia): Acórdãos de 23 de janeiro de 2019, Walbusch Walter Busch, C‑430/17, EU:C:2019:47, n.o 41; de 27 de março de 2019, Slewo, C‑681/17, EU:C:2019:255, n.o 39; e de 10 de julho de 2019, Amazon EU, C‑649/17, EU:C:2019:576, n.o 44.

[2] Jorge Morais Carvalho, Compra e Venda e Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais – Anotação ao Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro, Almedina, 2022, pp. 75 e 76.

[3] Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 6.ª ed., Almedina, 2019, p. 117.

A inovadora “Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor” desenvolvida no Brasil por Marcos Dessaune

Doutrina

Por Marcos Dessaune, advogado e autor da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor

A partir de 2009, com o estabelecimento de metas de produtividade para o Poder Judiciário brasileiro, os tribunais pátrios desenvolveram uma jurisprudência defensiva para evitar a multiplicação de processos[1]. Erigida sobre o argumento do “mero aborrecimento”, tal jurisprudência sustenta que só configura dano moral a dor, o sofrimento, o vexame ou a humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, afetando o seu bem-estar. Mero aborrecimento, dissabor, irritação ou sensibilidade exacerbada não caracterizam dano moral, visto que tais situações não são intensas e duradouras a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo[2].

Esse entendimento reverbera um conceito de dano moral que, embora já esteja superado pela doutrina mais recente, continuou a ser reproduzido indiscriminadamente no Direito brasileiro, a ponto de se falar numa “tradicional confusão” entre danos extrapatrimoniais e morais presente em praticamente todos os autores justamente reputados como clássicos na matéria[3].

Diante dessa compreensão doutrinário-jurisprudencial tradicional e da necessidade de se conferir efetividade ao princípio da reparação integral, tornou-se necessário ampliar o conceito de dano moral no Brasil, para que fosse possível reconhecer novas categorias de danos extrapatrimoniais para além da esfera anímica da pessoa e, ao mesmo tempo, para que se permitisse a reparação autônoma de mais de uma espécie deles oriunda do mesmo evento danoso.

Assim sendo, os danos extrapatrimoniais, por serem tradicionalmente chamados no Brasil de “danos morais”, podem ser identificados e classificados com base no bem jurídico lesado. O dano moral lato sensu (ou em sentido amplo), enquanto gênero que corresponde ao dano extrapatrimonial, pode ser atualmente conceituado como o prejuízo não econômico que decorre da lesão a bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, abrangendo os bens objeto dos direitos da personalidade. O dano moral stricto sensu (ou em sentido estrito), enquanto espécie de dano extrapatrimonial (ou moral lato sensu), pode ser definido como o prejuízo não econômico que decorre da lesão à integridade psicofísica da pessoa.

Além da ampliação do conceito de dano moral, tornou-se necessário superar o argumento do “mero aborrecimento” na jurisprudência brasileira, o que vem sendo realizado no país pela inovadora Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, que identificou e valorizou o tempo do consumidor como um bem extrapatrimonial juridicamente tutelado e, depois da sua publicação, ensejou o gradual desenvolvimento de uma nova jurisprudência nacional.

Confrontado com a jurisprudência erigida sobre o argumento do “mero aborrecimento”, debrucei-me sobre o seguinte problema: na atual sociedade de consumo brasileira, o consumidor tem sido corriqueiramente levado a despender o seu tempo e a se desviar das suas atividades cotidianas para enfrentar problemas de consumo criados pelos fornecedores. Indaga-se então: essas situações configuram algum dano extrapatrimonial reparável ou, diversamente, representam meros dissabores ou aborrecimentos normais na vida do consumidor?

Ao publicar o primeiro estudo sobre a problemática em 2011, na obra intitulada Desvio Produtivo do Consumidor[4], e avançando em 2017 na Teoria aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor[5], obras que pioneiramente identificaram e valorizaram o tempo do consumidor como um bem jurídico, percebi que não se sustentava a compreensão jurisprudencial brasileira de que a via crucis enfrentada pelo consumidor, diante de um problema de consumo criado e imposto pelo próprio fornecedor, representaria “mero dissabor ou aborrecimento” normal na vida do vulnerável, e não um dano extrapatrimonial ressarcível.

Os substantivos “dissabor” e “aborrecimento” traduzem um sentimento negativo qualificado pelo adjetivo “mero”, que significa simples, comum, trivial. Em outras palavras, a jurisprudência baseada no argumento do “mero aborrecimento” está implicitamente afirmando que, em determinada situação, houve lesão à integridade psicofísica de alguém apta a gerar um sentimento negativo (“dissabor” ou “aborrecimento”). Porém, segundo se infere dessa mesma jurisprudência, tal sentimento é pequeno, trivial ou sem importância (“mero”), portanto incapaz de romper o equilíbrio psicológico da pessoa e, consequentemente, de configurar o dano moral compensável.

Com efeito, essa jurisprudência tradicional revela um raciocínio erigido sobre bases equivocadas que, naturalmente, conduzem a essa conclusão errônea. O primeiro equívoco é que o conceito de dano moral enfatizaria as consequências emocionais da lesão, enquanto ele já evoluiu para centrar-se no bem jurídico atingido; ou seja, o objeto do dano moral era essencialmente a dor, o sofrimento, o abalo psíquico, e se tornou a lesão a um bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, abrangendo os bens objeto dos direitos da personalidade. O segundo equívoco é que, nos eventos de desvio produtivo, o principal bem jurídico atingido seria a integridade psicofísica da pessoa consumidora, enquanto, na realidade, são a sua liberdade, o seu tempo vital e as atividades existenciais que cada pessoa escolhe nele realizar, como trabalho, estudo, descanso, lazer, convívio social e familiar, etc.. O terceiro equívoco é que esse tempo existencial não seria juridicamente tutelado, enquanto, na verdade, ele se encontra protegido tanto no rol aberto dos direitos da personalidade quanto no âmbito do direito fundamental à vida. Por conseguinte, o lógico seria concluir que os eventos de desvio produtivo do consumidor acarretam, no mínimo, dano moral lato sensu reparável.

Ocorre que o tempo é o suporte implícito da vida, que dura certo tempo e nele se desenvolve, e a vida, enquanto direito fundamental, constitui-se das próprias atividades existenciais que cada um escolhe nela realizar. Logo, um evento de desvio produtivo traz como resultado um dano que, mais do que moral, é existencial, pela alteração prejudicial do cotidiano e/ou do projeto de vida do consumidor.

Logo, concluí que o fornecedor, ao criar um problema de consumo no mercado e se eximir da sua responsabilidade de saná-lo voluntária, tempestiva e efetivamente, leva o consumidor em estado de carência[6] e situação de vulnerabilidade a desperdiçar o seu tempo vital e a se desviar das suas atividades existenciais para enfrentar o problema que lhe foi imposto. Consequentemente, o consumidor sofre um dano extrapatrimonial de natureza existencial, cujo prejuízo é presumido e deve ser reparado pelo fornecedor que o causou. Denominei esse evento danoso “desvio produtivo do consumidor”, ao tempo que percebi que ele não se amolda à jurisprudência tradicional, segundo a qual ele representaria “mero dissabor ou aborrecimento”, normal na vida do consumidor.

Em resumo, o conceito de dano moral ampliou-se no Brasil nos últimos anos, partindo da noção de dor e sofrimento anímico para alcançar, atualmente, o prejuízo não econômico decorrente da lesão a um bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, compreendendo os bens objeto dos direitos da personalidade, como o tempo da pessoa humana. Essa ampliação conceitual vem permitindo o reconhecimento de novas categorias de danos extrapatrimoniais para além da esfera anímica da pessoa, como o dano estético, o dano temporal, o dano existencial, etc., bem como a reparação autônoma de mais de uma espécie deles originária do mesmo evento danoso.

A Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor promoveu a ressignificação e a valorização do tempo do consumidor, elevando-o à categoria de um bem jurídico, o que vem possibilitando a superação da jurisprudência brasileira baseada no argumento do “mero aborrecimento”, que fora construída sobre bases equivocadas, contribuiu para a ampliação do conceito de dano moral, apontando esse tempo como um bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, e ensejou o gradual desenvolvimento de uma nova jurisprudência nacional, a do desvio produtivo do consumidor.

De acordo com a última pesquisa quantitativa de jurisprudência que realizei, no dia 15-12-2022, a expressão exata e inequívoca “desvio produtivo” já havia sido citada em 45.144 acórdãos de todos os tribunais estaduais, distrital e regionais federais do País, além do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em 2022, publiquei a 3.ª edição da Teoria do Desvio Produtivo ampliada para o Direito Administrativo e o Direito do Trabalho[7], obra que pode ser conhecida em www.marcosdessaune.com.br.


[1] BARRETO, Miguel. A indústria do mero aborrecimento. 2. ed. Juiz de Fora: Editar, 2016. passim.

[2] STJ, REsp 844736/DF, j. 27-10-2009, rel. p/ acórdão Min. conv. Honildo Amaral de Mello Castro.

[3] NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 591.

[4] DESSAUNE, Marcos. Desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado. 1. ed. São Paulo: RT, 2011.

[5] DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada. 2. ed. rev. e ampl. Vitória: Edição Especial do Autor, 2017.

[6] Estado de carência corresponde ao estado de desconforto ou de tensão gerado pela ativação de certa carência (necessidade, desejo ou expectativa), estado esse que impulsiona a pessoa a obter certo objeto ou a alcançar determinada meta e, geralmente, não permite demora.

[7] DESSAUNE, Marcos. Teoria ampliada do desvio produtivo do consumidor, do cidadão-usuário e do empregado. 3. ed. rev., modif. e ampl. Vitória: Edição Especial do Autor, 2022.

A garrafa de vinho mais cara do que o jantar

Consumo em Ação

Por Leandro Pinto, Matilde Pinho e Rita Saramago

Hipótese: No dia 15 de junho, Joaquim telefonou para o restaurante Belos Cozinhados e reservou uma mesa para nove pessoas para as 21h. Joaquim combinou a ementa com  o empregado do restaurante. Com o grupo totalmente instalado e com os pratos já servidos, o empregado veio perguntar o que pretendiam beber. Joaquim pediu vinho e água para todos. Uns minutos depois, o empregado apareceu com uma garrafa de vinho na mão, que apresentou como sugestão do restaurante. Joaquim aceitou sem colocar qualquer questão sobre o preço, tendo sido pedida uma segunda garrafa de vinho a meio da refeição. Terminada a refeição, Joaquim pediu a conta e, quando esta chegou, ficou surpreendido com o valor apresentado (€ 1 500), dos quais € 1 300 diziam respeito às duas garrafas de vinho, referidas na conta como sendo “Barca Velha” (um conhecido vinho, bastante caro). Joaquim tem de pagar?

Resolução: No caso em análise, o processo negocial pode ser objeto de duas leituras diferentes. A primeira é considerar-se que foi celebrado apenas um contrato atípico que junta elementos de vários tipos. Neste caso, teríamos dois elementos principais – empreitada (no que à confeção do jantar diz respeito) e prestação de serviços (serviço do restaurante) – e dois elementos secundários – compra e venda (relativamente ao vinho e à água) e aluguer (talheres, cadeiras, mesas do restaurante). Diferentemente, pode autonomizar-se o contrato de compra e venda das garrafas de vinho, o que nos parece ser a solução mais correta para o tratamento do caso.

Quanto ao jantar, o contrato celebrou-se por telefone. Joaquim tem a obrigação de pagar o preço e o restaurante deve confecionar e servir o jantar.

No que respeita ao vinho, temos um contrato de compra e venda. Cabe analisar se o ato de apresentar a garrafa ao cliente consubstancia uma proposta contratual e se foi, de facto, celebrado um contrato. É inequívoco que o comportamento do empregado se apresenta como uma proposta contratual e que Joaquim, ao aceitar que este servisse o vinho, a aceitou. A questão incide no preço, que não é comunicado no momento da aceitação, o que nos levará posteriormente a discutir a validade do contrato, por violação do direito à informação do consumidor, plasmado no art. 8.º-1-c) da Lei de Defesa do Consumidor.

Antes de passarmos à questão da validade do contrato, importa percebermos qual seria a determinação mais correta do valor do vinho. Por força do Decreto-Lei n.º 138/90 de 26 de abril, é obrigatória a indicação dos preços dos bens e serviços colocados à disposição do consumidor no mercado, o que à partida pressupõe que o restaurante tinha afixada a tabela de preços praticados no estabelecimento comercial e, como é sabido por regras de experiência comum, teria também um menu à disposição dos seus clientes. Podemos, assim, concluir que o preço do vinho estava determinado, mas que não foi comunicado ao consumidor no momento de apresentação da proposta. Houve uma omissão por parte do empregado.

Terá havido uma prática comercial desleal e, consequentemente, o consumidor pode resolver o contrato? Se assim for, não tem de pagar qualquer valor pelas garrafas? Ou, pelo contrário, o empregado (e representante do restaurante) foi diligente e era o consumidor quem tinha o dever de solicitar o menu, verificando o preço do vinho?

Para determinar se existiu uma prática comercial desleal, recorremos ao Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março. Este regime pode ser analisado numa estrutura de pirâmide, em três níveis de análise diferentes: listagem normativa (arts. 8.º e 12.º), que indica práticas enganosas e agressivas em qualquer circunstância; práticas comerciais desleais em especial [art. 6.º-b) e c)]; cláusula geral (arts. 4.º e 5.º).

A prática em apreço não se enquadra nas listas dos arts. 8.º e 12.º, pelo que cabe averiguar se estamos perante uma prática comercial desleal em especial. Ao abrigo dos arts. 9.º-1-a) e 10.º-c), aplicáveis por remissão do art. 6.º-b), é discutível se a omissão do preço se traduz numa omissão de informação com requisitos substanciais para a decisão negocial. Atendendo às circunstâncias do caso concreto, nomeadamente o preço exorbitante do vinho, consideramos que sim, pois trata-se de uma informação de relevo, que interferiria, com elevada probabilidade, na decisão negocial do consumidor. Deste modo, esta informação deveria ter sido transmitida pelo profissional, através do seu representante (empregado), e não foi, impossibilitando Joaquim de tomar uma decisão negocial esclarecida.

Embora Joaquim não tenha especificado as bebidas no ato da reserva, tendo em conta o contexto e o preço médio da refeição, entendemos que foi tacitamente acordado um limite para o custo do vinho. O entendimento esperado de um cliente colocado na posição de Joaquim seria o de que o vinho não custaria mais de € 30, o preço médio de uma garrafa de vinho num restaurante.

Por este motivo, consideramos que se verificou uma prática comercial desleal especial por omissão.

Se dúvidas ainda existissem, chegaríamos à mesma conclusão através do nível seguinte de análise, a cláusula geral, plasmada no art. 5.º-1. Esta cláusula inclui quatro requisitos cumulativos[1]: (i) relação jurídica de consumo; (ii) existência de uma  prática comercial; (iii) contrariedade à diligência profissional; (iv) suscetibilidade da distorção do comportamento económico do consumidor.

Tendo já sido feita a verificação relativa aos pontos (i) e (ii), passamos a dedicar a nossa atenção aos pontos (iii) e (iv).

Tendo em conta o preço avultado do vinho comparado com o preço da refeição, seria expectável que o profissional, ao sugeri-lo, informasse o cliente, evitando que este fosse surpreendido em momento posterior. O comportamento não foi honesto, contrariando a diligência profissional que incumbe ao profissional.

A falta de honestidade teve como efeito o cliente ter um comportamento diferente daquele que teria caso tivesse todas as informações. Atendendo ao preço avultado do vinho, é (quase) certo que Joaquim adotaria um comportamento diferente se tivesse sido informado, não aceitando a proposta.

Paralelamente, a determinação do valor do vinho não resultou de um acordo entre as partes, tendo sido definido um valor de forma unilateral por parte do restaurante (em respeito pelas regras de fixação de preços que não cabe aqui aprofundar), valor este que não foi comunicado a Joaquim.

Violado o direito à informação do consumidor, Joaquim teria o direito de resolução do contrato, por força do art. 8.º-4 da Lei de Defesa do Consumidor. Tal implicaria que o consumidor tivesse de devolver o bem ao vendedor e este deixaria de poder exigir a obrigação de pagamento do preço. Neste caso, é evidente que esta não é uma solução adequada, uma vez que o vinho é um bem consumível e que, neste caso, já foi consumido durante a refeição, ficando Joaquim impossibilitado de devolver o conteúdo da garrafa.

Tratando-se de uma prática comercial desleal, aplica-se o art. 14.º-1 do Decreto-Lei n.º 57/2008 e o consumidor pode exigir a redução adequada do preço do bem, solução adequada neste caso. Em vez de serem cobrados € 1300 euros pelas duas garrafas, seria fixado um preço mais reduzido por cada garrafa, de acordo com o preço de mercado de um vinho, normalmente recomendado num restaurante como o Belos Cozinhados e expectável pelo consumidor médio colocado naquela posição.

Respondendo à questão colocada, Joaquim tem de pagar, mas não o valor exigido pelo restaurante. O valor deverá ser reduzido, equivalendo ao valor de mercado de duas garrafas de um vinho médio, normalmente recomendado em restaurantes como o Belos Cozinhados, cujo preço seja expectável para o consumidor médio colocado na posição do Joaquim.


[1] Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, 2020, p. 142.

A Camisola que estava na caixa “Tudo a € 10” por engano

Consumo em Ação

Por Leandro Pinto, Matilde Pinho e Rita Saramago

Hipótese: Xénia, consumidora, entrou numa conhecida loja de roupa e retirou uma camisola de uma caixa que continha a indicação “Tudo a € 10”. Quando chegou à caixa percebeu que a camisola estava naquela caixa por engano, custando € 23, tal como indicado na etiqueta. Xénia ficou sem saber o que fazer. O que lhe diria?

Resolução: No caso em apreço, parece existir uma proposta contratual por parte da loja[1]. A declaração é completa, já que revela o conteúdo mínimo do contrato a celebrar. É também precisa, uma vez que não deixa dúvidas acerca dos elementos do contrato a celebrar. Ademais, é evidente a intenção inequívoca de contratar, pelo que o requisito da firmeza também se verifica, bem como o da adequação formal, dado que a celebração deste contrato não se encontra sujeita a forma especial (art. 219.º do Código Civil).

Cumpridos todos os requisitos, basta a proposta ser aceite para o contrato ser celebrado, sendo o ato de aceitação de Xénia levar a camisola até à caixa[2]. No momento da aceitação, Xénia concorda com todos os aspetos contratualmente relevantes da proposta e, consequentemente, é celebrado o contrato.

Xénia só se apercebe do preço real da camisola quando chega à caixa, isto é, quando já aceitou a proposta. Ora, um declaratário normal assumiria que o preço que lhe é indicado na caixa é, efetivamente, o preço do bem, nos termos do art. 236.º do Código Civil. Assim, neste contexto, podemos considerar que existiam, em rigor, duas propostas: uma com um preço de € 10 e outra com um preço de € 23.

O consumidor pode concluir o negócio aceitando a proposta com o preço mais baixo.

Esta resposta pressupõe um determinado enquadramento: a camisola deve encontrar-se dobrada juntamente com outras as camisolas. Por hipótese, se a camisola se encontrasse desarrumada numa caixa cheia de cintos com a mesma legenda (“Tudo a € 10”), poderíamos concluir que um declaratário normal poderia deduzir que a legenda não se aplicaria à camisola e, por isso, não seria esse o preço aplicável. De facto, era expectável de um consumidor diligente que o entendesse e que não tentasse tirar proveito da situação.

Semelhante seria o caso em que Xénia via a etiqueta na qual estava indicado o preço de € 23 e, mesmo assim, levava a camisola até à caixa com a intenção de comprá-la pelo preço indicado na caixa. É incontestável que esta atitude não espelha a diligência esperada de um consumidor.

Hipótese diferente seria o caso em que Xénia se dirigia à caixa e, quando o artigo passa no scanner, aparece no ecrã a indicação de € 5. Consideramos este momento posterior à celebração do contrato. A proposta tinha um preço (€ 10) e a aceitação não pode alterar a proposta. Deste modo, se a proposta já foi aceite, Xénia estaria a incumprir a obrigação, ainda que não de forma culposa, se pagasse apenas os € 5. O preço a pagar deve ser aquele que foi acordado, isto é, o preço pelo qual o consumidor aceitou a proposta contratual emitida pelo profissional.


[1] Sobre os requisitos da proposta, cfr. Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, 2020, pp. 79 a 81.

[2] Sobre os estabelecimentos que funcionam em autosserviço, cfr. Carlos Ferreira de Almeida, Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, Vol. II, Almedina, 1992, p. 818; José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Teoria Geral, Vol. II, Coimbra Editora, 1999, p. 458.

The Implementation of the Directives 2019/771 and 2019/770 in the Italian Consumer Code

Doutrina

By Giovanna Capilli, Associate Professor of Private Law – San Raffaele University Rome

The Italian legislator has implemented the Directives (EU) 2019/771 of the European Parliament and of the Council of 20 May 2019 (relating to certain aspects of contracts for the sale of goods, which amends Regulation (EU) 2017/2394 and Directive 2009/22/EC, and repealing Directive 1999/44/EC – hereinafter ‘Dir. 2019/771’) and (EU) 2019/770 of the European Parliament and of the Council of 20 May 2019 (relating to certain aspects of supply contracts of digital content and digital services – hereinafter ‘Dir. 2019/770’) respectively with Legislative Decree n. 170/2021 and Legislative Decree n. 173/2021 and it modified the consumer code.

After the unsuccessful proposed Regulation for a Common European Sales Law (CESL), the European Parliament decided to use the instrument of the directive in order to enhance the growth of electronic commerce in the internal market and to establish a genuine digital single market.

The general objective of the two “twin” directives is to get a uniform regulation in the Member States on the sale of goods (including digital ones) and the supply of digital content and services, although the directive contains the possibility to derogate in some cases, so probably there will be other differences between member states (see: S. Pagliantini, Contratti di vendita di beni: armonizzazione massima, parziale e temperata della dir. UE 2019/771, in Giur. it., 2020, 1, F. Bertelli, Armonizzazione massima della Dir. 2019/771 UE e le sorti del principio di maggior tutela del consumatore, in Eur. Dir. Priv., 2019, 953).

One of the main innovations of the new Italian consumer rules is connected to the notion of good which is no longer defined as a ‘consumer good’, but only “good” which includes digital goods or goods that incorporate or are interconnected with digital content or services (Internet of Things).

The Italian implementation cannot be said to be optimal; in fact, the consumer code was modified simply by transposing the directives and keeping them separate without carrying out any coordination work.

Thus, from a textual point of view, the regulation of contracts concerning the sale of goods (including digital ones) is contained in articles 128 to 135- septies and it is separate from the regulation of contracts for the supply of digital content and digital services which is contained in articles 135 – octies to 135- vicies ter  (For further information see: G. Capilli – R. Torino, Codice del consumo: le novità per i contratti di vendita e fornitura di beni digitali, Milan, 2022).

Among the most important innovations we can point out the elimination of the concept of “presumption of conformity”. In fact, subject and objective requirements are expressly regulated and both are necessary for the good to be considered compliant.

In particular, the requirement of “durability” (or, according to some authors, “duration” would have been better: see A. De Franceschi, La vendita di beni con elementi digitali, Napoli, 2021, p. 87, p. 87), introduced by the European legislator among objective compliance requirements is due to the desire to favor a longer “useful life of the goods” in the perspective of more sustainable consumption models from an environmental point of view, and represents the ability of the product to maintain its functionality and the performance required through normal use.

With reference to goods with digital elements, IT security becomes one of the fundamental requirements of the product or service.

In case of goods with digital elements, the seller will be liable for any lack of conformity of the digital content or digital service that occurs or manifests itself within two years from the time of delivery of the goods with digital elements and if the contract provides for a continuous supply. For more than two years, the seller is liable for any lack of conformity of the digital content or digital service that occurs or manifests itself in the period of time during which the digital content or digital service must be supplied under the sales contract (see art. 133 of the Italian consumer code).

A product with digital elements by its nature requires updates which are generally agreed in the sales contract to improve and enhance the element of digital content or digital service incorporated therein, expand its functionality, adapt it to technical developments and protect it from new threats to the security or serve other purposes.

Consequently, for this type of goods, the seller, who is generally responsible for the lack of conformity existing at the time of delivery of the goods, will also be responsible for the failure to supply the updates agreed in the contract, but also for the incompleteness and the defectiveness of updates over which it may not have effective control.

From this point of view, the seller’s liability becomes much more strict and it is not compensated by a contextual strengthening of the right of redress.

It should also be noted that in the case of goods with digital elements, the provision pursuant to art. 133 consumer code, paragraph 2, must be connected with that contained in art. 135 quaterdecies consumer code, with the consequence that if there is a lack of conformity, a concurrent liability of the seller and the professional (producer) could arise.

It should be noted that in the case of the supply of goods with digital content, it is probable that the digital elements are provided by a third party and not by the final seller. The contract could involve three parties: consumer, seller who supplies the good and another person who supplies the digital content that allows the good to operate.

The issues about updates are very complicated; the consumer should have the freedom to choose to install an update or not, but his decision could influence the seller’s liability and the consumer right to take remedies for lack of conformity.

In case of goods with digital content, consumer protection becomes rather articulated and complex if it takes into account that these goods could need updates for themselves, but also because they need to be compatible with a new digital environment.

Certainly, the consumer’s decision to proceed with the updates must be aware, especially considering that the lack of safety updates could lead to damage third parties and consumer could be held responsible.

In this regard, it is debated if there is an obligation to update by the consumer.

Another aspect that has been highlighted (see A. De Franceschi, op. cit., p. 93) is in which ways the seller must keep the consumer informed of the necessary updates indicated by art. 130, paragraph 2, consumer code if more time is spent from the contract and from the delivery.

The new art. 133 consumer code fixes in two years from the delivery of goods the seller’s liability for any lack of conformity and this provision also applies to goods with digital elements.

For goods with digital elements, based on the new art. 133, paragraph 2, consumer code when the sales contract provides a continuous supply of the digital content or digital service for a period of time, the seller is also liable for any lack of conformity of the digital content or digital service that occurs or became apparent within two years of the time when the goods with digital elements were delivered.

Where the supply of the digital content or digital service provides for a continuous supply for more than two years, the seller shall be liable for any lack of conformity of the digital content or digital service that occurs or becomes apparent within the period of time during which the digital content or digital service is to be supplied under the sales contract.

The new article 133 of consumer code confirms the previous provision establishing that the action of warranty expires within twenty-six months from the delivery of the goods and this solution is necessary to overcome the paradox of the simultaneous termination of the guarantee and the right to take action to enforce it (G. Capilli, Garanzie e rimedi nelle vendite ai consumatori, in I contratti del consumatore (edited by G. Capilli), Torino, 2021).

With reference to second hand goods, as in the previous regulations, (v. paragraph 4 of art. 133 consumer code) it is possible to determine a different period for warranty but not less than one year and it is possible to determine that limitation also for the action of warranty (see for a comment: G. Capilli, Termini di garanzia e termini di prescrizione nella vendita di beni (anche usati) ai consumatori, in M. Astone (edited by), Il diritto dei consumatori nella giurisprudenza della Corte di Giustizia Europea, Pisa, 2020, p. 61).

With the new provision contained in article 133 consumer code, the warranty and prescription period for second hand goods may be limited to a period of not less than one year, and this because a different treatment of second-hand goods was deemed justifiable; contractual freedom is encouraged, at the same time the consumer is assured of being informed both of the nature of the good as second-hand and of the liability period or the shortened limitation period (see recital 43 of directive 2019/771).

The new article 135 consumer code change the rules on the burden of proof; the preview legislation indicated six months as a time in which the lack of conformity could appear, while now the time is one year.This means that during this period the burden of proof is on the seller that needs to demonstrate that the product is in conformity. Although the EU legislator had left the states free to (maintain or) introduce a two-year term, the Italian legislator did not take this option also because it is applied in few Member States. So that, without prejudice to evidence to the contrary, it is assumed that any lack of conformity that occurs within one year from the time the good was delivered already existed on that date, unless this hypothesis is incompatible with the nature of the good (i.e. in case of perishable goods such as flowers or goods that can only be used once) or with the nature of the lack of conformity (i.e. a lack of conformity that can only result from an action by the consumer or from an evident external cause which occurred following the delivery of the goods to the consumer).

In the event of a lack of conformity, a fundamental principle is codified: the consumer must be able to choose the most appropriate remedy, but his freedom of choice is not absolute, but rather limited by a series of circumstances which must be considered, in a collaborative perspective between the parties and in good faith in the execution of the contract, precisely in order to avoid making excessive and unjustified burdens fall on the seller. Therefore, the following must be considered: a) the value the goods would have if there were no lack of conformity; b) the significance of the lack of conformity; c) whether the alternative remedy could be provided without significant inconvenience to the consumer.

The seller at the time of the communication of the defect can offer the consumer any remedy but this is not binding for the consumer who will be free to refuse it and choose another one.

It should be noted, among the regulatory changes, that in compliance with the invitation contained in recital 46 and in order to ensure that consumers have a higher level of protection, it is eliminated the obligation to notify the defect (in the preview regulation the consumer ought to notify the defect in the term of two-month from the discover).

Another question that is resolved by the new legislation is that relating to possible and repeated defects that may affect the same good. In this case, consumers could obtain a price reduction or resolution despite the seller’s attempt to restore the conformity of the good.

These are situations in which it is justifiable that the consumer needs to have a price reduction or to terminate the contract immediately. If it can be considered normal to allow the seller (with reference to specific goods, for example because they are very expensive) to bring the goods into conformity, it is also true that when a lack of conformity becomes apparent subsequently the trust of the consumer on the seller’s ability to bring the goods into conformity cannot be maintained.

The consumer may request the proportional reduction of the price or to terminate the contract if the lack of conformity is so serious as to justify the request for such remedies.

The question, therefore, is to verify when a lack of conformity can be considered “so serious” as to allow the immediate termination of the contract or the reduction of the price.

The EU legislator, through this provision, wanted to allow the consumer a faster way to terminate the contract if, due to the seriousness of the defect, he is not interested in retaining the good. “Exit” from the contract, however, facilitated by the fact that the consumer, based on the provisions of paragraph 2 of art. 135 quater, could terminate the contract with a direct declaration to the seller containing the manifestation of the will to terminate the sales contract, this is a hypothesis of out-of-court resolution (eg in the case of delivery of aliud pro alio) which should be coordinated with the provisions of art. 61 of the Italian consumer code.

The consumer shall have the right to withhold payment of any outstanding part of the price or a part thereof until the seller has fulfilled the seller’s obligations, so the Italian legislator has expressly recalled the article 1460 of the civil code, but has also made use of the option referred to in paragraph 7 of art. 13 of the directive, which provides that the Member States can establish whether and to what extent, upon the occurrence of the lack of conformity, the consumer’s cooperation may affect his right to avail himself of the remedies.

Finally, it should be noted that the provision contained in article 135 septies incorporates the provisions of art. 3, paragraph 6, as well as art. 4 in relation to the level of harmonization, and clarifies the relationship between the rules contained in the civil code and in the consumer code. So the consumer code will be applied in the case of B2C sales of goods, while the civil code will be applied for the question concerning the formation, validity and effectiveness of contracts, including the consequences of termination of the contract and compensation for damage

Una Nueva Distribución de la Responsabilidad Contractual en la Regulación Española de los Viajes Combinados

Doutrina

Por Josep Maria Bech Serrat, Profesor Titular de Derecho Civil, Universidad de Girona

1. Las modificaciones contenidas en los artículos 13 a 17 de la Ley 4/2022

El pasado martes día 1 de marzo el Boletín Oficial del Estado español publicó la Ley 4/2022, de 25 de febrero, de protección de los consumidores y usuarios frente a situaciones de vulnerabilidad social y económica. Los artículos 13 a 17 de la norma modifican algunos preceptos legales de la regulación de los viajes combinados y servicios de viaje vinculados contenida en el Real Decreto legislativo 1/2007, de 16 de noviembre, por el que se aprueba el texto refundido de la Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuarios.

Las modificaciones se refieren al alcance de la exclusión de los viajes combinados y servicios de viaje vinculados que tienen carácter ocasional del ámbito de aplicación de la regulación, a un deber de informar expresamente de la no sujeción al régimen legal general de todos los supuestos excluidos (modificación del art. 150.2), a la noción de falta de conformidad (modificación de la letra k) del art. 151.1), a las lenguas oficiales en que debe redactarse la información precontractual (modificación del art. 153.3), a la empresa que puede cancelar el contrato (modificación del art. 160.3) y a la distribución de la responsabilidad contractual entre organizador y minorista (modificación del art. 161.1).

Sin duda, la nueva distribución de responsabilidad contractual entre organizador y minorista es el tema más relevante y, a mi juicio, podrá ser objeto de un considerable debate.

2. La nueva distribución de responsabilidad contractual entre el organizador y el minorista

2.1. Una responsabilidad parciaria como regla general, y una responsabilidad solidaria excepcionar en caso de una falta de gestión de la reclamación

El primer párrafo del art. 161.1 establece, como regla general, una responsabilidad parciaria entre estos sujetos (“[l]os organizadores y los minoristas de viajes combinados responderán frente al viajero del correcto cumplimiento de los servicios de viaje incluidos en el contrato en función de las obligaciones que les correspondan por su ámbito de gestión del viaje combinado, con independencia de que estos servicios los deban ejecutar ellos mismos u otros prestadores”). Valoro positivamente el nuevo criterio de distribución de responsabilidad, en línea con el vigente en muchos países europeos.   

No obstante, tal vez para contrarrestar los efectos de un régimen de responsabilidad más severo para el viajero que el propio de una responsabilidad solidaria, el segundo párrafo obliga a los minoristas a tramitar en todo caso las reclamaciones, de modo que el asunto deja de formar parte de los acuerdos voluntarios integrantes de los contratos de gestión interempresarial (“[n]o obstante lo anterior, el viajero podrá dirigir las reclamaciones por el incumplimiento o cumplimiento defectuoso de los servicios que integran el viaje combinado indistintamente ante organizadores o minoristas, que quedarán obligados a informar sobre el régimen de responsabilidad existente, tramitar la reclamación de forma directa o mediante remisión a quien corresponda en función del ámbito de gestión, así como a informar de la evolución de la misma al viajero aunque esté fuera de su ámbito de gestión”).  

Además, el párrafo tercero del art. 161.1 prevé una excepción a la regla de la responsabilidad parciaria en los términos siguientes: “[l]a falta de gestión de la reclamación por parte del minorista supondrá que deberá responder de forma solidaria con el organizador frente al viajero del correcto cumplimiento de las obligaciones del viaje combinado que correspondan al organizador por su ámbito de gestión. De igual modo, la falta de gestión de la reclamación por parte del organizador supondrá que deberá responder de forma solidaria con el minorista frente al viajero del correcto cumplimiento de las obligaciones del viaje combinado que correspondan al minorista por su ámbito de gestión”.

En este caso el legislador impone, excepcionalmente, una responsabilidad solidaria y obliga al sujeto responsable a indemnizar daños y perjuicios que en realidad son consecuencia del incumplimiento de obligaciones que no forman parte de su ámbito de gestión del viaje, que asumió la otra empresa frente al viajero, aspecto que a mi modo de ver será controvertido; y cabe entender que las reglas de representación directa e indirecta quedan a salvo de la regulación.

2.2. Una responsabilidad por culpa en el incumplimiento de la obligación de gestión de la reclamación, con inversión de la carga de la prueba

El párrafo cuarto del art. 161.1 emplea un criterio de culpa para imputar el incumplimiento de la obligación de gestión de la reclamación al sujeto responsable, y la responsabilidad solidaria se acompaña asimismo de una inversión de una carga de la prueba: “[e]n estos supuestos, le corresponderá al minorista u organizador, en su caso, la carga de la prueba de que ha actuado diligentemente en la gestión de la reclamación y, en cualquier caso, que ha iniciado la gestión de la misma con carácter inmediato tras su recepción”. Está claro, pues, que el debate se focaliza en el nivel de diligencia empleado por la empresa para atender la reclamación del pasajero, otro aspecto que a menudo no podrá resolverse con facilidad, aunque el criterio de imputación de la culpa y la inversión de la carga de la prueba me parecen adecuados.

2.3. Unos derechos de repetición 

El párrafo quinto del art. 161.1 regula un primer derecho de repetición a ejercer frente al otro sujeto responsable solidario: “[q]uien responda de forma solidaria ante el viajero por la falta de gestión de la reclamación tendrá el derecho de repetición frente al organizador o al minorista al que le sea imputable el incumplimiento o cumplimiento defectuoso del contrato en función de su respectivo ámbito de gestión del viaje combinado”.

Y, por último, el párrafo sexto del art. 161.1 contempla un segundo derecho de repetición, en este caso a ejercer por parte del organizador o minorista contra terceros: “[c]uando un organizador o un minorista abone una compensación, en función de su ámbito de gestión, conceda una reducción del precio o cumpla las demás obligaciones que impone esta ley, podrá solicitar el resarcimiento a terceros que hayan contribuido a que se produjera el hecho que dio lugar a la compensación, a la reducción del precio o al cumplimiento de otras obligaciones”. En la medida que las causas de exoneración de una reducción del precio y de una indemnización por daños y perjuicios no coinciden –como se desprende de los apartados 1 y 3 del art. 162, respectivamente–, una equiparación entre ambos remedios frente a una falta de conformidad a los efectos de “solicitar el resarcimiento a terceros” también podrá dar lugar a opiniones contrapuestas.

El Impacto de la Inteligencia Artificial como Producto de Consumo

Doutrina

Por Jesús Mendoza Díaz, Doctorando en el Área de Derecho Civil de la Universidad de Jaén[1]

La Inteligencia Artificial (IA) está encaminada a ser un “trending topic” en el ámbito jurídico, siendo la principal artífice de la nueva digitalización en el mundo, y posiblemente la gran revolución del siglo XXI.  La IA se encuentra hoy dotada de una triple facultad, cuyas cualidades para interpretar, discernir y decidir sobre un elenco de posibilidades, la catapultan a sustituir al ser humano en una multitud de facetas que nunca se han visto. La clave de este proceso se concentra en el “machine learning” y en el “deep learning” de los algoritmos, que pueden originar decisiones automáticas, a través del auto-aprendizaje adquirido.

No obstante, se cuestiona, en muchos casos, en la confiabilidad del algoritmo, dado que a veces pueden resultar opacos, con patrones oscuros o sin la información suficiente, llegando a producir situaciones ilegales y supuestos de discriminación para los consumidores. Convirtiéndose así la inteligencia artificial en un arma arrojadiza y volátil, cuyos riesgos deben ser evaluados por el Derecho y por los sistemas jurídicos nacionales, para ofrecer una pronta respuesta a los ciudadanos ante la eventualidad de los daños.

A su vez, se ha ido configurando un nuevo tipo de consumidor, más adicto a las nuevas tecnologías, más innovador y progresista, en concordancia con la época actual que estamos viviendo, en el que no existe ningún reparo en adentrarse en un mundo virtual lleno de apps y de datos contenciosos, sin conocer a ciencia cierta las oportunidades y peligros que ello conlleva. Pero si hablamos de la naturaleza de la inteligencia artificial, que a menudo depende de conjuntos de datos amplios y variados, puede perfectamente integrarse en cualquier producto o servicio que circula libremente por el mercado interior.

La Unión Europea ha decidido solucionar dicha cuestión, proponiendo las primeras directrices para configurar la primera ley sobre inteligencia artificial en territorio europeo. En su primera resolución del año 2017, prevé la posibilidad de que los robots con inteligencia artificial más sofisticados, posean una “personalidad jurídica específica”, que les otorgaría legitimidad para responder de manera unipersonal frente a los daños causados con la posible creación de un patrimonio propio y de un fondo de compensación. Esta formulación surge como alternativa económica para enajenar la responsabilidad civil de los fabricantes y productores e incentivar la producción científica. Sin embargo, en el resto de las resoluciones, véanse el Libro Blanco sobre inteligencia artificial en 2020 y la Resolución del Parlamento Europeo en 2020, no hacen referencia ni contemplan esta posibilidad. De lo que no cabe duda, es que los robots con inteligencia artificial, desde el punto de vista jurídico serán sometidos al concepto de “producto” y de “producto defectuoso”.

A pesar de ello, actualmente las normas tradicionales sobre consumo no están preparadas para acoger los nuevos supuestos de responsabilidad civil que se originen de la inteligencia artificial. Los términos “producto” y “consumidor” siguen siendo ambiguos y confusos; dado que, por ejemplo, en España, se refiere como producto a cualquier bien mueble, o así, como el gas o la electricidad[2]. Y en Portugal, por ejemplo, el legislador no distingue bien entre consumidor de bienes y usuarios de servicios[3]. Inevitablemente dichas legislaciones son anteriores al nacimiento de la nueva inteligencia artificial, por ello, la Unión Europea está encaminada a crear una normativa sui generis con una repercusión trascendental sobre el resto de las directivas y de leyes nacionales, en las que sea posible incluir de manera notoria y específica a la robótica con inteligencia artificial como un producto de consumo.


[1] Trabajo apoyado económicamente por la Escuela de Doctorado de la Universidad de Jaén, para optar a la Mención internacional en el título de doctor en el momento de presentar la tesis doctoral.

[2] Artículo 136 TRLGDCU (Real Decreto Legislativo 1/2007, de 16 de noviembre, por el que se aprueba el texto refundido de la Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuarios y otras leyes complementarias).

[3] Artículo 2 LDC (Ley nº 24/96 de 31 de julio, para la defensa de los consumidores).

O Robô de Cozinha da Lena

Consumo em Ação

Por André Neves, Beatriz Pereira e Luís Cruz

Hipótese: Lena foi a uma demonstração de Bimbitas a casa de uma amiga e acabou por comprar um robô de cozinha. Apenas o fez porque a representante da marca também lhe ofereceu a possibilidade celebrar um contrato de crédito com outra empresa. Lena nem precisava de se preocupar, pois a empresa de crédito pagaria diretamente à Bimbitas, Lda. o valor do robô de cozinha, ficando Lena apenas com a obrigação de pagar as prestações mensais relativas ao crédito. Quando a Bimbita chegou, Lena percebeu que esta não funcionava. Já passou algum tempo e a questão não está resolvida. Lena tem de continuar a pagar as prestações?

Resolução: Lena celebrou dois contratos: um contrato de compra e venda de uma Bimbita com a Bimbitas, Lda., e um contrato de crédito ao consumo com outra empresa. Primeiramente, há que analisar que direitos pode a Lena exercer em relação à Bimbita que comprou à Bimbitas, Lda.. De seguida, importa averiguar se estamos perante um contrato de crédito coligado. Dados estes passos, conseguiremos dar resposta à questão.

Quanto aos direitos que Lena poderá eventualmente exercer em relação à Bimbita, importa analisar o DL 67/2003. Parecem estar preenchidos os quatro elementos do conceito de consumidor (art. 1.º-B-a)): elemento subjetivo, elemento objetivo, elemento teleológico e elemento relacional. Assim sendo, estando perante um contrato de compra e venda (art. 1.º-A-1), podemos concluir que o diploma é aplicável à relação contratual em análise.

Refere o art. 2º-1 que “[o] vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda”, e as alíneas do art. 2.º-2 são no fundo “critérios [formulados pela negativa] que têm como objetivo definir os elementos que integram o contrato, […] para depois, no momento do cumprimento, [se] aferir se o objeto prestado corresponde ao objeto contratado”[1] [2]. Assim sendo, não obstante a sua letra, o art. 2.º-2 não deve ser interpretado no sentido de consagrar uma presunção[3]; em termos figurados, diríamos que a norma se dirige ao consumidor, “dizendo-lhe” que se ele conseguir provar um dos factos previstos nas alíneas, em princípio haverá falta de conformidade[4]. Sendo que a Bimbita pura e simplesmente não funciona, parece-nos que Lena conseguiria desde logo provar, quer o facto descrito na alínea d), quer o facto descrito na alínea c)[5], pelo que, não estando obviamente em causa o art. 2.º-3, há falta de conformidade.

Dispõe o art. 3.º-1 que o vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue, e o n.º 2 do mesmo artigo explicita, para o que nos importa, que as faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea presumem-se existentes já nessa data. Ora, estando perante uma dispensa ou liberação do ónus da prova[6], cabe ao profissional fazer prova de que a falta de desconformidade não existia no momento da entrega do bem. Assim sendo, a Bimbitas, Lda. teria de provar um facto posterior concreto, que não lhe seja imputável, gerador da falta de conformidade[7], e tanto quanto sabemos esse facto não existiu.

Tendo a Bimbitas, Lda. de responder pela falta de conformidade, Lena tem os quatro direitos previstos no art. 4.º-1, sendo livre de exercer o que entender, uma vez que não é estabelecida qualquer hierarquia entre eles[8], tendo apenas como limite a impossibilidade e o abuso de direito (art. 4.º-5). Uma vez que a Bimbita não funciona, parece-nos que faria sentido que Lena pedisse a reparação, a restituição ou a resolução do contrato, embora pudesse também pedir uma redução adequada do preço, caso fosse essa a sua vontade. Entendemos que nenhuma das opções constituiria abuso de direito (e com toda a probabilidade não se levantariam problemas de impossibilidade) e, portanto, Lena tem dois anos a contar da data da entrega do bem para exercer um dos direitos referidos (art. 5.º-1).

É referido no enunciado que já passou algum tempo desde que a Bimbita chegou e a questão não está resolvida. Ora, se a questão não estiver resolvida porque Lena não chegou a interpelar a Bimbitas, Lda., caso já tenha passado mais de dois meses da data em que detetou a desconformidade, ela não poderá exercer os direitos que lhe são atribuídos nos termos do art.4.º (art. 5.º-A-2). Não temos informações relativas ao facto de Lena ter ou não interpelado a Bimbitas, Lda. dentro do prazo referido; contudo, para efeitos de prossecução na resolução da hipótese, vamos assumir que interpelou e, não obstante, não teve o seu problema resolvido.

Posto isto, importa agora partir para a análise da questão principal à luz do DL 133/2009, que, à partida, é aplicável ao contrato de crédito ao consumo celebrado entre Lena e a empresa de crédito (art. 1.º-2 e art. 4.º-1 a), b) e c) do referido diploma)[9].

Para concluirmos se Lena tem ou não de continuar a pagar as prestações mensais relativas ao crédito, temos de perceber se existe uma conexão bastante entre o contrato de compra e venda e o contrato de crédito ao consumo. O DL em análise tem uma figura interessantíssima, que é a figura do contrato de crédito coligado, cuja definição se pode encontrar no seu art. 4.º-1-o). Ora, o pressuposto da i) está verificado, na medida em que o crédito concedido serve exclusivamente para financiar o pagamento do preço do fornecimento da Bimbita. Quanto ao da ii), está igualmente verificado: ambos os contratos constituem objetivamente uma unidade económica, desde logo porque a empresa de crédito recorreu à Bimbitas, Lda. para a celebração do contrato de crédito[10]. Estando os dois pressupostos preenchidos, podemos concluir no sentido de que temos um contrato de crédito coligado.

Havendo um contrato de crédito coligado, podemos partir para a análise do art. 18.º, que refere, no seu n.º 2, que “a invalidade ou revogação do contrato de compra e venda repercute-se, na mesma medida, no contrato de crédito coligado”. Ora, não obstante a norma não aludir à ineficácia, seguimos Fernando de Gravato Morais[11] e Jorge Morais Carvalho, ensinando-nos o último que “tendo em conta a razão de ser do preceito, e não existindo diferenças substanciais entre as duas situações, […] [deve entender-se que] noutros casos de ineficácia, diversos da revogação (leia-se exercício do direito de arrependimento), a norma também tem aplicação”[12]. Assim sendo, importa agora analisar o DL 24/2014, que ao que tudo indica é aplicável à relação contratual entre Lena e a Bimbitas, Lda., na medida em que tudo nos leva a crer que estamos perante um contrato entre um consumidor e um profissional celebrado fora do estabelecimento comercial (art. 2.º-1, art. 3.º-g)-iv), art. 3.º-c) e art. 3.º-i)). Nos termos do art. 10.º-1-b) deste diploma, regra geral, o consumidor tem direito de arrependimento no prazo de 14 dias a contar do dia em que adquire a posse física do bem. Ora, o enunciado parece dar-nos a entender que este prazo já passou (“Já passou algum tempo”); contudo, caso não tenha passado, Lena pode exercer este direito nos termos do art. 11.º e, portanto, ver automaticamente repercutir-se a ineficácia do contrato de compra e venda no contrato de crédito ao consumo (art. 18.º-2 do DL 133/2009), tendo “o dever de informar o financiador da ineficácia do contrato de crédito para que este possa tomar as medidas que entenda adequadas no âmbito da sua relação com o vendedor ou prestador do serviço”[13]. Nesta situação, Lena não teria de continuar a pagar as prestações mensais relativas ao crédito[14], tal como não teria de continuar a pagá-las se, partindo do pressuposto de que estaríamos dentro do prazo previsto pelo art. 17.º do DL 133/2009, exercesse o direito de arrependimento relativamente ao contrato de crédito[15].

Resta-nos analisar o art. 18.º-3, o qual refere que, no caso de desconformidade no cumprimento de contrato de compra e venda coligado com contrato de crédito, o consumidor que, após interpelação do vendedor[16], não tenha obtido deste a satisfação do seu direito ao exato cumprimento do contrato, pode interpelar o financiador para exercer uma de três pretensões previstas nas alíneas do art. 18.º-3. Assumindo que Lena já interpelou a Bimbitas, Lda. para que esta procedesse ao cumprimento pontual do contrato, e esta não prestou o bem “em conformidade com o contrato dentro de um prazo razoável, […] pode aquela recorrer ao financiador com o objetivo de salvaguardar a sua contraprestação”[17]. Se a Lena tivesse exercido o direito de reparação ou de substituição perante a Bimbitas, Lda., poderia exercer a exceção de não cumprimento do contrato perante o financiador (art. 18º-3-a)). Por outro lado, se eventualmente tivesse exigido a redução do preço perante a Bimbitas, Lda., o que no caso não faria muito sentido, poderia interpelar o financiador no sentido de exigir a redução do montante do crédito em montante igual ao da redução do preço (art. 18º-3-b)). E, por fim, caso tivesse exercido o direito de resolução perante a Bimbitas, Lda., poderia exigir a resolução do contrato de crédito perante o financiador (art. 18º-3-c)). Existe um paralelismo entre as soluções relativamente ao contrato de crédito e as soluções relativamente ao contrato de compra e venda, isto é, Lena pode fazer repercutir no contrato de crédito a solução que resulta do direito que tiver exercido relativamente ao contrato de compra e venda (qualquer um dos previstos no art. 4.º-1 do DL 67/2003). Sem prejuízo do que aqui foi exposto, partindo do pressuposto de que Lena quer, de facto, a Bimbita e, por isso, exerceu o seu direito de reparação ou de substituição perante a Bimbitas, Lda. (art. 4.º-1 DL 67/2003), o qual não foi satisfeito, pode interpelar o financiador e exercer a exceção do não cumprimento do contrato (art. 18.º-3-a) do DL 133/2009), não pagando, assim, as prestações mensais relativas ao crédito enquanto o bem não for reparado ou substituído pela Bimbitas, Lda..


[1] JORGE MORAIS CARVALHO, Manual do Direito do Consumo, Almedina, 2020, p.285.

[2] Ac. do STJ de 19 de novembro de 2015, Processo n.º 139/12.0TVLSB.L1.S1 (Oliveira Vasconcelos).

[3] JORGE MORAIS CARVALHO e MICAEL MARTINS TEIXEIRA, Duas Presunções Que Não São Presunções: A Desconformidade na Venda de Bens de Consumo em Portugal, in “Revista de Direito do Consumidor”, Vol. 27, n.º 115, 2018, pp. 311-330.

[4] JOÃO CALVÃO DA SILVA, Venda de Bens de Consumo, Almedina, 2003, p. 61.

[5] Bastaria provar um deles, mas de facto o não funcionamento geral da Bimbita cabe perfeitamente tanto na alínea c) quanto na alínea d).

[6] JORGE MORAIS CARVALHO, Manual do Direito do Consumo, cit., p. 319.

[7] Ibidem, p. 320.

[8] Ibidem, p. 323.

[9] Não temos elementos que nos levem a concluir em sentido contrário.

[10] JORGE MORAIS CARVALHO, Manual do Direito do Consumo, cit., p. 463.

[11] FERNANDO GRAVATO DE MORAIS, Crédito aos consumidores, Almedina, 2009, p. 88.

[12] JORGE MORAIS CARVALHO, Manual do Direito do Consumo, cit., p. 464.

[13] Ibidem, p. 465

[14] E teria obviamente direito a que lhe fosse devolvido o montante que já tivesse pago, tanto no caso em que exerce o direito de arrependimento relativamente ao contrato de compra e venda perante a Bimbitas, Lda.., quanto no caso em que exerce o direito de arrependimento relativamente ao contrato de crédito perante a empresa de crédito.

[15] Nos termos do art. 18º-1, a ineficácia do contrato de crédito resultante do exercício do direito de arrependimento repercutir-se-ia também no contrato de compra e venda. Vd. FERNANDO GRAVATO DE MORAIS, Crédito aos consumidores, cit., p. 87

[16] Para que o consumidor possa interpelar o financiador, antes tem de se ter dirigido ao vendedor. Vd. FERNANDO DE GRAVATO MORAIS, Crédito aos consumidores, cit., pp. 89-89.

[17] JORGE MORAIS CARVALHO, Manual do Direito do Consumo, cit., p. 467.

As Criptomoedas – Um Fenómeno Monetário Emergente com Relevo para o Direito do Consumo?

Doutrina

Por José Engrácia Antunes

I. As criptomoedas (“cryptocurrencies”, “cryptomonnaies”, “Cryptowährungen”, “criptomonete”), também por vezes designadas moedas virtuais ou cibermoedas, podem definir-se com um tipo de moeda emergente em suporte digital cuja emissão, titularidade e transmissão assenta numa tecnologia de registo criptográfico e descentralizada de dados digitais (“blockchain”), que é aceite no âmbito de uma comunidade virtual e é suscetível de desempenhar as funções monetárias (meio de troca, unidade de conta, reserva de valor).

II. As criptomoedas representam a mais recente etapa da história monetária – uma história multimilenar, aliás, sempre renovada e em permanente devir. Após a exclusividade da moeda física (notas de papel e moedas metálicas) durante séculos a fio, a hegemonia da moeda bancária (“bank money” ou “b-money”) desde meados do séc. XX, a emergência da moeda eletrónica (“electronic money” ou “e-money”) em plena viragem para o séc. XXI, eis que, no espaço de apenas uma década, assistimos à génese ou embrião de um novo tipo ou espécie de moeda – a moeda virtual (“virtual money” ou “v-money”).

III. A origem histórica das criptomoedas está indissoluvelmente ligada ao estudo seminal e pioneiro do enigmático Satoshi Nakamoto, intitulado “Bitcoin: A Peer-to Peer Electronic Cash System”, publicado em 31 de dezembro de 2008, que concetualizou um novo tipo de moeda exclusivamente assente numa rede direta de participantes (“peer-to-peer”) baseada numa nova tecnologia descentralizada e criptográfica de registo, tratamento e armazenamento eletrónico de dados que permite assegurar um sistema de emissão e circulação de moeda e de pagamentos sem necessidade da intervenção de intermediários, mormente bancos (“blockchain”).

IV. O relevo económico desta nova espécie monetária é muito significativo, tendo as criptomoedas, no espaço de pouco mais de uma década, registado uma enorme difusão. À data em que escrevemos (1 de julho de 2021), a capitalização do mercado das criptomoedas era de aproximadamente 1 455 biliões de dólares, com mais de 5 400 tipos de criptomoedas em circulação e um volume diário de transações na ordem dos 89 biliões de dólares. A criptomoeda dominante é a “Bitcoin” (BTC), com cerca de 18,7 milhões de unidades em circulação, com valor unitário de 35 077 dólares e representando cerca de 45% do total do mercado: relembre-se que esta moeda, que atingiu a paridade com o dólar apenas dois anos após a sua primeira emissão (2011), chegou já a atingir no corrente ano de 2021 o valor astronómico de 63 523 dólares por “bitcoin”. Outras criptomoedas com difusão e capitalização de mercado relevantes são a Ether (18,27%), Tether (3,78%), Cardano (4.33%), Binancecoin (3,21%), Cardano (3,05%), Dogeoin (2,28%), XRP (2,21%), USCoin (1,75%) e Polkadot (1,07%), representando todos os demais milhares de moedas em circulação cerca de 17% do mercado.

V. Desde o seu aparecimento, as criptomoedas têm sido o mote de apaixonadas discussões, que alternam entre a fascinação confessa e a crítica feroz. Para os seus admiradores, elas representam a “alvorada” de uma nova era jurídico-financeira e tecnológica (Don Tapscott): enquanto moeda privada independente dos Estados e dos bancos centrais e comerciais, ela permite assegurar as funções monetárias diretamente pelas próprias partes das transações económicas (“peer-to-peer”) sem necessidade da intermediação de terceiros, com ganhos de eficiência, rapidez, segurança, polivalência e privacidade. Para os seus detratores, pelo contrário, as criptomoedas são sinónimo de risco e infortúnio (Paul Krugman), sendo-lhe apontados os perigos da volatilidade, inconvertibilidade, anomia regulatória, potencial uso ilícito e impacto sistémico.

VI. As criptomoedas são hoje, no essencial, um fenómeno que não foi ainda objeto de uma regulação própria no mundo do Direito. A extrema novidade das moedas virtuais, a sua matriz tecnológico-computacional (dando origem a uma espécie de criptês” exotérico para os quadros tradicionais dos juristas) e a controvérsia reinante em torno das suas vantagens e riscos tem conduzido a uma verdadeira encruzilhada regulatória ou “criptodilema” (Bert-Jaap Koops): se alguns defendem uma estratégia regulatória minimalista, assente num princípio de autonomia privada e de autorregulação, outros inversamente sustentam ser necessária a intervenção do legislador na matéria, subordinando as criptomoedas a um quadro legal de emissão, circulação e supervisão adequado.

VII. Qualquer que seja a estratégia regulatória que venha a vingar no futuro, afigura-se inequívoco a multiplicação, nos últimos anos, das intervenções de natureza legislativa, regulamentar e até jurisprudencial na matéria – dando origem a um mosaico regulatório assaz incipiente, fragmentário e inarticulado de “fontes” internacionais, europeias e nacionais.

VIII. Ao nível internacional ou comparado, assiste-se a uma profusão algo errática de entendimentos. Sirva de ilustração o caso dos Estados Unidos da América, onde a autoridade federal dos crimes financeiros (“Financial Crimes Enforcement Network” ou FinCen) qualificou as criptomoedas como um valor equivalente a moeda (“value”), a autoridade tributária (“Internal Revenue Service” ou IRS) como “propriedade” (“property”), e a autoridade de supervisão do mercado de capitais (“Securities Exchange Commission” ou SEC) como “valores mobiliários” (“securities”) sempre que tenham por função essencial o investimento e a captação de fundos.

IX. Ao nível da União Europeia, destacam-se as noções de moeda virtual contidas na Diretiva UE/2015/849, de 20 de maio (art. 3.º, 18], na versão dada pela Diretiva UE/2018/843, de 30 de maio),relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, e na Diretiva UE/2019/713, de 17 de abril, relativa ao combate à fraude e à contrafação de meios de pagamento que não numerário (art. 2.º, d]). A jurisprudência europeia também já equiparou os pagamentos realizados em “bitcoins” e em divisas tradicionais para efeitos fiscais (Acórdão do TJUE de 22-X-2015 [Skatteverket v. David Hedqvist]). Mais recentemente, merece especial destaque a proposta de um Regulamento Relativo aos Mercados de Criptoativos de 2020: entre os objetivos desta proposta, encontram-se a promoção da inovação tecnológica, a preservação da estabilidade financeira e a proteção dos investidores dos riscos, bem assim como a segurança jurídica relativamente aos emitentes e aos prestadores de serviços de criptoativos (Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, relativo aos mercados de criptoativos e que altera a Diretiva (UE) 2019/1937, COM(2020) 593 final).

X. Enfim, ao nível de Portugal, são também escassas e de teor genericamente precaucionista as referências ao fenómeno das moedas virtuais. Entre elas, pode referir-se os arts. 2.º, ll), 112.º, 112.º-A e 169.º-A, ccc) da Lei nº 83/2017, de 18 de agosto, vulgarmente designada como Lei do Branqueamento de Capitais e Financiamento de Terrorismo (relativos à noção de ativo virtual e à supervisão das entidades prestadoras de serviços sobre moedas virtuais); os diversos comunicados da autoridade de supervisão do mercado bancário (v.g., “Esclarecimento do Banco de Portugal sobre Bitcoin” (2013), Carta Circular do BdP nº 011/2015/DPG, de 10 de março, etc.), da autoridade de supervisão do mercado financeiro (v.g., “Comunicado às Entidades Envolvidas no Lançamento de «Initial Coin Offerings» (ICOs) Relativo à Qualificação Jurídica dos Tokens” de 2018) e até da própria autoridade tributária (v.g., Processos nº 5717 e 14763, por despachos respetivamente de 27/12/2016 e 28/1/2019).

XI. Sublinhe-se, aliás, que, se o Direito tem avançado lentamente, a realidade económica das criptomoedas não parou, trazendo assim novos fatores a ser tidos em conta na sua equação jurídica. Exemplos disso são as criptomoedas estáveis – uma modalidade especial de moeda virtual que incorpora mecanismos de estabilidade destinados a mitigar o típico problema da volatilidade criptomonetária (“maxime”, a projetada Libra do Facebook) – e as criptomoedas públicas – uma espécie de versão virtual da moeda física tradicional, emitida e garantida pelas próprias autoridades monetárias oficiais (“maxime”, o “Digital Currency/ Electronic Payment” (DCEP) lançado pela República Popular da China em 2021, que constitui uma espécie de “yuan digital” destinado a substituir a prazo o “yuan” físico).

XII. Malgrado não tenham obtido uma consagração ou regulação expressa na Ordem Jurídica, as moedas virtuais são uma espécie monetária juridicamente relevante, colocando problemas aos mais variados ramos do Direito, desde o direito das obrigações e dos direitos reais ao direito comercial ou ao direito financeiro, passando pelo direito fiscal, direito penal ou direito internacional privado. Isso também é verdade para o Direito do Consumo – sendo várias a ilustrações desta relevância, aqui apresentadas sob forma interrogativa.

XIII. Será de qualificar como compra e venda o negócio de aquisição cujo preço seja saldado em criptomoedas? Suponha-se que um consumidor A encomendou no “site” da empresa B um livro, em contrapartida do pagamento de 0,0018 bitcoins ou 18 mBTC (o equivalente atual a 50 euros): será tal negócio de qualificar como uma compra e venda de consumo, considerando o pagamento criptomonetário como cumprimento da obrigação de pagamento de “preço” para efeitos dos arts. 550.º e 874.º do Código Civil, enquanto tal sujeito às disposições gerais da Lei de Defesa do Consumidor, da Lei da Venda de Bens de Consumo, e das demais leis especiais consumeristas?

XIV. É sabido que as criptomoedas possuem, a par das suas inegáveis vantagens (v.g., desintermediação, rapidez, segurança, universalidade, polivalência, privacidade), também assinaláveis riscos, entre as quais se destacam a sua volatilidade, instabilidade, anomia regulatória e potencial uso ilícito. Assim se compreende que as autoridades de supervisão europeias e portuguesa tenham vindo a emitir sucessivos alertas aos consumidores e usuários neste sentido (v.g., entre nós, “Esclarecimento do Banco de Portugal sobre Bitcoin” (2013), “Alerta aos Consu­midores para os Riscos de Utilização de Moedas Virtuais” (2014), “Banco de Portugal Reitera Alertas aos Consumidores sobre Riscos Associados aos Ativos Virtuais” (2021)). Serão suficientes as normas gerais do consumo para fazer face a estes riscos ou justifica-se a previsão de uma tutela específica dos consumidores neste novel domínio?

 XV. É sabido que as criptomoedas são dotadas de uma polivalência funcional, podendo desempenhar, a par das suas funções monetárias (meio de pagamento e reservas de valor), funções de investimento (“investment tokens”), de consumo (“utility tokens”) e híbridas (“hybrid tokens”). Os “utility tokens” constituem justamente são um tipo particular de criptomoeda que, desempenhando uma função nuclear de uso e consumo, confere ao titular direitos presentes ou futuros relativos aos produtos ou serviços da entidade emitente, v.g., direito de aquisição de determinado bem ou serviço lançado por esta, direito de acesso especial a comunidades, redes sociais, plataformas eletrónicas, motores de busca, bases de dados ou conteúdos virtuais, direito de utilização de aplicações, “software” ou tecno­logias digitais, etc. (v.g., “Filecoin”; “Status”, NFT). Devem as criptomoedas com funções de consumo (“utility tokens”) ser objeto da regulação por parte das leis do consumo?

XVI. É sabido que os juros são o custo de oportunidade do consumo presente em termos de consumo futuro, representando “o prémio de renúncia à liquidez” (J. Maynard Keynes). Quando alguém empresta dinheiro, está diferindo ou trocando o seu consumo no momento atual por um consumo futuro, sendo que, de acordo com uma regra de racionalidade económica, deverá existir uma relação positiva entre ambos, já que não é de esperar que um consumidor esteja disposto a adiar ou postergar as suas aquisições de bens ou serviços caso o valor do consumo futuro não seja superior ao valor do consumo atual. Deverão ou não as obrigações pecuniárias expressas em criptomoeda vencer juros?

XVIII. Eis apenas algumas das dúvidas às quais, mais tarde ou mais cedo, o jurista será chamado a responder.