Web scraping e o RGPD: Como garantir uma recolha lícita de dados pessoais

Doutrina

A raspagem da web (“web scraping”) é uma prática que permite aos programadores de inteligência artificial (“IA”) recolher grandes quantidades de dados para treinar os seus modelos. Este processo automatiza a recolha de dados, através de pedidos de acesso (GET requests) feitos a Localizadores Uniformes de Recursos (Uniform Resource Locators, ou “URLs”) específicos. O web scraping é frequentemente emparelhado com ferramentas de web crawling que atualizam dinamicamente as listas de URLs a serem processados, expandindo ainda mais o âmbito da recolha de dados.

No desenvolvimento da IA, o web scraping desempenha um papel vital. A eficácia dos modelos de IA depende frequentemente da qualidade, quantidade e diversidade dos dados com que são treinados. Ao facilitar a recolha rápida e em grande escala de dados, o web scraping fornece a matéria-prima para treinar estes modelos. Contudo, a recolha de dados – que na maioria dos casos irá incluir dados pessoais – através de web scraping suscita preocupações em termos de proteção de dados. Os princípios fundamentais do Regulamento Geral de Proteção de Dados (“RGPD”) – como a minimização, transparência e licitude – opõem-se geralmente a esta forma de recolha de dados pessoais em massa. Em particular, o princípio da licitude exige que todo o tratamento de dados seja feito com base numa das bases legais consagradas no RGPD. Dada a falta de contacto direto com o titular de dados, a quantidade de dados pessoais potencialmente recolhida e o caráter ‘silencioso’ da prática, a utilização destas ferramentas tem sido considerada como contrária ao RGPD por falta de uma base legal aplicável.

Mas será mesmo assim? Será que nenhuma das bases legais do RGPD permite, em situação alguma, a utilização desta ferramenta de recolha de dados?

Artigos 6.º e 9.º do RGPD

O tratamento de dados pessoais é proibido, exceto se justificado por uma base legal constante dos arts. 6.º e 9.º do RGPD, se aplicável. O art. 6.º aplica-se a todo o tratamento de dados pessoais, enquanto o art. 9.º regula a utilização de categorias especiais de dados, como dados que revelem origem racial, opiniões religiosas, orientação sexual ou dados relativos à saúde, que exigem salvaguardas mais rigorosas.

Assim, para que o web scraping seja permitido, pelo menos uma das bases constantes dos arts. 6.º e 9.º – se necessário – deve ser aplicável. Dadas as características deste método de recolha de dados, vemos que as possibilidades estão limitadas aos interesses legítimos consagrados no art. 6.º(1)(f).

Começando pelo art. 6.º, a maioria das bases deve ser excluída, uma vez que a recolha de dados não tem, normalmente, uma interação direta com o titular de dados nem prossegue um interesse protegido pelo RGPD:

Consentimento: o web scraping geralmente não permite cumprir os requisitos para um consentimento válido, uma vez que não é informado (p. ex. os titulares de dados não sabem quem está a raspar os seus dados ou como serão utilizados), não é específico (p. ex., tornar dados pessoais acessíveis ao público não implica o consentimento para a raspagem) e não é inequívoco (p. ex., colocar os dados em linha não equivale a uma autorização explícita para a raspagem).

Execução de um contrato: O web scraping não envolve um contrato com a pessoa em causa, o que torna esta base jurídica inaplicável.

Obrigação legal ou interesse público: Estas bases exigem uma obrigação legal ou um interesse público definido por lei. Uma vez que a raspagem da Web não é legalmente exigida nem legalmente protegida, estas bases não se aplicam.

Interesses vitais: Esta base aplica-se apenas em casos de ameaças imediatas à vida ou à segurança física, que são improváveis em contextos de recolha de dados da internet. Muito embora se possa conceber a utilização de um sistema de IA para proteger os interesses vitais do titular de dados (p. ex. num contexto hospitalar), o mesmo não se aplica ao treino do modelo com base em dados pessoais recolhidos da internet.

Assim, e por exclusão de partes, a única base legal potencialmente aplicável será a relativa a interesses legítimos. Para tal, é necessário demonstrar que o tratamento de dados é necessário ao interesse prosseguido e que não se sobrepõe aos direitos e interesses dos titulares dos dados. No entanto, alcançar este equilíbrio é complexo e depende do caso concreto.

Quando a recolha de dados envolve categorias especiais de dados, aplicam-se condições mais rigorosas nos termos do art. 9.º. Dado o caráter particularmente intrusivo do tratamento destes dados pessoais e o nível de proteção consagrado pelo RGPD, nenhuma das exceções do art. 9.º(2) permite a raspagem de categorias especiais de dados:

Consentimento: o consentimento explícito exigido pelo art. 9.º é mais exigente do que o consentimento previsto no art. 6.º. Este facto torna-o impraticável para a maioria dos cenários de recolha de categorias especiais de dados da internet.

Dados pessoais manifestamente tornados públicos: esta exceção aplica-se se o titular de dados tiver intencionalmente tornado os seus dados pessoais públicos. No entanto, a sua aplicação ao web scraping apresenta dois desafios: demonstração de intencionalidade – os responsáveis pelo tratamento devem demonstrar que os dados pessoais foram deliberadamente partilhados pelo titular de dados com o objetivo de serem publicamente acessíveis – e a aplicação concomitante de uma das bases do art. 6.º, que vimos ser limitada a interesses legítimos.

As outras exceções: a maioria das exceções ao abrigo do art 9.º(2) protegem interesses que não incluem o web scraping para fins de treino de IA. Mesmo que a utilização de um sistema de IA possa ser enquadrada nas situações aí previstas (p. ex., dispositivos usados para diagnóstico médico), a própria recolha de dados para treinar o modelo não será, ou só raramente será, considerada necessária.

Assim sendo, na maioria dos casos, a recolha de categorias especiais de dados por via de web scraping para treinar modelos de IA não será permitida à luz do RGPD, por falta de uma base legal aplicável.

Interesses legítimos e web scraping

Nestes termos, vemos que a única hipótese para um tratamento de dados lícito no contexto de web scraping dependerá da aplicação do art. 6.º(1)(f) do RGPD. Contudo, a sua aplicação depende da passagem por três testes: os responsáveis pelo tratamento devem demonstrar que (i) o interesse prosseguido é legítimo, (ii) o tratamento de dados pessoais é necessário e (iii) não infringe desproporcionadamente os direitos, liberdades e interesses dos titulares de dados. A falha em qualquer uma destas fases fará com que o web scraping não se possa basear em interesses legítimos sendo, portanto, ilícito.

Identificação de um interesse legítimo

Primeiro, os responsáveis pelo tratamento devem definir um interesse específico a ser prosseguido pelo web scraping. O RGPD não fornece uma lista exaustiva de interesses legítimos, pelo que, no caso concreto, devem estar relacionados com necessidades legítimas de dados durante o ciclo de vida do modelo de IA.

Por exemplo, o treino de modelos de IA requer conjuntos de dados diversos de modo a garantir resultados de qualidade. Se a recolha de dados pessoais publicados na Internet permitir obter este conjunto diversificado de dados pessoais, então o responsável pelo tratamento poderá ter um interesse legítimo na recolha dos mesmos.

Contudo, existem limitações na escolha do interesse. Se o modelo em causa que se pretende treinar for proibido – p. ex. ao abrigo de outros Regulamentos da UE, como o Regulamento da IA – então o interesse não pode ser legítimo por ser ilícito. De igual forma, a raspagem de dados publicados na internet de forma claramente ilícita – e.g. websites de piratagem – padecem da mesma falha, na medida em que o acesso a esses dados é igualmente ilícito.

Sendo possível encontrar um interesse que seja legítimo para o web scraping durante o ciclo de vida do modelo de IA, então o primeiro teste está ultrapassado, podendo passar-se para o seguinte.

Necessidade do tratamento de dados

O teste de necessidade é o segundo passo para determinar se os interesses legítimos podem justificar a raspagem da Web. Aqui, o responsável pelo tratamento deve demonstrar:

Que não existem alternativas menos intrusivas: a recolha de dados da internet só deve ser efetuada se não existirem outros métodos que permitam atingir o mesmo objetivo.

Que o escopo da raspagem se limita ao necessário: a não existirem alternativas, que os dados recolhidos devem ser limitados ao estritamente necessário para o objetivo identificado.

Assim, numa primeira fase, os responsáveis pelo tratamento devem avaliar outros métodos para a prossecução do interesse em causa e verificar se permitem alcançar os objetivos determinados. Isto passará primeiramente por verificar se dados pessoais são necessários ou se, alternativamente, é possível alcançar o mesmo objetivo com, p. ex., dados anonimizados ou sintéticos.

Se os dados pessoais foram necessários, então uma segunda fase passará por avaliar outros métodos de recolha que permitam alcançar os mesmos fins. Por exemplo, os responsáveis pelo tratamento devem avaliar se os dados pessoais necessários podem ser obtidos sem raspagem. Se a raspagem da Web for considerada necessária por falta de métodos alternativos, o responsável pelo tratamento deve tomar medidas adicionais para garantir a estrita necessidade dos dados pessoais recolhidos. Por exemplo:

Minimização de dados: Deve definir as categorias de dados pessoais necessários e limitar a recolha de dados a essas categorias. Deve, também, limitar a conjugação de web scraping com web crawling de modo a evitar uma recolha excessiva e indiscriminada de dados pessoais. A utilizar as ferramentas em conjunto, deverá filtrar os dados pessoais obtidos e eliminar aqueles que não são necessários.

Exatidão: Validar regularmente a qualidade e a estrutura dos dados extraídos.

Limitação do armazenamento: Estabelecer períodos de retenção claros e eliminar ou tornar anónimos os dados que já não são necessários. De igual forma, deve minimizar as possibilidades de os dados pessoais serem extraídos com a utilização do modelo final.

Proporcionalidade

Sendo o web scraping necessário ao interesse prosseguido, o passo final para a aplicação do art. 6.º(1)(f) envolve a ponderação dos interesses do responsável pelo tratamento com os direitos, liberdades e interesses dos titulares dos dados. Para tal, é necessário avaliar a natureza do tratamento, o seu âmbito e o seu impacto nos indivíduos, especialmente em grupos vulneráveis como crianças.

Nestes termos, a raspagem da Web coloca dois desafios principais a este equilíbrio:

Dados sensíveis e pessoas vulneráveis: a recolha de dados particularmente sensíveis (p. ex. dados de localização ou financeiros e categorias especiais de dados) ou de dados de indivíduos vulneráveis (p. ex. menores) faz pender a balança para a desproporcionalidade do tratamento de dados. Por isso, a raspagem destes dados pessoais, relativos a estas categorias de titulares de dados, dificilmente passará o crivo da proporcionalidade, devendo ser excluída.

Falta de transparência: A raspagem da Web ocorre frequentemente sem o conhecimento dos titulares dos dados, que podem não ter conhecimento do que foi recolhido, de onde ou para que fim. Esta falta de transparência e frustração das expectativas do titular de dados faz igualmente pender a balança a favor dos interesses do titular de dados.

Para mitigar estas limitações, os responsáveis pelo tratamento devem garantir a segurança dos dados recolhidos de modo a diminuir possíveis riscos derivados do tratamento de dados e, na medida do possível, garantir que os titulares de dados são informados do tratamento.

Assim, em termos de integridade e a confidencialidade, as medidas a adotar dependerão do caso e dos riscos que o treino do modelo de IA pode levantar. De forma geral, os responsáveis pelo tratamento devem:

Avaliar os níveis de risco associados ao web scraping e ao ciclo de vida do modelo de IA, tendo em conta as fontes dos dados, as ferramentas utilizadas para os extrair e para treinar o modelo e a utilização prevista do sistema de IA.

Implementar salvaguardas como encriptação, compartimentação de dados e monitorização contínua para evitar divulgações e acessos não autorizados.

Restringir o acesso às bases de dados, manter registos de acesso e supervisionar a partilha de dados.

Mitigar a possibilidade de o modelo e/ou sistema final fornecer os dados pessoais como output.

Treinar o seu pessoal para identificar e gerir eficazmente os riscos de segurança.

No que toca à necessidade de transparência, embora o RGPD exija que os titulares de dados sejam informados sobre a recolha dos seus dados pessoais (arts. 13.º e 14.º), a raspagem da Web apresenta desafios a esta prestação de informação devido à dificuldade de identificar e notificar o grande número de titulares de dados potencialmente afetados. Neste sentido, o RGPD não exige a notificação individual do titular de dados quando esta implica um esforço desproporcional ao responsável pelo tratamento (art. 14.º(5)(b)). Fatores como a idade dos dados, a sua pseudonimização e a disponibilidade de detalhes de contacto influenciam esta avaliação.

Contudo, mesmo quando o responsável pelo tratamento está isento desta notificação individual, este deve tornar a informação acessível ao público, explicando de forma clara o escopo e finalidade da recolha. Tal passará, por exemplo, pela inclusão dos URLs dos sítios Web extraídos e resumos do conteúdo dos dados de treino. Os responsáveis pelo tratamento devem também cumprir as obrigações de transparência nos termos do artigo 53.º do Regulamento da IA, quando aplicável.

Uma abordagem estratificada ao fornecimento de informações – destacando os pontos-chave logo à partida e oferecendo explicações detalhadas em patamares inferiores – garante a clareza da informação fornecida, equilibrando os seus direitos com os interesses legítimos do responsável pelo tratamento. Nestes termos, embora seja claro que o web scraping não pode ser visto como uma ferramenta a utilizar sem considerações suplementares, a sua exclusão em absoluto também não parece ser clara à luz do princípio da licitude do RGPD. Tudo dependerá do caso concreto e das medidas adotadas pelo responsável pelo tratamento de modo a garantir a necessidade e proporcionalidade dos dados pessoais recolhidos na prossecução do seu interesse legítimo.

O que a Siri não diz sobre o que faz com dados pessoais

Doutrina

Os assistentes de voz virtuais são cada vez mais integrados no nosso dia a dia, permitindo realizar tarefas com simples comandos de voz. No entanto, as implicações da sua utilização para a privacidade dos utilizadores muitas vezes passam despercebidas.

Neste blogpost, vamos explorar os desafios que estes dispositivos apresentam em termos de proteção de dados, focando-nos nas bases de licitude para o tratamento de dados e nos requisitos de transparência que os responsáveis pelo tratamento devem observar.

O que são assistentes de voz virtuais?

Essencialmente, os assistentes de voz virtuais são concebidos para facilitar a execução de tarefas e, ao mesmo tempo, proporcionar ao consumidor acesso a informação. Por exemplo, smartphones já utilizam estes assistentes virtuais para definir alarmes ou lembretes. Da mesma forma, alguns automóveis integram assistentes que permitem ao condutor e ocupantes controlar o GPS por via de comandos de voz. O seu alcance é vasto, não se limitando, portanto, a ser um altifalante inteligente integrado em smartphones, smartwatch ou outro qualquer dispositivo com capacidades de Internet, um microfone e altifalantes.

Contudo, estes assistentes são também softwares complexos que levam ao tratamento de dados do consumidor – por exemplo, comandos de voz – e de eventuais terceiros, como palavras faladas, dados de texto, informações pessoais partilhadas e dados biométricos (reconhecimento de voz). Por exemplo, quando o consumidor pede ao seu assistente virtual para acender as luzes de casa, este capta a sua voz, converte o seu discurso em texto, processa o comando e implementa-o através, por exemplo, de ligação a outros sistemas a que o consumidor lhe tenha dado acesso.

Assim, para traduzir os comandos dos consumidores em ações, os assistentes virtuais têm uma contraparte de software que complementa o suporte físico onde estão integrados e que trata os dados pessoais de modo a executar as tarefas para que foram programados. Este tratamento de dados é complexo, envolvendo frequentemente diversas entidades e protocolos.

Dada a utilização quotidiana destes sistemas e a quantidade – e sensibilidade – dos dados pessoais tratados, dois problemas em particular surgem aquando da sua utilização: a necessidade de uma base de licitude para o tratamento de dados e o cumprimento de deveres de transparência por parte do responsável pelo tratamento.

Bases de licitude aplicáveis

O Regulamento Geral de Proteção de Dados (‘RGPD’) exige que o tratamento de dados pessoais dependa da aplicação de uma base de licitude do seu art. 6.º. Para categorias especiais de dados (por exemplo, dados biométricos), é também exigida a aplicação de uma das exceções do art. 9.º(2). Por isso, um dos elementos essenciais para um tratamento lícito de dados pessoais no contexto de assistentes de voz virtuais será a definição da base (ou bases) legal aplicável.

A escolha passa por compreender os vários tratamentos a que os dados pessoais estão sujeitos. Inicialmente, o assistente está em estado de espera até ser ativado por uma expressão-chave. Com a deteção dessa expressão (e, em alguns casos, o reconhecimento de voz do consumidor), o áudio é transmitido para fora do dispositivo, sendo processado pelo operador do software. Em seguida, o comando do utilizador é transcrito, interpretado e, dependendo da solicitação, pode ser compartilhado com aplicativos de terceiros (por exemplo, para controlar outros dispositivos inteligentes). A resposta ou ação solicitada é então executada.

Neste contexto, diferentes finalidades poderão estar em causa, pelo que a escolha de base de licitude pode variar.

Como vimos, o principal uso de um assistente de voz virtual é executar comandos de voz. Quando este tratamento envolve o armazenamento ou o acesso a informações no dispositivo terminal do consumidor, aplica-se o art. 5.º(3) da Diretiva ePrivacy, que exige o consentimento prévio. Contudo, há uma exceção: se o armazenamento ou o acesso for “estritamente necessário” para fornecer o serviço solicitado, o consentimento não é exigido.

Portanto, quando o tratamento de dados é necessário para a execução do pedido do consumidor, como a captura, transcrição e interpretação de comandos de voz, a base de licitude a utilizar será a execução de um contrato com o consumidor, conforme ao art. 6.º(1)(b) do RGPD. Todo o tratamento de dados suplementar a este – e que não seja necessário para a prestação do serviço solicitado – será, na maioria dos casos, sujeito a consentimento. Isto engloba três casos tipicamente relacionados com assistentes de voz virtuais.

Em primeiro lugar, nos casos em que a voz do utilizador é também utilizada para o identificar, estamos perante o tratamento de dados biométricos conforme definido no art. 4.º(14) do RGPD. O tratamento de tais dados requer não apenas uma base de licitude do art. 6.º, mas também uma exceção constante do artigo 9.º. A exceção será o consentimento explícito do titular dos dados (art. 9.º(2)(a) do RGPD).

Outra situação típica prende-se com o aperfeiçoamento contínuo dos assistentes virtuais levado a cabo pelos seus operadores. Em geral, este tratamento não pode ser enquadrado como necessário para a execução do contrato com o consumidor, pelo que a melhoria do serviço ou o desenvolvimento de novas funcionalidades requerem uma base legal distinta. Com base no raciocínio anterior, em princípio será necessário o consentimento do titular dos dados.

Por último, estes assistentes virtuais podem ter funcionalidades adicionais. Por exemplo, a personalização de conteúdos, embora esperada por alguns consumidores, nem sempre é um elemento intrínseco ao serviço oferecido por estes assistentes. Assim, quando a personalização não é estritamente necessária para a execução do contrato, o consentimento do titular de dados será novamente necessário.

O responsável pelo tratamento deve, assim, garantir que o tratamento de dados está em conformidade com os padrões definidos pelo RGDP e a Diretiva ePrivacy. Caso o consentimento do titular de dados seja necessário – nos casos em que o tratamento de dados não é essencial para a prestação do serviço solicitado, ou aquando do tratamento de categorias especiais de dados – este deve ser fornecido livremente e de forma específica, informada e inequívoca.

Direito de informação

A transparência é outro elemento fundamental. Os responsáveis pelo tratamento devem cumprir os requisitos estabelecidos pelo RGPD, nomeadamente nos arts. 5.º(1)(a), 12.º e 13.º, que impõem a obrigação de informar os utilizadores de forma concisa, transparente e acessível sobre o tratamento dos seus dados pessoais.

Cumprir estas exigências de transparência pode, contudo, ser um desafio significativo para os fornecedores de assistentes de voz virtuais, devido às particularidades tecnológicas desses sistemas.

Um dos principais obstáculos é a necessidade de informar todos os utilizadores — não apenas o consumidor que inicialmente adquire o dispositivo, mas também os utilizadores acidentais que podem interagir com o assistente de voz. Por exemplo, em dispositivos pessoais, como um smartphone, pode haver um único utilizador, mas em dispositivos partilhados, como os utilizados em casas inteligentes ou em automóveis, estaremos potencialmente perante múltiplos utilizadores. A situação torna-se ainda mais complexa quando, por exemplo, um smartphone pessoal se conecta a um carro e o assistente de voz passa a estar disponível para todos os passageiros. Nestes casos, os responsáveis pelo tratamento de dados devem garantir o cumprimento do dever de informação perante todos os titulares de dados cujos dados pessoais trate.

A forma de interação com estes assistentes gera também dificuldades na transmissão desta informação. Políticas de privacidade extensas e complexas, resultantes da integração de múltiplos serviços, podem agravar esta dificuldade. Por isso, embora esta tecnologia seja desenhada para interações por voz, por vezes torna-se necessário incluir ecrãs auxiliares que permitam um acesso facilitado à informação. Outros modelos são possíveis, como por exemplo o envio de hiperligações por e-mail. De igual forma, é recomendado que o dispositivo informe o consumidor e outros titulares de dados de quando está ‘à escuta’ de comandos, através de sinais visuais, como ícones ou luzes. Desta forma, os responsáveis pelo tratamento de dados gerado por estes assistentes podem facilitar o acesso à informação devida nos termos do RGPD, garantindo um tratamento de dados transparente e leal.

Proteção de Dados e Treino de IA: Bases de Licitude e Direito a ser Informado

Doutrina

No domínio da inteligência artificial (“IA”), uma das preocupações fundamentais prende-se com o tratamento de dados pessoais em conformidade com as normas aplicáveis, em particular, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (“RGPD”).

Desde a compreensão das bases jurídicas que regem a utilização de dados pessoais até ao cumprimento dos direitos dos titulares dos dados e à promoção da transparência, o nosso objetivo neste post será o de desvendar as complexidades e oferecer conhecimentos práticos sobre como fazer o tratamento de dados no contexto da IA, de uma forma compatível com o RGPD.

Compreender as bases de licitude nos sistemas de IA

Nesta secção, aprofundamos o aspeto crítico das bases de licitude do art. 6.º RGPD para um tratamento lícito de dados pessoais por sistemas de IA, esclarecendo como os dados pessoais podem ser utilizados nestes sistemas.

Em primeiro lugar, é preciso compreender que os sistemas de IA são treinados com dados pessoais obtidos através de diversas fontes. Estes canais incluem principalmente a recolha de dados da Internet (o web scraping, cuja licitude já tem sido questionada por autoridades de supervisão a nível mundial), as informações fornecidas pelo utilizador já após o lançamento do sistema (e.g. ao utilizar o ChatGPT e ao enviar comandos, podem essas instruções conter dados pessoais que são utilizados para treinar o sistema) e, por último, terceiros, como bases de dados de terceiros.

Com base nestas fontes de dados pessoais, é-nos possível elencar três bases de licitude principais incluídas no art. 6.º do RGPD, que poderão ser usadas para treinar sistemas de IA com dados pessoais.

Execução de um contrato

O artigo 6.º, n.º 1, alínea b), do RGPD permite o tratamento de dados pessoais quando tal seja necessário para a execução de um contrato com o respetivo titular de dados. No entanto, a aplicação desta base ao treino de IA está sujeita a condições estritas.

Em particular, deve ser demonstrado que o treino do sistema de IA (e não apenas a sua utilização após o treino) é estritamente necessário para o cumprimento de um contrato com a pessoa em causa. Este requisito tem vindo a ser interpretado de forma restritiva, exigindo que o objeto principal do contrato seja impossível sem esse tratamento dos dados pessoais. No contexto da IA, isto cria cenários limitados nos quais a base contratual pode ser viável, muito provavelmente apenas em circunstâncias em que o sistema de IA é adaptado ao titular de dados (por exemplo, quando output de um modelo linguístico é personalizado para ser semelhante à forma como o consumidor responderia, ou com base em algum conhecimento pré-determinado do mesmo).

Quanto à segunda parte desta base jurídica – a necessidade de tomar diligências pré-contratuais – a sua utilização exige a demonstração de que não há outra forma de satisfazer as exigências de um titular de dados que possa potencialmente querer celebrar um contrato que não sejam treinar (e, mais uma vez, não utilizar apenas depois de treinado) o sistema de IA. Esta parece ser uma opção ainda mais limitada do que a primeira parte desta base de licitude.

Em suma, a possibilidade de utilizar um contrato como base jurídica para treinar sistemas de IA com dados pessoais parece limitada a casos muito específicos, não sendo, em regra, a primeira escolha a ponderar.

Interesses legítimos

Os interesses legítimos do responsável pelo tratamento é das bases mais versáteis do art. 6.º do RGPD, sendo utilizável nestas circunstâncias. Contudo, a utilizá-la, deve efetuar-se uma avaliação caso a caso para garantir que esses interesses não limitam de forma desproporcional os direitos e liberdades dos titulares dos dados. Esta análise torna-se particularmente difícil quando a entidade por detrás do treino do sistema de IA não tem contacto direto com os titulares dos dados. A luta da OpenAI com a Autoridade Italiana de Supervisão da Proteção de Dados é um exemplo claro desta dificuldade. De facto, ao utilizar o interesse legítimo como base legal para o treino do ChatGPT, a empresa vinculou a licitude do treino a uma base legal que é inerentemente vaga e incerta, dado também o direito das pessoas em causa de se oporem a esse tratamento.

Assim, para se fazer valer desta base de forma eficaz, os responsáveis pelo tratamento terão de fazer uma avaliação do interesse legítimo, em que verificam se o tratamento de dados corresponde às expectativas razoáveis das pessoas em causa, demonstram a estrita necessidade do tratamento (por exemplo, demonstrando que a IA não pode funcionar corretamente sem os dados pessoais em questão) e que o tratamento tem devidamente em conta os interesses das pessoas em causa.

Além disso, têm de garantir que as pessoas em causa sejam informadas de forma adequada do tratamento de dados, nos termos dos artigos 13.º e 14.º do RGPD, bem como a criação de um sistema eficaz para a objeção de titulares de dados a este tratamento.

Consentimento

O consentimento como base de licitude apresenta desafios derivados da forma comos os dados pessoais são recolhidos, frequentemente sem contacto direto com os titulares de dados. Embora em casos extremos possa ser a única base jurídica possível (por exemplo, ao processar categorias especiais de dados em conformidade com o art. 9.º do RGPD), o cumprimento dos requisitos do RGPD para um consentimento válido – incluindo a clareza, a especificidade e a inequivocidade – é uma exigência elevada no contexto do treino de sistemas de IA.

Em conclusão, a seleção de uma base jurídica adequada para o treino de sistemas de IA é uma tarefa complexa. Enquanto a execução de um contrato e o consentimento enfrentam limitações práticas, os interesses legítimos do responsável pelo tratamento, embora sendo uma base incerta, surge como a opção potencialmente mais adequada.

Transparência e direito de ser informado

Nesta secção, aprofundamos um aspeto crítico de conformidade com o RGDP: a transparência e o direito a ser informado nos termos dos arts. 13.º e 14.º do RGPD.

Assim sendo, a informação devida a titulares de dados – e o modo como é fornecida – varia consoante a forma como os dados pessoais são recolhidos. Os desafios em cada cenário, quer se trate de recolha de dados indireta ou diretamente do titular de dados, exigem medidas ponderadas para se alinharem com as exigências do RGPD.

Web Scraping

Uma das formas mais comuns de treinar sistemas de IA é por via de web scraping, ou seja através de ferramentas que extraem dados – incluindo dados pessoais – da Internet.

A obtenção de dados pessoais por esta via leva a desafios particulares, não só devido à forma potencialmente ilícita como os dados pessoais são recolhidos, mas também devido à falta de interação direta entre a entidade extratora dos dados e o titular de dados, o que dificulta a transmissão de informação contida no art. 14.º do RGPD. A isto, importa juntar que os operadores de sistemas de IA lidam frequentemente com grandes quantidades de dados extraídos automaticamente da Internet, o que dificulta a própria identificação dos titulares de dados.

Neste contexto, a alínea b) do n.º 5 do artigo 14.º do RGPD define que, quando o fornecimento da informação contida nesse artigo for impossível ou implicar um esforço desproporcionado por parte do responsável pelo tratamento, este fica isento desta obrigação. No entanto, as autoridades de supervisão tendem a interpretar esta exceção de forma restritiva, tornando pouco claro até que ponto os responsáveis pelo tratamento e os criadores de sistemas IA podem utilizá-la de forma eficaz.

Independentemente disso, os criadores de IA devem tomar medidas adequadaspara proteger os direitos e liberdades das pessoas em causa. Isto inclui a publicação de políticas de privacidade nos seus websites e, em alguns casos, a realização de campanhas de informação para garantir que são adotados todos os esforços para informar as pessoas em causa do tratamento de dados.

Embora existam desafios na recolha de dados, medidas proativas e um compromisso com a transparência podem facilitar a resolução destas questões. Os operadores de IA devem esforçar-se por equilibrar o seu tratamento de dados com as normas do RGPD e o direito dos utilizadores a serem informados.

Fornecimento de dados por terceiros

Nos casos em que os dados são fornecidos por terceiros, a colaboração entre as partes envolvidas no tratamento de dados torna-se crucial. Estes terceiros desempenham um papel importante para garantir a transparência no tratamento dos dados, na medida em que são a entidade – idealmente – em contacto com os titulares de dados.

Estas partes, sendo as que obtêm os dados pessoais, ocupam uma posição de ponte entre os criadores de sistemas de IA e os titulares de dados, fornecendo a estes ferramentas e orientações sobre como os seus dados serão processados. O estabelecimento de canais de comunicação claros com estes fornecedores é fundamental, em especial quando se trata de dar resposta ao exercício dos direitos por parte dos titulares de dados.

Dados fornecidos diretamente pelo titular de dados

Finalmente, para os dados recolhidos diretamente dos titulares de dados, aplica-se o artigo 13.º do RGPD. Este artigo exige que os responsáveis pelo tratamento de dados forneçam informações específicas no momento da recolha, incluindo a identidade e os dados de contacto do responsável pelo tratamento de dados, as finalidades do tratamento e a base jurídica. Isto reforça a importância da comunicação e divulgação transparentes, garantindo que os utilizadores são informados sobre a forma como os seus dados serão utilizados. Ao ligar estes pontos, a transparência torna-se um elemento essencial para práticas responsáveis por parte de criadores de sistemas de IA e no alinhamento do seu tratamento de dados com as regras aplicáveis.

Uma nova era de responsabilidade civil extracontratual por danos causados por inteligência artificial

Legislação

À medida que a Inteligência Artificial (“IA”) continua a remodelar o nosso mundo, os criadores e utilizadores de sistemas IA enfrentam um cenário de responsabilidade civil em evolução. Neste post, vamos analisar a proposta de Diretiva de Responsabilidade por danos causados por IA (a AI Liability Directive – “AILD”) e explorar os seus elementos-chave relativamente ao regime de responsabilidade civil extracontratual que consagra.

Compreender a proposta AILD

Tal como explorámos numa publicação anterior, na UE, a responsabilidade extracontratual por danos causados pela IA funcionará num sistema de duas vias, sendo uma delas amplamente harmonizada, graças à proposta de Diretiva relativa à responsabilidade pelos produtos defeituosos (a Product Liability Directive – “PLD”). A outra via envolve um regime de responsabilidade em grande parte não harmonizado, composto pela AILD, que deixa uma margem de manobra substancial aos Estados-Membros, ao abrigo das regras do direito nacional em matéria de responsabilidade civil.

Suponhamos que um sistema de IA causa danos a um consumidor. De acordo com a proposta da PLD, esta situação envolve em regra responsabilidade objetiva, em que a parte lesada teria de provar o defeito do produto, o dano e o nexo de causalidade entre os dois. No caso particular de sistemas de IA, contudo, determinar o nexo de causalidade e o defeito pode ser uma tarefa complexa, razão pela qual a PLD consagra presunções de defeito, nexo de causalidade, ou ambos, para aliviar o ónus da prova para os consumidores.

Se o regime a aplicar for o da AILD, então a abordagem será diferente. Esta Diretiva centra-se principalmente em aspetos processuais, com o objetivo de harmonizar as regras para o acesso a informação e o ónus da prova quando se trata de responsabilidade extracontratual baseada na culpa por danos causados por sistemas IA. Por outras palavras, esta Diretiva procura harmonizar o regime processual de pedidos de responsabilidade civil, deixando os requisitos dessa responsabilidade (danos, culpa, nexo de causalidade, etc.) para os Estados-Membros regularem.

Âmbito de aplicação:

No que toca ao seu escopo, a Proposta AILD aplica-se a casos de responsabilidade civil extracontratual subjetiva, nos casos em que o dano é causado por um sistema de IA[1]. No entanto, a AILD não especifica quem pode estar sujeito a estas regras de responsabilidade. De facto, a proposta limita-se a incluir o conceito de “demandado” como a pessoa contra a qual é apresentado um pedido de indemnização. Isto alarga a sua aplicabilidade para além dos criadores, potencialmente abrangendo utilizadores profissionais e não profissionais e até os próprios consumidores.

No entanto, é relevante mencionar que, embora a proposta não defina quem pode ser responsável por danos, esta limita aqueles a quem as suas disposições se aplicam. Com efeito, o n.º 1 do artigo 3.º menciona potenciais demandados: fornecedores, utilizadores e fabricantes de produtos. Isto significa que os direitos e obrigações aqui consagrados estarão provavelmente vinculados aos atores definidos no Regulamento Inteligência Artificial.

Divulgação e acesso a informação:

Uma parte importante da proposta AILD é o artigo 3.º, que regula a divulgação e o acesso à informação no âmbito destes processos de responsabilidade civil. Esta disposição estabelece deveres específicos de divulgação para os potenciais demandantes quando confrontados com pedidos de indemnização decorrentes de danos causados por sistemas de IA de alto risco.

Para que um potencial requerente possa recorrer ao artigo 3.º do AILD, é necessário que:

  • o potencial requerente apresente factos e provas que apoiem a plausibilidade do seu pedido de indemnização (n.º 1, segundo parágrafo, do artigo 3.º);
  • o potencial requerido tenha recusado o acesso às informações necessárias, apesar de as ter à sua disposição (n.º 1, primeiro parágrafo, do artigo 3.º).

A proposta AILD exige que o potencial requerente adote todos os esforços razoáveis para obter os elementos de prova junto do potencial requerido antes de solicitar uma decisão judicial (n.º 2 do artigo 3.º). Se o potencial requerido não cumprir a ordem judicial de divulgação, as consequências são significativas, levando a uma presunção ilidível de incumprimento de um dever de diligência (n.º 5 do artigo 3.º). Esta presunção pode ser utilizada como presunção (ilidível) de um nexo de causalidade entre a culpa do requerido e o dano produzido pelo sistema de IA (n.º 1, alínea a), do artigo 4.º), como veremos mais adiante.

Eis o que isto significa na prática: Suponhamos que alguém sofre um dano devido a um sistema de IA de alto risco e decide apresentar uma queixa. De acordo com a proposta AILD, pode solicitar uma ordem judicial para que o potencial requerido revele provas e informações. No entanto, há uma condição essencial: o caso deve envolver sistemas de IA de alto risco, de acordo com a classificação do Regulamento Inteligência Artificial.

Ónus da prova:

A proposta AILD contém duas presunções significativas que ajudam a aliviar o ónus da prova dos requerentes:

  • O n.º 5 do artigo 3.º cria a presunção de incumprimento de um dever de diligência, que descrevemos acima, e
  • O artigo 4.º trata da causalidade entre a culpa do requerido e o resultado do sistema de IA.

Estas presunções são componentes cruciais da proposta AILD, simplificando o processo de determinação da responsabilidade nos casos de responsabilidade por danos que envolvam IA. De facto, pode ser muitas vezes difícil determinar as características exatas dos modelos de IA que foram mais relevantes para o resultado. Para fazer face a este risco de opacidade, o artigo 4.º da proposta AILD introduz uma presunção ilidível. Esta presunção refere-se especificamente ao nexo de causalidade entre a culpa, que deve incluir, pelo menos, a violação de um dever de diligência, e o resultado produzido pelo sistema.

Nesse sentido, para se valer desta presunção, o requerente deve demonstrar com êxito os seguintes elementos (artigo 4.º, n.º 2):

  • o requerente demonstrou ou o tribunal presumiu a culpa do requerido, devido ao incumprimento do dever de diligência previsto acima[2] ;
  • pode ser considerado razoavelmente provável, com base nas circunstâncias do caso, que a falha tenha influenciado o resultado produzido pelo sistema de IA ou a incapacidade do sistema de IA para produzir um resultado;
  • o requerente demonstrou que o resultado produzido pelo sistema de IA ou a falha do sistema de IA em produzir um resultado deu origem ao dano.

É importante notar que esta presunção não abrange a determinação da culpa em si, a existência – ou inexistência – de uma ação por parte da IA, a existência e o âmbito do dano, ou o nexo de causalidade entre a ação da IA e o dano. Ademais, ao contrário do artigo 3.º, o artigo 4.º não limita o seu âmbito de aplicação aos sistemas de IA de alto risco, abrangendo assim todos os sistemas de IA. Na verdade, define mesmo no n.º 5 que se o pedido de indemnização visar um sistema de IA que não seja de alto risco, a presunção estabelecida no n.º 1 só se aplica se o tribunal nacional considerar excessivamente difícil para o requerente provar o nexo de causalidade aí mencionado.

A proposta AILD não oferece, no entanto, uma definição de culpa, deixando ao critério dos Estados-Membros a forma como a definem nos seus sistemas jurídicos. Esta abordagem proporciona flexibilidade aos países para adaptarem o conceito de culpa aos seus quadros jurídicos atuais. No entanto, também implica que os criadores de sistemas de IA têm de ter em atenção a forma como o conceito é interpretado na jurisdição em que os seus sistemas são utilizados.

Comentários sobre a proposta da AILD

Nesta secção, aprofundamos considerações específicas e potenciais desafios relacionados com a AILD. A compreensão dessas nuances ajudará os criadores de sistemas de IA e consumidores a navegar em matérias de responsabilidade por danos causados por IA com maior confiança.

O primeiro aspeto importante a abordar é transposição de categorias de sistemas de IA (ex. sistemas de alto risco) do Regulamento Inteligência Artificial para a Proposta AILD, como feito no artigo 3.º desta. A categoria de alto risco definida pelo Regulamento Inteligência Artificial pode nem sempre se alinhar perfeitamente com aquilo que seria expectável de um regime processual harmonizado em termos de responsabilidade por danos causados por sistemas de IA. Este desalinhamento pode resultar em situações onde sistemas não são incluídos neste regime, quando deviam, e vice-versa.

Por exemplo, existem sistemas de IA que não são classificados como de alto risco e que podem ainda assim causar danos significativos aos indivíduos, mesmo que não apresentem o mesmo nível de risco para a sociedade em geral. É neste sentido que, por exemplo, a Autoridade Europeia para a Proteção de Dados sugeriu alterar tanto o mecanismo de divulgação de informação como a presunção do artigo 4.º para que sejam desligados da definição de sistemas de alto risco e se apliquem a todos os sistemas de IA.

Por outro lado, ao centrar-se nos sistemas de alto risco, a AILD parece ignorar os sistemas que são considerados proibidos ao abrigo do Regulamento Inteligência Artificial. Tendo em conta os efeitos especialmente negativos que estes sistemas acarretam, a proposta AILD deve ser atualizada de modo a abranger os danos infligidos pela sua utilização. Atualmente, a proposta não aborda explicitamente estas situações. Esta falha cria potenciais ambiguidades e incertezas quanto à responsabilidade dos criadores e utilizadores de sistemas de IA proibidos. Por último, a prova de falhas em sistemas de IA representa um desafio substancial para as pessoas lesadas por sistemas de IA. Este desafio decorre das complexidades dos modelos em causa, em especial quando se trata de revelar quais as características que influenciaram significativamente o resultado produtor do dano. Assim, mesmo com os desenvolvimentos processuais trazidos pelo AILD, ao não se regular em concreto a definição de culpa, eventuais lesados terão ainda de provar elementos como dolo ou negligência do demandado, o que pode ser particularmente difícil.


[1] De acordo com a definição de IA adotada no Regulamento Inteligência Artificial, ainda em processo legislativo.

[2] O artigo 4.º do AILD consagra outros requisitos que obrigam o requerente a provar que o dever de diligência foi violado, quando se trata de sistemas de IA de alto risco, relacionados com o incumprimento das obrigações consagradas no Regulamento Inteligência Artificial.

Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil na UE: Responsabilidade por Produtos Defeituosos

Legislação

Introdução

Nesta blogpost, vamos explorar o regime de responsabilidade por danos causados por sistemas de Inteligência Artificial (“IA”) na União Europeia (“UE”), especialmente no que diz respeito à responsabilidade por produtos defeituosos, no contexto da proposta relativa à Diretiva sobre Responsabilidade por Produtos Defeituosos (“Proposta”). O nosso objetivo será explicar as principais matérias reguladas pela Proposta, dando-lhes um pano de fundo e proporcionando uma compreensão clara de como esta proposta altera o regime atual, especialmente quando se trata de regular a responsabilidade por sistema de IA num cenário Business to Consumer.

Enquadramento geral da responsabilidade civil por danos de sistemas de IA

Antes de entrar nesse regime, importa analisar a regulação europeia em termos de IA. Este panorama é marcado por vários atos legislativos, quer já estejam em vigor, quer estejam a passar pelo respetivo processo legislativo. Assim, para compreender o quadro de responsabilidade por danos da UE, é importante contextualizá-lo num escopo mais vasto de Regulamentos e Diretivas.

Regime europeu aplicável à IA

Na UE, os sistemas de IA estão a ser objeto de regulação em duas frentes: regimes gerais e regras específicas de IA.

Começando pelo quadro jurídico geral, têm-se travado importantes debates sobre a sobreposição (e potencial ineficácia) de certos Regulamentos e Diretivas quando aplicados à IA. Os mais referidos são os seguintes:

Proteção de Dados: A IA depende fortemente de dados, especialmente de dados pessoais. A conformidade com os princípios de proteção de dados, incluindo a minimização, a limitação da finalidade, a exatidão e a responsabilidade, é uma obrigação, embora nem sempre seja fácil de alcançar na prática;

Propriedade intelectual: Para além dos dados pessoais, a legislação da UE rege outros aspetos relacionados com a IA, através de regimes como os direitos de autor, as patentes e os segredos comerciais, bem como a proteção das bases de dados. Através destes regimes, os dados (não pessoais) de treino, os inputs, os outputs e até o próprio modelo poderão ter de cumprir determinados critérios para serem abrangidos pelo escopo destes direitos. Neste sentido, dois dos temas mais atuais são a questão de saber se os sistemas de IA podem ser autores (por exemplo, para efeitos de direitos de autor), bem como a potencial violação dos direitos de autor concedida aos autores de obras que são utilizadas para treinar sistemas de IA;

Direito do Consumo: As Diretivas existentes em matéria de Direito do Consumo têm vindo a adaptar-se para englobar a IA de uma forma mais direta. Dois exemplos claros são a Diretiva relativa aos conteúdos digitais e a Diretiva relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens;

Responsabilidade Civil: Tal como acontece com o Direito do Consumo, o legislador da UE está a agir no sentido de atualizar os atuais regimes de responsabilidade para incluir sistemas tecnologicamente mais avançados, como a IA. Assim, para além da Diretiva Conteúdos Digitais e da Diretiva relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens que preveem opções para os consumidores em caso de não conformidade, o legislador europeu está atualmente a preparar a Proposta, que será analisada mais aprofundadamente adiante.

Na regulação específica da IA, a UE adota uma abordagem dupla:

Conformidade e regulamentação: O Ato da IA (AI Act) impõe obrigações principalmente aos utilizadores e criadores de sistemas de IA com base numa abordagem baseada no risco. Consoante os riscos potenciais que apresentam, os sistemas podem variar entre uma regulamentação mínima e uma proibição estrita. Os sistemas de alto risco e as partes da cadeia de abastecimento enfrentam obrigações pormenorizadas;

Responsabilidade Civil: A UE abordará a questão da responsabilidade por danos relacionados com a IA através da Diretiva sobre Responsabilidade por IA (AI Liability Directive ou “AILD”), atualmente em discussão pelo legislador da UE. No entanto, esta Diretiva centrar-se-á apenas na responsabilidade extracontratual baseada na culpa.

Responsabilidade civil por danos causados por sistemas de IA

Se nos debruçarmos especificamente sobre os quadros de responsabilidade civil, verificamos que o legislador da UE pretende abordar a responsabilidade por danos causados por sistemas de IA de duas formas:

Responsabilidade contratual: Para as relações entre consumidores e profissionais, a Diretiva Conteúdos Digitais e a Diretiva relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens preveem um regime de responsabilidade a que os consumidores podem recorrer em caso de não conformidade;

Responsabilidade extracontratual: A AILD e a Proposta da nova Diretiva regerão a responsabilidade extracontratual baseada na culpa dos sistemas de IA[1].

Com este roteiro em mente, o resto deste blogpost centrar-se-á na Proposta da nova Diretiva, abordando os seus principais elementos, como o seu âmbito material e pessoal, bem como os requisitos para desencadear a responsabilidade dos operadores económicos.

Escopo da Proposta

Ao analisar a proposta de Diretiva e o seu impacto nos sistemas de IA, é importante compará-la com as regras da atual Diretiva. Esta comparação revela duas primeiras melhorias fundamentais, relacionadas, por um lado, com o seu âmbito material e, por outro, com o seu âmbito pessoal.

Escopo material e definições

A Proposta da Diretiva representa um desenvolvimento substancial da Diretiva em vigor, ao atualizar as suas definições com conceitos tecnologicamente mais avançados, onde se incluem sistemas de IA. Para o efeito, o âmbito das regras de responsabilidade decorrente dos produtos é alargado através das seguintes definições:

Alargamento da definição de “produto”: A definição abrange agora os ficheiros de fabrico digitais e o software;

Introdução da definição de ‘componente’: Esta adição abrange qualquer elemento tangível ou intangível, ou qualquer serviço conexo que é incorporado num produto ou interligado com o mesmo pelo fabricante desse produto ou sob o controlo do fabricante;

Definição de “serviço conexo”: Um serviço conexo é definido como um serviço digital que, quando ligado a um produto, é essencial para o funcionamento normal do produto.

Estas definições atualizam o regime de responsabilidade decorrente de produtos defeituosos, garantindo que os produtos que incorporam elementos e serviços digitais estejam sujeitos a estas regras de responsabilidade. Este aspeto é especialmente relevante no contexto atual, em que serviços são frequentemente integrados nos produtos, como acontece com os assistentes virtuais como a Alexa e a Siri, em que a atual Diretiva dá respostas pouco claras.

Escopo pessoal e operadores económicos

Por outro lado, a Proposta também alarga as entidades que podem ser responsabilizadas por danos, introduzindo uma mudança significativa de “produtores” para “operadores económicos”. Este novo conceito alarga o âmbito de aplicação para incluir várias partes na cadeia de abastecimento, tais como o fabricante do produto, os fabricantes de componentes, os prestadores de serviços conexos, os representantes autorizados, os importadores, etc.

Embora estas novas entidades estejam abrangidas pelo âmbito de aplicação da Proposta da Diretiva, tal não significa que todas partilhem regimes de responsabilidade idênticos. Por exemplo, os importadores, os representantes autorizados e os prestadores de serviços de execução têm responsabilidade subsidiária, tornando-se responsáveis se o fabricante estiver situado fora da UE (artigo 7.º, n.º 2). Se nem o fabricante nem o importador puderem ser identificados, os distribuidores podem ser responsabilizados.

Crucialmente, é importante notar que a Proposta de Diretiva alarga a responsabilidade às entidades que prestam serviços conexos. Esta alteração constitui uma mudança conceitual, uma vez que a Diretiva se aplica tradicionalmente a produtos e não a serviços. No entanto, a inclusão é lógica, uma vez que os produtos contêm cada vez mais componentes digitais essenciais para o seu funcionamento. No contexto da “Internet of Things”, uma distinção estrita entre produtos e serviços não pode pôr em causa a responsabilidade por produtos defeituosos.

O que isto significa, em termos práticos, é que se uma empresa desenvolve um sistema de IA, que é integrado no software de um produto criado por outra, ambas as entidades podem ser responsabilizadas por defeitos do produto final. Se a parte lesada receber uma indemnização do fabricante do produto final, essa entidade pode eventualmente ter direito a uma compensação do fabricante do componente com base na legislação nacional aplicável.

Regime de responsabilidade civil ao abrigo da Proposta

Vamos agora explorar os fatores críticos que ativam a responsabilidade ao abrigo da Proposta. São eles a existência de dano e o caráter defeituoso do produto.

Relativamente ao primeiro, foram incluídas duas alterações fundamentais na Proposta:

Supressão do limiar mínimo de 500 €: A Proposta elimina o limiar de 500 € previsto na atual Diretiva, alargando assim o âmbito da responsabilidade;

Inclusão da perda ou corrupção de dados: A perda ou corrupção de dados, não utilizados exclusivamente para fins profissionais, passa a ser considerada um dano pelo qual os operadores económicos podem ser responsabilizados. No entanto, a responsabilidade continua limitada, excluindo os danos económicos. Esta limitação afeta cenários de IA como os seguros, a pontuação de crédito e situações laborais, em que os danos económicos são mais comuns.

O segundo elemento, e provavelmente o elemento central que desencadeia a responsabilidade, é o caráter defeituoso do produto.

Em termos gerais, a nova disposição sobre o carácter defeituoso assemelha-se muito ao artigo 6.º da atual Diretiva, que considera as expectativas do consumidor.

No âmbito deste quadro, são feitas duas principais melhorias:

Aprendizagem após a colocação no mercado: A Proposta alarga a responsabilidade aos defeitos que surgem depois de o produto ser colocado no mercado, ao considerar a potencial aprendizagem do sistema após o seu lançamento;

Controlo após o lançamento: Outra consideração crítica é o nível de controlo mantido pelos fabricantes ou programadores depois de o produto ser introduzido no mercado ou colocado em serviço. Assim, a Proposta prevê que a responsabilidade pelos defeitos continue até que o controlo seja abandonado. Este requisito garante que as empresas permanecem proativas na abordagem e retificação dos defeitos.

É de notar que a Proposta de Diretiva prevê situações de responsabilidade por defeitos posteriores, nomeadamente no artigo 10.º. Aqui, os operadores económicos podem não ser responsabilizados por danos causados por um produto defeituoso se demonstrarem que é provável que o defeito que causou o dano não existia quando o produto foi colocado no mercado ou em serviço. Contudo, o n.º 2 do artigo 10.º prevê exceções a esta regra. Os operadores económicos serão responsabilizados se o defeito resultar de um serviço conexo, de software (incluindo atualizações e upgrades) e da sua ausência quando necessário para a manutenção da segurança. É importante notar que estas exceções só se aplicam quando os operadores económicos mantêm o controlo sobre o produto após a sua colocação no mercado. Assim, existe um paralelo entre o n.º 1, alínea c), do artigo 6.º e o artigo 10.º, que alarga a responsabilidade aos casos de defeitos posteriores quando o operador económico mantém um grau de controlo sobre o produto.

Acesso a informação e ónus da prova

Para além das regras gerais em matéria de responsabilidade civil, a Proposta inclui disposições relativas ao acesso à informação e ao ónus da prova.

O artigo 8.º pode ser invocado para aceder a informações relativas a sistemas de IA, quer estes sejam de alto risco ou não. Trata-se de uma distinção importante em relação à AILD, que se centra principalmente nos sistemas de alto risco. Outro aspeto significativo deste artigo é a utilização do termo “demandado”, indicando que o direito de acesso à informação diz respeito principalmente a processos judiciais em curso.

No que toca ao ónus da prova, a Proposta visa aliviar o ónus da parte lesada na prova de certos elementos necessários a uma ação de indemnização.

Resumidamente, o artigo 9.º estabelece que cabe normalmente ao demandante ou à parte lesada o ónus de provar o carácter defeituoso, o dano e o nexo de causalidade entre eles. Contudo, a Proposta estabelece condições específicas que desencadeiam a presunção de defeito, de nexo de causalidade entre o defeito e o dano ou de ambos. Estas condições são as seguintes:

Condições suficientes para a presunção de defeito: (i) Incumprimento pelo requerido de uma obrigação de divulgação nos termos do artigo 8.º, n.º 1; (ii) Violação de requisitos de segurança obrigatórios; (iii) Danos causados por um mau funcionamento óbvio do produto;

Condições suficientes para a presunção de nexo de causalidade: presume-se o nexo de causalidade se for comprovado o caráter defeituoso do produto e se o dano for compatível com o mesmo. No entanto, a proposta não especifica os tipos de danos tipicamente considerados coerentes com o defeito, introduzindo potencialmente incerteza jurídica e encargos adicionais para os consumidores;

Condições adicionais de suficiência para ambas as presunções (n.º 4 do artigo 9.º): (i) O tribunal deve considerar excessivamente difícil para o requerente provar o respetivo objeto da presunção (defeito, causalidade ou ambos); (ii) O requerente deve estabelecer que o produto contribuiu para o dano, (iii) O objeto factual da presunção deve ser provável, baixando o limiar de prova do padrão normal para a mera probabilidade.

Os demandados têm a possibilidade de ilidir qualquer uma destas presunções (n.º 5 do artigo 9.º). Isto significa que podem apresentar provas ou argumentos para contestar as presunções de defeito ou de nexo de causalidade.


[1] É importante mencionar que a Proposta e em geral o regime de responsabilidade por produtos defeituosos pode também ser aplicado a relações contratuais, não estando, contudo, dependente da sua existência.

Acórdão C-395/21 – O Direito do Consumo aplica-se à relação advogado-cliente

Jurisprudência

No passado dia 12 de janeiro, o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) proferiu o Acórdão D.V. contra M.A. (C-395/21) relativo a cláusulas contratuais abusivas e à Diretiva 93/13/CEE. Neste caso, trata-se de um serviço diferente: serviços jurídicos fornecidos por um advogado.

  1. Factos

Na base do litígio esteve a celebração de contratos de prestação de serviços jurídicos, nos quais vinham estipulados honorários de 100 euros por hora de serviço. Após a prestação dos mesmos, a advogada em causa intentou uma ação judicial no sentido de obter a condenação do consumidor ao pagamento de 9.900 euros a título de prestações jurídicas realizadas, e de um montante de 194,30 euros a título de despesas incorridas no âmbito da execução dos contratos, acrescidos de juros anuais que ascendiam a 5% das somas devidas.

Tendo chegado ao Supremo Tribunal da Lituânia, este questionou-se sobre o caráter abusivo da cláusula relativa aos honorários. A este respeito, esse órgão jurisdicional considerou que, embora a cláusula estivesse formulada claramente do ponto de vista gramatical, seria possível duvidar que fosse compreensível, uma vez que o consumidor médio não estaria em condições de compreender as suas consequências económicas.

Por um lado, a invalidação da cláusula relativa ao preço deve acarretar a nulidade dos contratos de prestação de serviços jurídicos e o restabelecimento da situação em que o consumidor se encontraria se essas cláusulas nunca tivessem existido. Ora, no caso em apreço, isso conduziria a um enriquecimento injustificado do consumidor e a uma situação injusta em relação ao profissional que forneceu integralmente esses serviços. Por outro, o tribunal interrogou-se sobre a questão de saber se uma eventual redução do custo das referidas prestações não prejudicaria o efeito dissuasor prosseguido pelo artigo 7.°, n.° 1, da Diretiva 93/13.

Neste seguimento, o Supremo Tribunal da Lituânia coloca as seguintes questões ao TJUE:

– Deve o art. 4.º(2) da Diretiva 93/13 ser interpretado no sentido de que a expressão “objeto principal do contrato” abrange uma cláusula como a do presente caso, relativa ao custo e à forma como este é calculado?
– Deve a referência no art. 4.º(2) da Diretiva 93/13 ao caráter claro e compreensível de uma cláusula contratual ser interpretada no sentido de que basta especificar na cláusula do contrato relativa ao custo o montante dos honorários por hora devidos ao advogado?
– Em caso de resposta negativa à segunda questão: deve a exigência de transparência ser interpretada no sentido de que abrange a obrigação de o advogado indicar o custo dos serviços cujos valores exatos podem ser claramente definidos e especificados antecipadamente, ou deve também ser especificado o custo indicativo dos serviços, caso seja impossível prever as ações específicas e os respetivos honorários, no momento da celebração do contrato, e indicar os riscos que podem conduzir a um aumento ou a uma diminuição do custo?
– Se a cláusula não estiver redigida de maneira clara e compreensível, deve apreciar-se se esta cláusula é abusiva na aceção do art. 3.º(1) ou, tendo em conta que essa cláusula abrange informação essencial do contrato, o simples facto de a cláusula relativa ao custo não ser transparente é suficiente para que seja considerada abusiva?
– O facto de, quando a cláusula tiver sido considerada abusiva, o contrato de prestação de serviços jurídicos não ser vinculativo, em conformidade com o 6.º(1) da Diretiva 93/13, significa que é necessário restabelecer a situação em que o consumidor se encontraria se a cláusula que foi considerada abusiva não existisse? O restabelecimento de tal situação significa que o consumidor não tem a obrigação de pagar pelos serviços já prestados?
– Caso a natureza de um contrato de prestação de serviços a título oneroso torne impossível o restabelecimento da situação em que o consumidor se encontraria se a cláusula que foi considerada abusiva não existisse (os serviços já foram prestados), a fixação da remuneração pelos serviços prestados pelo advogado é contrária ao objetivo do art. 7.º(1) da Diretiva 93/13?

  1. Primeira questão

Relativamente à primeira questão, o TJUE declarou que o art. 4.°(2) abrange uma cláusula de um contrato de prestação de serviços jurídicos celebrado entre um advogado e um consumidor, independentemente de ter sido objeto de negociação individual ou não.

O TJUE baseia esta conclusão no facto da cláusula relativa ao preço ter por objeto a remuneração dos serviços jurídicos, estabelecida segundo um valor por hora. Tal cláusula, que determina a obrigação do mandante ao pagamento de honorários, faz parte das cláusulas que definem a própria essência da relação contratual, sendo esta relação precisamente caracterizada pela prestação remunerada de serviços jurídicos.

  1. Segunda e terceira questões

Relativamente às duas questões seguintes, o TJUE avaliou se uma cláusula como a do presente caso cumpre a exigência de redação clara e compreensível da Diretiva 93/13. O Tribunal concluiu que não, caso não tenham sido fornecidas ao consumidor informações que, antes da celebração do contrato, lhe permitissem tomar uma decisão prudente e com total conhecimento das consequências económicas do vínculo a assumir.

Com base numa interpretação ampla do conceito de transparência, de modo a garantir uma maior proteção ao consumidor, o Tribunal concluiu que é indispensável que as cláusulas do contrato sejam claras e compreensíveis, para que o consumidor possa estar consciente de todos os detalhes envolvidos e, dessa forma, possa tomar uma decisão informada e bem fundamentada sobre a contratação dos serviços.

Para o garantir, o profissional está incumbindo de três deveres. Em primeiro lugar, deve fornecer ao consumidor todas as informações relevantes antes da celebração do contrato. Além disso, o Tribunal recomendou que o profissional preste ao consumidor uma orientação adequada sobre os direitos e deveres de ambas as partes, para que este possa compreender totalmente o contrato. Por fim, o Tribunal concluiu que o profissional deve informar o consumidor sobre todos os custos adicionais que possam surgir ao longo do contrato.

Aplicando este raciocínio ao caso concreto, o TJUE concluiu que a fixação do preço do serviço jurídico por hora não permite ao consumidor médio, na falta de qualquer outra informação fornecida pelo profissional, saber o montante total a pagar pelos serviços. Muito embora a natureza dos serviços jurídicos não permita facilmente determinar o número de horas necessárias à sua conclusão, o TJUE afirmou que o profissional, no momento da celebração do contrato, tem de prestar as informações de que dispõe ao consumidor.

Nesse sentido, deve fornecer-lhe as informações necessárias para que possa tomar uma decisão informada, nomeadamente no que respeita à duração (e custo) aproximado da prestação de serviços jurídicos em causa, tendo em consideração as regras profissionais e deontológicas aplicáveis. O TJUE dá como exemplos uma estimativa do número previsível ou mínimo de horas necessárias para prestar o serviço ou o compromisso de envio regular de faturas ou relatórios que indiquem o número de horas de trabalho prestadas.

  1. Quarta questão

Passando à quarta questão, o TJUE afirmou que o art. 3.º(1) deve ser interpretado no sentido de que uma cláusula como a do presente caso não deve ser considerada abusiva pelo simples facto de não respeitar o critério da transparência do art. 3.º(2), exceto se a legislação nacional impuser que essa qualificação derive unicamente desse facto.

A Diretiva 93/13 estabelece que a falta de transparência de uma cláusula deve ser considerada como um dos principais critérios na avaliação do caráter abusivo de uma cláusula, pelo que a decisão sobre o caráter abusivo deve ser feita tendo em conta outros elementos. Não obstante, os Estados-Membros têm a possibilidade de optar por um nível de proteção mais exigente, nomeadamente – como no caso Lituano – considerando cláusulas contrárias à exigência de transparência como abusivas per se.

  1. Quinta e sexta questões

Aqui, o Tribunal decidiu que a Diretiva não se opõe a que, derivado da aplicação de Direito interno e caso o contrato não possa subsistir devido ao caráter abusivo da cláusula do preço, o profissional não receba nenhuma remuneração pelos serviços prestados. Da mesma forma, a Diretiva não se opõe a que haja a substituição da cláusula por uma disposição de direito nacional de caráter supletivo, em situações nas quais o consumidor seria colocado numa situação prejudicial caso se desse a invalidação total do contrato.

Não obstante, esta possibilidade só poderá ser aplicada em circunstâncias limitadas. Só no caso de a invalidade da cláusula implicar a invalidação total do contrato e esse facto expuser o consumidor a consequências prejudiciais é que o órgão jurisdicional nacional dispõe da possibilidade excecional de substituir uma cláusula abusiva anulada por uma disposição nacional de caráter supletivo, ou aplicável por acordo das partes. De igual forma, a disposição em causa tem de ser destinada a uma aplicação a contratos celebrados entre um profissional e um consumidor, portanto sem um alcance de tal modo geral, que a sua aplicação equivalha a permitir ao juiz nacional fixar com base na sua própria estimativa a remuneração devida pelos serviços prestados.

  1. Comentário

Dos tópicos levantados, o que cabe destacar como particularmente interessante é a possibilidade de um advogado ver o seu serviço não compensado face ao caráter abusivo das cláusulas que insere nos seus contratos. Aqui, o TJUE concluiu com relativa facilidade que essa possibilidade existe, prevendo outras hipóteses apenas se a invalidação total do contrato implicar um agravamento da situação do consumidor, verificando-se assim uma total preponderância da proteção do consumidor face ao profissional.

Isto é reforçado pela opinião do AG, ao afirmar que a Diretiva 93/13 não exige um “resgate” do profissional face à resolução do contrato. Afirma igualmente que as consequências que o direito interno prevê para a nulidade do contrato não podem ser tais que prejudiquem o efeito útil da Diretiva 93/13, ou seja, a proteção dos consumidores. De igual forma, a Diretiva não prevê a necessidade de se conceder aos profissionais proteção face à eventual nulidade de contratos nos quais inseriram cláusulas abusivas, mesmo que os serviços já estejam prestados e não seja possível haver uma “devolução” dos mesmos. Por isto, a possibilidade de “remendar” contratos com cláusulas abusivas é limitada, já que, caso contrário, a hipótese de haver essa substituição pelos tribunais colocaria em causa o efeito dissuasor prosseguido pela Diretiva. Só em casos em que a nulidade total do contrato traria ao consumidor consequências particularmente prejudiciais é que se poderia proceder a essa substituição.

Por isso, vemos que uma das profissões encarregues de aplicar a lei está igualmente sujeita a uma correta aplicação das normas de proteção dos consumidores, que, caso não sejam respeitadas, podem levar a fortes riscos que juristas, advogados e outros profissionais do Direito deveriam estar aptos a evitar. Assim sendo, os advogados, tal como outros profissionais análogos, devem respeitar os deveres de transparência, informando devidamente os consumidores sobre os custos que os seus serviços acarretam.

Tribunal de Justiça volta à definição de circunstâncias extraordinárias no Regulamento n.º 261/2004

Jurisprudência

Ao longo dos últimos anos, um dos temas que tem chegado ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJ) tem sido o conceito de “circunstâncias extraordinárias” contido no art. 5.º-3 do Regulamento (CE) n.° 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos: “A transportadora aérea operadora não é obrigada a pagar uma indemnização […] se puder provar que o cancelamento se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis”.

No passado mês de julho,  foi julgado mais um destes casos (Acórdão KU e o. contra SATA International, de 7 de julho de 2022, Processo C-308/21), no qual o TJ considerou que quando o aeroporto de origem dos voos ou da aeronave em causa é responsável pela gestão do sistema de abastecimento de combustível das aeronaves, uma falha generalizada do abastecimento de combustível é suscetível de ser considerada uma dessas circunstâncias (para. 28).

No caso em apreço, três demandantes tiveram atrasos superiores a três horas nas chegadas aos seus destinos. Os atrasos ficaram a dever-se à falta de abastecimento de combustível da aeronave, provocada por uma falha no sistema de abastecimento do aeroporto (paras. 6 a 9). Neste contexto, os três lesados apresentaram pedidos de indemnização pelo atraso provocado à companhia aérea responsável (para. 11). A companhia recusou-se a atribuir essa indemnização, já que os atrasos não lhe seriam imputáveis, por decorrerem de uma falha imprevista e inesperada do sistema de abastecimento de combustível do aeroporto (para. 11).

Tendo o caso chegado aos tribunais judiciais portugueses, o órgão jurisdicional em causa submeteu a seguinte questão prejudicial ao TJ:

“O atraso superior a três horas ou o cancelamento de voos causados por uma falha de abastecimento de combustível no aeroporto de origem, sendo a gestão do sistema de combustível da responsabilidade deste aeroporto, constitui uma “circunstância extraordinária”, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 5.°, n.° 3 do [Regulamento n.° 261/2004]?” (Para. 14)

O TJ pronunciou-se sobre esta questão, afirmando que tais factos são suscetíveis de ser considerados como circunstâncias extraordinárias. E fê-lo utilizando o teste que tem vindo a utilizar de forma constante na sua jurisprudência.

Em primeiro lugar, relembrou que o conceito de circunstâncias extraordinárias designa acontecimentos que, cumulativamente, (i) não são inerentes ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa e (ii) escapam ao controlo efetivo desta (para. 20).

Focando-se no primeiro teste, o Tribunal afirmou que o abastecimento de combustível  se enquadra, em regra, no exercício normal da atividade da transportadora, já que é matéria essencial ao funcionamento da aeronave (para. 22). Não obstante, aqui prestou atenção à causa da falta de abastecimento. No seu entender, este facto resultante de uma falha do sistema de abastecimento no aeroporto deve ser distinguido de um problema técnico de abastecimento circunscrito a uma só aeronave (para. 23). Nesse sentido, enquanto a segunda situação estará ligada à atividade normal da aeronave – falhando, portanto, o primeiro teste – a primeira já não  estará, podendo a análise avançar para o segundo teste.

Relativamente a este, o Tribunal relembra a distinção entre acontecimentos de origem interna e  de origem externa à transportadora aérea, afirmando que estão abrangidos no conceito de circunstância extraordinárias os eventos que a transportadora não controla, por serem de origem natural ou provocados por terceiros (para. 25). Assim, na medida em que o sistema de abastecimento de um aeroporto é gerido por este ou por um terceiro, a falha generalizada de abastecimento deve ser considerada como um acontecimento externo à transportadora e que, consequentemente, escapa ao seu controlo efetivo (para. 26).

Passando estes dois testes, o Tribunal conclui, portanto, que estamos perante uma circunstância extraordinária que isenta a companhia da obrigação de indemnizar.

Circunstâncias extraordinárias na jurisprudência do TJ

O preenchimento do conceito de circunstâncias extraordinárias não é um tema novo, pelo que vários têm sido os órgãos jurisdicionais nacionais a interrogar o TJ sobre este tópico, cujas respostas nem sempre têm sido fáceis de conciliar. Na verdade, tem-se visto ao longo dos anos uma evolução deste conceito que porventura agora reveste uma forma diferente daquela que era anteriormente considerada.

De facto, embora em situações claramente extraordinárias o TJ as tenha visto como tal – por exemplo, eventos naturais que afetam a circulação aérea[1] – será de destacar as situações nas quais a jurisprudência do TJ tem sido menos clara: atrasos causados por danos ou problemas técnicos nas aeronaves.

Importante neste contexto será o Despacho Siewert[2], no qual existiu um dano fora causado à asa da aeronave em causa, devido ao embate de uma escada móvel de embarque (para. 9). Aqui, o Tribunal limitou-se a constatar que as transportadoras aéreas se veem regularmente confrontadas com a utilização destas escadas, pelo que o seu choque com o avião deverá ser considerado como um acontecimento inerente ao exercício normal da sua atividade (para. 19). Reforça ainda o argumento levantado, afirmando que “nada indica que o dano do avião que devia efetuar o voo em questão  tenha sido causado por um ato exterior aos serviços normais de um aeroporto, como um ato de sabotagem ou de terrorismo” (para. 19).

Contudo, no Despacho Orbest[3], o Tribunal parece ter adotado uma visão diferente, face a factos idênticos. Na verdade, a única diferença de relevo face ao caso anterior será o atraso causado se ter devido ao embate de um veículo de catering contra uma das rodas da aeronave (para. 7). Aqui, o TJ afirma que “quando uma falha técnica de uma aeronave estacionada no aeroporto tem origem exclusiva no embate contra um objeto estranho, essa falha não pode ser considerada intrinsecamente ligada ao sistema de funcionamento do aparelho. Por conseguinte, a falha em causa não pode ser considerada inerente, pela sua natureza ou origem, ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa” (para. 21). Reforça, dizendo que “o embate entre a aeronave em causa no processo principal e o veículo de catering pertencente a um terceiro foi causado pela deslocação deste último veículo. Por conseguinte, a falha técnica dessa aeronave foi causada por um ato de um terceiro que interfere na atividade aérea ou aeroportuária e que, portanto, escapa ao controlo efetivo da transportadora aérea em causa” (para. 25).

Como conciliar estes dois casos? A direção foi apontada pelo próprio TJ, no caso Germanwings[4], Acórdão no qual o Tribunal considerou como extraordinária a circunstância de se ter descoberto um parafuso no pneu do avião, aquando da preparação para um voo (para. 9). Aqui, o Tribunal distinguiu os objetos que são necessariamente utilizados no contexto do transporte aéreo – como escadas móveis – dos demais (para. 30). Chamou à atenção também para o facto que objetos como escadas móveis são utilizados normalmente com a colaboração da tripulação da aeronave, pelo que não serão estranhos ao seu funcionamento[5].

Parece assim que, para ser considerado extraordinário, o evento na origem do atraso deverá ser “estranho” e “terceiro” ao normal funcionamento da aeronave. A contrario, não será tido como extraordinário o atraso causado pelo funcionamento (anormal) de um objeto necessário à atividade da aeronave. Ademais, se a tripulação da aeronave cooperar na utilização desse objeto – ainda que de forma não preponderante – então não estaremos, em princípio, perante uma circunstância extraordinária.

Nesse sentido, a definição do conceito de “estranho” ao normal funcionamento da aeronave parece também refletir-se na forma como o TJ enquadra os serviços aeroportuários nesta atividade. De facto, uma leitura do Despacho Siewert, Orbest e do Acórdão Germanwings, parece subentender que  os serviços aeroportuários prestados às companhias aéreas não relevam para a caracterização de terceiro[6].

Como enquadrar, então o Acórdão KU e o. contra SATA International? Uma aplicação da jurisprudência Germanwings diz-nos que o abastecimento de gasolina, sendo essencial ao funcionamento da aeronave, enquadrando-se nos serviços normais de um aeroporto, não pode ser visto como uma circunstância extraordinária. Contudo o TJ decidiu de forma oposta, evoluindo o teste já consolidado na sua jurisprudência no sentido não só de atentar à causa da falha técnica[7], mas também de incluir os serviços aeroportuários no conceito de terceiro, algo que não parece ter sido a sua intenção em casos anteriores.

Assim, vemos aqui uma possível zona cinzenta relativa ao papel tomado pelo aeroporto, deixando pouco clara a linha que separa as atividades dos serviços aeroportuários que são inerentes ao funcionamento dos aviões daqueles que não são.

Nestes termos, o conceito de circunstância extraordinária constante do art. 5.º-3 do Regulamento (CE) n.° 261/2004 não está livre de questões interpretativas que, com o avançar da jurisprudência do TJ, se vão tornando mais complexas e minuciosas.


[1] Acórdão Denise McDonagh contra Ryanair Ltd, de 31 de janeiro de 2013,Processo C-12/11, para 34, relativo a uma erupção vulcânica.

[2] Despacho Siewert, de 14 de novembro de 2014, Processo C-394/14.

[3] Despacho Orbest, de 30 de março de 2022, Processo C-659/21.

[4] Acórdão Germanwings, de 4 de abril de 2019, Processo C-501/17.

[5] A confirmar este raciocínio e a dar particular importância a este elemento de cooperação por parte da tripulação, vide Despacho Airhelp, de 14 de janeiro de 2021, Processo C-264/20, paras. 23 e 24

[6] Basta comparar o parágrafo 25 do Despacho Orbest, ao afirmar que a falha da aeronave foi causada pelo ato de um terceiro – o veículo de catering –  com o Despacho Siewert, que já usa como argumento a inexistência de danos causados por atos exteriores aos serviços normais de um aeroporto.

[7] Vejamos que o TJ não se bastou com a conclusão de que estaremos perante uma falha técnica – falta de abastecimento – mas fundamentou-se na falha do sistema de abastecimento do aeroporto.

Tribunal de Justiça e a Diretiva 93/13: Cláusulas Abusivas em Contratos de Mútuo em Divisa Estrangeira

Jurisprudência

No passado mês, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) decidiu sobre os processos apensos C-776/19 a C-782/19, que trouxeram novos desenvolvimentos à interpretação da Diretiva 93/13/CEE e ao regime das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com consumidores, em particular no que toca a contratos de mútuo hipotecário em divisa estrangeira. Em causa estão contratos celebrados com o Banco BNP Paribas Personal Finance, conhecidos como “Helvet Immo”.

Concretamente, os contratos em causa incluíam as seguintes cláusulas: (i) os créditos em questão eram financiados por empréstimos subscritos em francos suíços e esses créditos eram geridos simultaneamente em francos suíços (moeda de conta) e em euros (moeda de pagamento); (ii) quanto às operações cambiais, os pagamentos relativos aos empréstimos em causa só podiam ser efetuados em euros para um reembolso em francos suíços; (iii) as operações cambiais a efetuar estavam enumeradas nos contratos de mútuo em causa nos processos principais, e em caso de incumprimento por parte do mutuário, o mutuante tinha a possibilidade de substituir unilateralmente o franco suíço pelo euro; (iv) uma vez que a amortização depende da evolução da paridade euro/franco suíço, esta seria menos rápida se a operação cambial resultasse numa quantia inferior à data do vencimento em francos suíços, e a eventual parte do capital não amortizada seria inscrita no saldo devedor. Caso contrário, o reembolso do crédito seria mais rápido; (v) se a manutenção do montante dos pagamentos em euros não permitisse regularizar a totalidade do saldo da conta sobre o período residual inicial acrescido de cinco anos, os pagamentos seriam aumentados. Se, no termo do quinto ano de prorrogação, subsistisse um saldo devedor, os pagamentos deviam continuar até ao reembolso integral; (vi) a taxa de juro fixa, inicialmente acordada, era passível de revisão de cinco em cinco anos, segundo uma fórmula predeterminada e, nessa ocasião, o mutuário podia optar pela transição para euros da moeda de conta, escolhendo quer a aplicação de uma nova taxa de juro fixa aumentada quer a aplicação de uma taxa variável.

Neste seguimento, e devido a uma evolução desfavorável das taxas de câmbio, os demandantes tiveram dificuldade em reembolsar o mútuo hipotecário. Por isso, intentaram ações judiciais onde alegaram o caráter abusivo das cláusulas dos contratos em causa, nas quais a BNP Paribas Personal Finance alega a prescrição dos pedidos, de acordo com as normas nacionais aplicáveis.

Por isso, o tribunal de reenvio francês endereçou oito questões ao TJUE. Em primeiro lugar, se a Diretiva 93/13, lida em conjugação com o princípio da efetividade, se opõe à aplicação de normas de prescrição para a declaração do caráter abusivo de uma cláusula e para eventuais restituições devidas ao abrigo dessa declaração. Em caso de resposta negativa, ou parcialmente negativa, questiona o TJUE se a Diretiva, lida em conjugação com o princípio da efetividade, se opõe à aplicação de uma jurisprudência nacional que fixa como início da contagem do prazo de prescrição a data da aceitação da proposta de empréstimo e não a data da ocorrência de dificuldades financeiras sérias. Em segundo lugar, se as cláusulas que preveem que o franco suíço é a moeda de conta e o euro a moeda de reembolso e que, como tal, imputam o risco cambial no mutuário, se incluem no objeto principal do contrato, na aceção do art. 4.º-2 da Diretiva 93/13. Por outro lado, perguntou também se a Diretiva 93/13, lida em conjugação com o princípio da efetividade, se opõe a uma jurisprudência nacional que considera cláusulas como as discutidas nos processos em causa como claras e compreensíveis. Em quarto lugar, se o ónus de prova do caráter claro e compreensível de uma cláusula incumbe ao profissional ou ao consumidor. Caso incumba ao profissional, se a Diretiva 93/13 se opõe a uma jurisprudência nacional que considera que, quando existem documentos relativos a técnicas de venda, que compete aos mutuários provar, por um lado, que foram destinatários das informações contidas nesses documentos e, por outro, que foi o banco que lhes transmitiu tais informações, ou, pelo contrário, a Diretiva exige que estes elementos constituam uma presunção de que as informações contidas nestes documentos foram transmitidas, incluindo verbalmente, aos mutuários, presunção simples que incumbe ao profissional refutar. Por último, se se pode considerar que cláusulas como as presentes nos processos em causa podem levar a um desequilíbrio significativo, dado que, por um lado, o profissional dispõe de meios superiores ao consumidor para antecipar o risco cambial e, por outro, o risco suportado pelo profissional está limitado, ao passo que o suportado pelo consumidor não o está.

Começando pela primeira e segunda questões, o Tribunal clarifica que, no caso em apreço, temos duas situações diferentes. Em primeiro lugar, temos a oposição de um prazo de prescrição a um pedido apresentado por um consumidor relativo ao caráter abusivo de cláusulas contratuais e, em segundo lugar, a oposição desse prazo para efeitos de restituição de quantias indevidamente pagas.

Assim, e no que concerne à primeira situação, o Tribunal concluiu que estes casos não podem estar sujeitos a prazos de prescrição, com base num argumento fundamental: a proteção efetiva dos direitos conferidos ao consumidor pela Diretiva 93/13 implica que o poder de invocar, a qualquer momento, o caráter abusivo de uma cláusula contratual, não pode estar sujeita a prazos de prescrição.

Já no que se refere à segunda situação (invocação do prazo de prescrição no contexto da restituição de quantias indevidamente pagas), o Tribunal optou por uma rota oposta. De facto, e recordando a sua jurisprudência anterior[1], afirmou que a Diretiva 93/13, em particular os arts. 6.º-1 e 7.º-1 não se opõem a uma regulamentação nacional que, embora preveja a imprescritibilidade da ação que vise obter a nulidade da cláusula abusiva, sujeita a ação destinada a invocar os efeitos restitutivos dessa nulidade a um prazo de prescrição. Por isso, a existência de um prazo de prescrição, no que concerne aos pedidos de caráter restitutivo, não é contrária ao princípio da efetividade, desde que a sua aplicação não torne impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela Diretiva.

Neste contexto, importa chamar à atenção para mais três notas feitas pelo Tribunal. Em primeiro lugar, este afirma que prazos de prescrição de três a cinco anos não são incompatíveis com o princípio da efetividade, desde que estabelecidos e conhecidos atempadamente pelo consumidor, permitindo-lhe preparar e recorrer a uma via judicial efetiva a fim de invocar os seus direitos. Em segundo lugar, e no que concerne ao início do prazo de prescrição, o Tribunal afirma que este só será compatível com o princípio da efetividade se o consumidor tiver tido a possibilidade de conhecer os seus direitos antes de esse prazo começar a correr ou de terminar. Por isso, o começo da contagem do prazo de prescrição na data da aceitação da proposta de mútuo não é suscetível de assegurar uma proteção efetiva ao consumidor, já que esse prazo pode expirar antes de o consumidor poder tomar conhecimento do caráter abusivo da cláusula em causa.

Passando à terceira questão, o Tribunal começa por afirmar que, num contrato de mútuo, o mutuante obriga-se, em primeiro lugar, a disponibilizar ao mutuário um determinado montante e este, por sua vez, obriga-se a reembolsar (regra geral com juros) esse montante em datas previamente determinadas. Sendo que as prestações essenciais do contrato se referem a um montante em dinheiro, estas devem fazer referência às moedas de pagamento e reembolso. Por isso, o TJUE conclui que o facto de o reembolso ter de ser feito numa determinada moeda refere-se não a uma modalidade acessória do pagamento, mas sim, em regra, à própria natureza da obrigação, sendo assim um elemento essencial do contrato de mútuo.

Não obstante, conclui igualmente que compete ao tribunal de reenvio apreciar se as cláusulas em causa, que regulam a moeda de reembolso e pretendem imputar o risco no mutuário, dizem respeito à própria natureza da obrigação. Precisa também que a existência de uma cláusula que permita ao mutuário exercer uma opção de conversão em euros não pode significar que as cláusulas relativas ao risco cambial adquirem uma natureza acessória, só por si. Na verdade, e de acordo com o TJUE, o facto de as partes poderem alterar, em certas datas, uma das cláusulas essenciais do contrato permite ao mutuário alterar as condições do seu mútuo, sem que tal tenha incidência direta na apreciação da prestação essencial do contrato.

Passando à quarta e à quinta questões, o Tribunal começa por clarificar que a exigência de transparência deve ser analisada pelo órgão jurisdicional de reenvio, à luz de todos os elementos pertinentes. Em particular, menciona que cabe a este verificar se foram comunicados ao consumidor todos os elementos suscetíveis de terem incidência no alcance do seu compromisso, nomeadamente o custo total do empréstimo. Nessa análise, deverá ter em particular atenção se as cláusulas estão escritas de forma clara e compreensível e a falta – ou presença – de informações consideradas essenciais, tendo em conta a natureza do objeto do contrato. Virando-se para o contrato em causa, o Tribunal conclui que, em contratos de mútuo em divisa estrangeira, é importante a prestação de informação por parte do profissional que vise esclarecer o consumidor relativamente ao funcionamento do mecanismo de câmbio e ao risco que lhe está associado.

Assim sendo, de modo a respeitar a exigência de transparência, as informações transmitidas pelo profissional devem permitir a um consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e sensato, compreender que, em função das variações da taxa de câmbio e a evolução da paridade entre a moeda de conta e a moeda de pagamento podem acarretar consequências desfavoráveis para si. Por outro lado, deverá também compreender o risco real a que se expõe, durante toda a vigência do contrato, caso haja uma desvalorização significativa da moeda em que recebe os seus rendimentos relativamente à moeda de conta.

Virando-se para a sexta e sétima questões, o Tribunal volta a focar-se no princípio de efetividade. Contudo, aqui o ponto de discussão prende-se com a compatibilidade desse princípio com a pendência do ónus da prova do caráter claro e compreensível sob o consumidor. Nesse sentido, e como ponto introdutório, o TJUE afirma que a efetividade dos direitos conferidos pela Diretiva 93/13 não poderia ser consolidada se o consumidor estivesse obrigado a provar um facto negativo, ou seja, que o profissional não lhe forneceu todas as informações necessárias para satisfazer a exigência decorrente do art. 4.º-2 da Diretiva. Nesse seguimento, conclui que a obrigação do profissional de demonstrar o cumprimento das suas obrigações pré-contratuais e contratuais deve igualmente abranger a prova relativa à comunicação da informação contida em documentos relativos as técnicas de venda, particularmente quando a informação aí constante se mostre relevante para garantir a clareza e compreensão das cláusulas contratuais inseridas nos contratos em causa. Ademais, já que o profissional controla (ou deve controlar) os meios pelos quais os seus produtos são distribuídos, deverá também dispor de elementos de prova relativos ao facto de ter procedido a um correto cumprimento das obrigações pré-contratuais e contratuais a que está adstrito.

Chegado à oitava e última questão, o TJUE começa por recordar a sua jurisprudência[2], segundo a qual, nos contratos de mútuo em divisa estrangeira, cabe ao juiz nacional apreciar o possível incumprimento da exigência de boa-fé e, num segundo momento, a existência de um eventual desequilíbrio significativo, nos termos do art. 3.º da Diretiva 93/13. Relativamente à obrigação de boa-fé, importa ter em conta, nomeadamente, a força das posições de negociação das partes e a possibilidade de o consumidor ter sido de alguma forma incentivado a aceitar as cláusulas em causa. Assim, de modo a verificar se as cláusulas em causa dão origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, há que ter em conta as circunstâncias de que o profissional podia ter conhecimento no momento da celebração do contrato, tendo em conta a sua experiência no que se refere às variações das taxas de câmbio e aos riscos inerentes a estes contratos.

Tendo isso em atenção, o Tribunal conclui que há que considerar que existe um desequilíbrio significativo entre os direitos e obrigações das partes, decorrentes do contrato em causa, em detrimento do consumidor. Para o justificar, afirma que as cláusulas em causa parecem fazer recair sobre o consumidor um risco desproporcionado em relação às prestações recebidas, uma vez que a aplicação das mesmas tem como consequência obrigar o consumidor a suportar o custo da evolução das taxas de câmbio. Assim, e tendo em conta a exigência de transparência decorrente do art. 5.º da Diretiva 93/13, não se pode considerar que o profissional podia razoavelmente esperar que, negociando de forma transparente com o consumidor, este aceitaria as cláusulas na sequência de uma negociação individual. Não obstante, o TJUE reforça que a aplicação desta lógica ao caso concreto cabe, em última instância, ao órgão jurisdicional de reenvio.


[1] Acórdãos de 9 de julho de 2020, Raiffeisen Bank e BRD Groupe Société Générale, C-698/18 e C-699/18, EU:C:2020:537, n.º 58 e de 16 de julho de 2020, Caixabank e Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, C-224/19 e C-259/19, EU:C:2020:578, n.º 84.

[2] Acórdão de 20 de setembro de 2017, Andriciuc e o., C-186/16, EU:C:2017:703, n.º 56.

Prescrição e cláusulas abusivas – A propósito do Acórdão Profi Credit Slovakia

Jurisprudência

No passado mês de abril, um novo acórdão do TJUE[1] forneceu novas luzes sobre a relação entre o Direito de Consumo e o princípio da efetividade. Em particular, o Tribunal abordou o direito dos consumidores a uma ação judicial efetiva aquando da presença de cláusulas contratuais abusivas.

Na origem do reenvio feito está um contrato de crédito ao consumo celebrado em 2011 entre o recorrente e uma agência de crédito, a Profi Credit Slovakia. De acordo com os termos do contrato, a agência podia cobrar encargos como contrapartida da possibilidade dada ao recorrente de obter um adiamento no reembolso do crédito. Por isso, o recorrente não recebeu um montante de 1.500 € – valor do crédito – mas sim um valor residual de 1.132,51 €, embora não fosse certo que o mesmo fosse fazer uso da possibilidade de diferir o pagamento.

A 2 de fevereiro de 2017, após o reembolso integral do crédito, o recorrente foi informado por um jurista que a cláusula em causa tinha um caráter abusivo. Nesse contexto, e a 2 de maio do mesmo ano, o recorrente intenta uma ação com vista à restituição dos encargos que, a seu ver, tinham sido indevidamente cobrados. A contraparte invocou a prescrição do direito atribuído ao consumidor. Na verdade, de acordo com o regime nacional em vigor, a arguição em causa está sujeita a um prazo de prescrição de três anos. Este prazo é objetivo, ou seja, corre mesmo perante o desconhecimento do caráter abusivo da cláusula contratual em causa, por parte do consumidor. Destarte, vigora também um prazo de prescrição objetivo especial de 10 anos para casos em que se demonstre que o mutuante agiu com a intenção de enriquecer indevidamente. Contudo, de acordo com a interpretação dada pelo Supremo Tribunal da República Eslovaca, o ónus da prova do dolo do mutuante recai sobre o consumidor, dificultando, ou mesmo impossibilitando (na opinião do Tribunal de Reenvio), portanto, a aplicação deste prazo mais favorável ao consumidor.

Assim, foram colocadas quatro questões ao Tribunal de Justiça que, em essência, eram sequenciais. Em primeiro lugar, foi perguntado se o artigo 47.º da Carta[2] e o direito atribuído ao consumidor a uma ação judicial efetiva devem ser interpretados no sentido de se oporem a um prazo de prescrição objetivo de três anos. Seguidamente, e apenas se tal prazo for compatível com o artigo 47.º e o princípio da efetividade, foi questionado se esse artigo e esse princípio são compatíveis com uma prática nacional segundo a qual o ónus de prova do dolo do mutuante – necessário à aplicação do prazo de prescrição de 10 anos – recai sobre o consumidor. Caso aqui se concluísse que tal prática é compatível com o Direito da União, então duas questões foram feitas: (i) em relação a que pessoas, entre administradores, sócios ou representantes comerciais, é que o consumidor teria de demonstrar a existência de dolo e (ii) qual o grau de conhecimento necessário para alcançar a demonstração desse dolo.

Começando, portanto, pela primeira questão, e após relembrar que os Estados-Membros estão obrigados a assegurar a efetividade dos direitos conferidos aos particulares pelo Direito da União, em particular os derivados da Diretiva 93/13[3], o TJUE dá quatro notas.

Em primeiro lugar, clarifica que a existência de prazos de prescrição relativos às ações intentadas por consumidores para invocar direitos a si atribuídos pelo Direito da União não é, per se, incompatível com o Direito da União. O que deverá ser assegurado é que tais prazos não tornam impossível, ou excessivamente difícil, a invocação dos direitos em causa.

Em segundo lugar, reitera o que já anteriormente dissera[4], ou seja, que a proteção do consumidor não deverá ser tida como absoluta, sendo a criação de prazos razoáveis de recurso sob pena de prescrição, por razões de segurança jurídica, algo compatível com o Direito da União.

Em terceiro lugar, e no que respeita à duração do prazo em causa, o Tribunal relembrou que “desde que esse lapso de tempo seja estabelecido e conhecido antecipadamente, um prazo de tal duração afigura‑se, em princípio, suficiente para permitir ao consumidor em causa preparar e interpor um recurso efetivo, pelo que essa duração não é, em si mesma, incompatível com o princípio da efetividade”[5].

Por último, o Tribunal chama à atenção para a exequibilidade prática de o consumidor invocar o direito que lhe é conferido, no prazo referido. Assim, relembra a posição de inferioridade dos consumidores face aos profissionais, a possibilidade de aqueles não terem uma total perceção dos direitos que lhes são conferidos pelo Direito da União e de, em contratos de execução duradoura como o do caso em apreço, se poder dar a prescrição antes do termo do contrato em causa. Nesse sentido, conclui que as regras nacionais relativas à prescrição objetiva no prazo de três anos a contar do enriquecimento indevido podem tornar excessivamente difícil o exercício dos direitos do consumidor, infringindo, portanto, o princípio da efetividade.

Como nota lateral final, conclui igualmente que o eventual dolo de um profissional em situações como estas não deverá ser tido como pertinente para os direitos conferidos pela Diretiva 93/13 e para o artigo 10.º-2 da Diretiva 2008/48[6]. Nesse sentido, não pode um consumidor ser obrigado a provar o caráter doloso da prática adotada pelo profissional no sentido de alargar o prazo de prescrição a que está adstrito o seu direito.

Assim, sendo esta a resposta à primeira questão, não houve necessidade de avançar para as restantes.


[1] Acórdão de 22 de abril de 2021, Profi Credit Slovakia, C-485/19.

[2] Referente ao Direito à ação e a um tribunal imparcial, o artigo 47.ºda Carta, afirma que “Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal”, pelo que “Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei. Toda a pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e representar em juízo.“

[3] Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores

[4] Acórdão de 9 de julho de 2020, Raiffeisen Bank e BRD Groupe Société Générale, C‑698/18 e C‑699/18, para.  56; Acórdão de 16 de julho de 2020, Caixabank e Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, C‑224/19 e C‑259/19, para. 82.

[5] Para. 59.

[6] A Directiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores, no seu artigo 10.º(2) menciona os elementos que um contrato de crédito aos consumidores deve especificar.

Orçamento do Estado, Estado de Emergência e Serviços Públicos Essenciais

Legislação

No último dia do ano transato foi aprovada a Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, referente ao Orçamento de Estado para 2021, que trouxe importantes novidades para os consumidores, dado o contexto pandémico no qual ainda nos encontramos. Uma dessas novidades (embora com contornos já conhecidos) vem na forma do art. 361.º, referente à impossibilidade da suspensão do fornecimento de serviços públicos essenciais durante o 1.º semestre de 2021. Sendo que este artigo retoma o previsto na Lei n.º 7/2020, de 10 de abril, explorado aqui, aqui e aqui, com este post pretendemos explorar o regime recém-aprovado, comparando-o com o anterior e verificando quais as evoluções sofridas.

Nestes termos, vemos que ao longo dos seus sete números, o art. 361.º consagra a proibição de os prestadores de serviços públicos essenciais (água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas) suspenderem o fornecimento destes serviços (n.º 1).

Não obstante, relativamente às comunicações eletrónicas, dita o n.º 2 que esta proibição apenas se aplica se a suspensão em causa tiver uma de três causas: (i) situação de desemprego, (ii) quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20%, ou (iii) infeção por doença COVID-19. Assim, vemos que, ao contrário do que ocorre com os restantes serviços públicos essenciais, o fornecimento de serviços de comunicações eletrónicas poderá ser suspenso caso não se verifique nenhuma destas condições.

Ademais, caso estejamos perante a primeira ou segunda condição, o n.º 3 atribui dois direitos aos consumidores de serviços de telecomunicações: a cessação unilateral do contrato, sem lugar a compensação ao fornecedor, ou a suspensão temporária do mesmo, sem penalizações para o consumidor, que deverá ser retomado a 1 de janeiro de 2022 ou em data a acordar entre as partes.

Além disso, este artigo aborda a possibilidade de existirem valores em dívida relativos aos serviços prestados. Nesse cenário, os n.os 4 e 5 obrigam à elaboração, em tempo razoável, de um plano de pagamento adequado aos rendimentos atuais do consumidor, plano esse acordado entre este e o fornecedor.

Por último, o n.º 7 permite aos consumidores que viram o fornecimento dos seus serviços públicos suspensos no período entre 1 de outubro e 31 de dezembro de 2020 requerer a sua reativação sem custos inerentes, desde que (i) tenham estado desempregados, com uma quebra do rendimento do seu agregado familiar igual ou superior a 20% ou infetados pela doença COVID-19 durante a integralidade desse período e (ii) tenha sido acordado um plano de pagamento para os valores em dívida relativos ao fornecimento desses serviços.

Quando comparado com o anterior regime, previsto no art. 4.º da Lei n.º 7/2020, de 10 de abril, vemos que os regimes em causa apresentam semelhanças evidentes. Na verdade, o conteúdo dos n.os 1 e 2 mantém-se igual à versão original da Lei n.º 7/2020[1] e o n.º 3 mantém-se igual à versão da Lei n.º 7/2020, alterada pela Lei n.º 18/2020, de 29 de maio. No mesmo sentido, os n.os 4 e 5 mantêm o conteúdo previsto na Lei n.º 7/2020 e o n.º 6 continua a remeter para a Portaria 149/2020, de 22 de junho, para o cálculo da quebra de rendimentos. Por último, e como novidade, temos o n.º 7 que não existia no regime anterior.

Nestes termos, vemos que algumas das questões anteriormente apontadas por nós se mantêm nesta nova versão da proibição da suspensão de serviços públicos essenciais. Por exemplo, é possível verificar, tal como aqui foi constatado, que existe uma certa hierarquização dos serviços públicos essenciais, na medida em que são exigidos requisitos extra para a proibição de suspensão no fornecimento de serviços de telecomunicação face aos restantes. Ora, face à necessidade que se tem sentido na manutenção do trabalho à distância, ou na necessidade de contacto telefónico em situações urgentes, tais como com o SNS 24, continua sem se compreender a razão de ser desta diferenciação entre as telecomunicações e a água, a energia elétrica e o gás natural. Contudo, vemos também que o legislador, ao ter de escolher entre a versão originária da Lei n.º 7/2020 e a subsequentemente adotada pela Lei n.º 18/2020, preferiu agora a primeira, garantindo assim um maior nível de proteção do consumidor relativamente ao fornecimento de água, energia elétrica e gás, embora tenha mantido um nível de proteção mais reduzido para as comunicações eletrónicas.

Ademais, no que se refere aos planos de pagamentos em caso de valores em dívida, vemos que a lei continua sem dar resposta à questão de saber o que acontece caso não seja possível alcançar esse acordo entre o consumidor e o fornecedor, nem por abordar as questões por nós mencionadas relativamente à Portaria 149/2020, nomeadamente no que toca à interpretação do conceito de “causa determinante” prevista no art. 3.º-1.

Assim, não parece que este novo artigo venha trazer grandes inovações no que concerne ao anterior regime, a não ser o importante alargamento do prazo em que o utente se encontra especialmente protegido.

 

[1] De relembrar, tal como previamente analisado, que, com a Lei n.º 18/2020, de 29 de maio, os requisitos extra constantes do art. 4.º-2 foram alargados a todos os serviços públicos essenciais mencionados pelo n.º 1.