Site de encontros e direito de arrependimento

Jurisprudência

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu na semana passada uma decisão muito interessante em matéria de direito de arrependimento, no âmbito do Processo C-641/19 (caso PE Digital).

A PE Digital gere um site de encontros na Alemanha, propondo aos seus utilizadores dois tipos de adesão: (i) gratuita, com possibilidades de contacto limitadas; (ii) premium, mediante pagamento, por 6, 12 ou 24 meses, com garantia de contacto. O serviço premium inclui um teste de personalidade de cerca de 30 minutos, relativo às características, hábitos e interesses relevantes em matéria de encontro, o qual é enviado ao cliente sob a forma de um «relatório pericial de personalidade» de 50 páginas.

No dia 4 de novembro de 2018, o consumidor celebrou um contrato de adesão premium com a empresa, pelo período de 12 meses, por um valor de € 523,95 (valor superior ao dobro do valor cobrado a outros clientes pelo mesmo serviço no mesmo ano).

O consumidor foi informado da existência do direito de arrependimento e declarou pretender que o serviço começasse a ser prestado antes do termo do prazo para arrependimento.

No dia 8 de novembro de 2018, o consumidor exerceu o direito de arrenpendimento, tendo a empresa exigido então o pagamento de € 392,96. Não se conformando com a situação, o consumidor recorreu a tribunal, pedindo a devolução de todos os valores pagos.

O tribunal alemão decidiu então colocar algumas questões ao TJUE, respondidas no acórdão em análise.

O art. 14.º-3 da Directiva 2011/83/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, regula os efeitos do exercício do direito de arrependimento nos casos em que, num contrato de prestação de serviços, o consumidor deu o seu consentimento quanto ao início da prestação do serviço antes do termo do prazo para arrependimento, como foi o caso na situação em causa neste processo. Assim, o consumidor tem de pagar “ao profissional um montante proporcional ao que foi fornecido até ao momento em que o consumidor comunicou ao profissional o exercício do direito de [arrependimento], em relação ao conjunto das prestações previstas no contrato. O montante proporcional a pagar pelo consumidor ao profissional é calculado com base no preço total acordado no contrato. Se o preço total for excessivo, o montante proporcional é calculado com base no valor de mercado do que foi fornecido”.

A questão que o tribunal de reenvio coloca consiste em saber se “há que ter em conta o preço acordado nesse contrato para o conjunto das prestações nele previstas e calcular o montante devido pro rata temporis, ou se é necessário ter em conta o facto de uma das prestações objeto do contrato [no caso, o teste de personalidade] ter sido fornecida ao consumidor na íntegra antes de este ter exercido o seu direito” (considerando 26).

O TJUE responde à questão de forma bastante clara, considerando que “o montante proporcional a pagar pelo consumidor (…) deve ser calculado, em princípio, tendo em conta todas as prestações que são objeto do contrato, a saber, a prestação principal e as prestações acessórias necessárias para assegurar essa prestação principal” (considerando 28), só assim não sendo “no caso de o contrato prever expressamente que uma ou várias das prestações são fornecidas integralmente desde o início da execução do contrato, de maneira distinta, a um preço que deve ser pago separadamente” (considerando 29).

O TJUE reforça a importância do pagamento separado do preço no considerando 31, ao referir que “o contrato em causa não previa um preço separado para qualquer prestação que pudesse ser considerada como separável da prestação principal prevista nesse contrato”.

Este raciocínio parece-me ser integralmente aplicável à situação comum em contratos de prestação de serviços de comunicações eletrónicas em que as empresas tentam cobrar um valor relativo à instalação quando o consumidor exerce o direito de arrependimento. Não sendo este valor pago separadamente, não releva autonomamente para a definição do montante proporcional a pagar pelo consumidor.

Quanto à questão de saber os critérios para avaliar se o preço total acordado é excessivo, o TJUE considera que “todas as circunstâncias relativas ao valor de mercado do serviço prestado são relevantes (…), nomeadamente a comparação tanto com o preço cobrado pelo profissional em causa a outros consumidores nas mesmas condições como com o preço de um serviço equivalente prestado por outros profissionais”.

Por fim, o TJUE é chamado a pronunciar-se sobre se o relatório de personalidade incluído no contrato em causa no processo pode ser qualificado como um conteúdo digital, caso em que poderia estar excluído o direito de arrependimento, nos termos do art. 16.º-m) da Diretiva. O tribunal conclui de forma breve que não. Julgo que, mesmo que se tratasse de um conteúdo digital, não se deveria aplicar a exceção, uma vez que se trata apenas de um elemento acessório do contrato, claramente consumido, no que respeita ao regime aplicável, pelo serviço prestado pela empresa.

Como é possível verificar, a decisão do TJUE é favorável ao consumidor em todos os pontos.

Star Taxi App e o conceito de serviço da sociedade da informação

Jurisprudência

Dedicamo-nos hoje a uma breve análise das conclusões do advogado-geral, M. Szpunar, no Processo C-62/2019 (Star Taxi App), mais um caso pendente no Tribunal de Justiça da União Europeia em torno da questão de saber se a atividade das plataformas digitais de intermediação deve ser qualificada como consubstanciando serviços da sociedade da informação, em especial para perceber se pode ser exigida uma autorização para o exercício dessa atividade.

Neste processo, está em causa uma aplicação para smartphones (Star Taxi App), que coloca em contacto utilizadores de serviços de táxi e taxistas. Depois de efetuada a pesquisa pelo cliente, a aplicação gera uma lista de taxistas, cabendo a escolha ao cliente. O preço é pago no final da viagem diretamente ao motorista. A empresa que gere a plataforma celebra um contrato com cada taxista, nos termos do qual este se obriga a pagar mensalmente o preço e aquela se obriga a disponibilizar uma aplicação e a fornecer um smartphone no qual a aplicação é instalada. Não é feito qualquer controlo da qualidade dos veículos ou dos taxistas pela plataforma, que se limita a garantir a inclusão apenas de taxistas autorizados e habilitados com uma licença para prestar o serviço de táxi.

O litígio surge no momento em que a Star Taxi App é sancionada por não ter solicitado uma autorização, prevista na legislação romena, para a atividade de “expedição de táxis” (“atividade conexa ao transporte por táxi, que consiste em receber por telefone ou por outros meios os pedidos dos clientes e em transmiti‑los ao motorista de táxi através de um emissor‑recetor de rádio”). A empresa discordou da aplicação da sanção e recorreu a tribunal, tendo este decidido submeter várias questões ao TJUE.

Pergunta o tribunal romeno, no essencial, se a regulamentação nacional em causa no processo é compatível com o direito europeu, especificando, entre outras, a questão de saber se a atividade exercida pela empresa deve ser considerada um serviço da sociedade de informação.

Sem surpresa, o advogado-geral aplica o teste utilizado nos casos Uber Spain, Uber France e Airbnb Ireland, concluindo que se trata de um serviço da sociedade da informação. Por um lado, verificam-se os pressupostos necessários para o preenchimento do conceito. Por outro lado, a atividade em causa não consubstancia um serviço global cujo elemento principal é um serviço com outra qualificação jurídica. Considera o advogado-geral que, ao contrário da Uber e tal como a Airbnb, não só a plataforma não cria um mercado novo, como também não exerce uma influência decisiva sobre os taxistas. Como ficou visível na decisão do TJUE sobre a Airbnb, dificilmente alguma plataforma digital de intermediação, além da Uber no serviço UberPop, não será qualificada, com o teste atualmente aplicável, como prestadora de serviços da sociedade da informação.

As conclusões do advogado-geral neste processo são particularmente interessantes pelo raciocínio subsequente.

Uma diferença muito significativa entre o caso Star Taxi App e o caso Airbnb Ireland resulta do facto de a empresa titular da Star Taxi App se encontrar estabelecida na Roménia, país no qual pretende exercer a sua atividade e ocorre o litígio, enquanto a que gere a Airbnb se encontra estabelecida na Irlanda, resultando o litígio do exercício da atividade noutro Estado-Membro, no caso em França.

Qualificada a atividade em ambos os casos como consubstanciando um serviço da sociedade da informação, aplica-se a Diretiva 2000/31/CE (comércio eletrónico). Enquanto no caso da Airbnb se aplica o art. 3.º da Diretiva, não podendo um Estado-Membro restringir a livre circulação dos serviços prestados por pessoa estabelecida noutro Estado-Membro, se estiverem cumpridas as disposições nacionais aplicáveis nesse outro Estado-Membro, no caso da Star Taxi App aplica-se o art. 4.º, que consagra o princípio de não autorização prévia, o qual não afeta, no entanto, “os regimes de autorização que não visem especial e exclusivamente os serviços da sociedade da informação”. Segundo o advogado-geral, este preceito visa “evitar uma desigualdade de tratamento entre os serviços da sociedade da informação e os serviços semelhantes que não são abrangidos por este conceito” (consid. 68). O advogado-geral conclui no caso Star Taxi App que a norma romena é aceitável, “desde que seja constatada a equivalência económica dos serviços regulamentados por estas disposições” (consid. 77).

A aplicação de normas diversas do regime, com efeito radicalmente oposto, em casos semelhantes do ponto de vista da desigualdade de tratamento entre os serviços da sociedade da informação e os serviços equivalentes que não sejam serviços da sociedade da informação, por a empresa estar ou não estabelecida noutro Estado-Membro, gera por sua vez uma situação de desigualdade que deveria ser evitada.

Considerando o advogado-geral que não é aplicável o art. 4.º da Diretiva 2000/31/CE à regulamentação romena em causa no processo, procede de seguida à análise da compatibilidade do regime de autorização nela previsto com a Diretiva 2006/123/CE (serviços), que será aplicável por não existir, no caso, um conflito entre as duas diretivas. O advogado-geral defende que cabe ao tribunal romeno avaliar o cumprimento das condições previstas nos arts. 9.º e 10.º da Diretiva 2006/123/CE, afirmando, no entanto, que a sujeição da emissão da autorização “a exigências tecnologicamente inadaptadas ao serviço pretendido pelo requerente” (nomeadamente “dispor de um emissor‑recetor de rádio, uma frequência de rádio segura, pessoal com um certificado de operador de radiotelefonia e uma licença de utilização das frequências rádio”, exigência aparentemente prevista na legislação romena) violará os critérios enunciados no art. 10.º. Com efeito, esses requisitos, se forem aplicáveis no âmbito de um serviço de intermediação através de uma aplicação para smartphones, não são aceitáveis, por dificultarem de forma inadmissível o acesso ao mercado em causa.

Se a decisão do TJUE seguir as conclusões do advogado-geral, veremos em que medida poderão ser atenuados no futuro os efeitos (perigosos) da decisão do caso Airbnb Ireland no que respeita à desigualdade de tratamento entre intermediários que operam através de plataformas digitais e intermediários que operam por outras vias.

Airbnb sofre um revés no TJUE

Jurisprudência

Depois de, no final do ano passado, ter visto o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferir uma decisão muito favorável, que proibia, no essencial, a sujeição do exercício da sua atividade à obtenção de uma licença, a Airbnb recebeu uma má notícia do mesmo TJUE no passado dia 22 de setembro.

Falamos da sentença proferida nos Processos apensos C-724/18 e C-727/18 (casos Cali Apartments/HX). A Cali Apartments e a HX são proprietárias de estúdios situados em Paris, nos quais é exercida a atividade de prestação de serviços de alojamento local (ou, com mais precisão, atividade equivalente em França). Estes casos distinguem-se do caso Airbnb Ireland, na medida em que neste último estava em causa a atividade da plataforma e os primeiros incidem sobre a atividade de alojamento local propriamente dita.

Resumidamente, o TJUE foi chamado por um tribunal francês a pronunciar-se sobre a questão de saber se várias normas do direito francês que limitam a atividade de prestação de serviços de alojamento local (impondo em alguns municípios uma autorização prévia para “a alteração da finalidade de utilização dos imóveis destinados a habitação”) são compatíveis com o direito europeu, nomeadamente face aos princípios da liberdade de estabelecimento dos prestadores de serviços e a livre circulação dos serviços, previstos na Diretiva 2006/123/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006 , relativa aos serviços no mercado interno.

O TJUE começa por concluir que a Diretiva 2006/123/CE é aplicável à prestação de serviços de alojamento local. Isto apesar de qualificar a atividade como “de locação de um bem imóvel” (v. considerando 34).

Depois de concluir que as regras impostas pelo direito francês consubstanciam um regime de autorização, o TJUE procede à análise das condições que têm de se verificar para que um Estado-Membro possa estabelecer um regime de autorização e dos critérios que devem ser seguidos na decisão de concessão da autorização (v. arts. 9.º e 10.º da Diretiva 2006/123/CE).

O problema é resumido de forma relativamente clara no considerando 54. Será admissível “uma regulamentação de um Estado‑Membro que, por motivos que visam garantir uma oferta suficiente de alojamentos destinados à locação de longa duração a preços acessíveis, sujeita certas atividades de locação, mediante remuneração, de imóveis mobilados destinados a habitação a uma clientela de passagem que aí não fixa domicílio, efetuadas de forma reiterada e por períodos de curta duração, a um regime de autorização prévia aplicável em certos municípios cujas autoridades locais determinam, no quadro fixado por essa regulamentação, as condições de concessão das autorizações prévias previstas por este regime, acompanhando‑as, se necessário, de uma obrigação de compensação sob a forma de uma conversão acessória e concomitante em habitação de imóveis que tenham outra utilização”?

O TJUE conclui que a regulamentação em causa “é justificada por uma razão imperiosa de interesse geral atinente à luta contra a escassez de habitações destinadas à locação, sendo proporcionada ao objetivo prosseguido, uma vez que o mesmo não pode ser alcançado por uma medida menos restritiva, designadamente porque uma fiscalização a posteriori seria demasiado tardia para obter uma real eficácia”. Defende igualmente o tribunal que, à partida, os critérios definidos para a concessão da autorização são conformes à diretiva, por serem suficientemente claros e permitirem uma decisão não-arbitrária por parte da administração.

É interessante referir o considerando 92 da decisão, no qual o tribunal utiliza como argumento a alternativa que o proprietário tem de arrendar o imóvel: “há que salientar que a obrigação de compensação que a autoridade local em causa optou por impor não priva, em geral, o proprietário de um bem destinado a locação de retirar frutos do mesmo, uma vez que o referido proprietário dispõe, em princípio, da faculdade de locar o bem, não como imóvel mobilado destinado a uma clientela de passagem, mas enquanto imóvel destinado a uma clientela que aí fixa a sua residência, atividade que certamente é menos rentável, mas à qual essa obrigação não se aplica”.

Em suma, o TJUE vem reconhecer que a luta contra a escassez de habitações destinadas ao arrendamento de longa duração constitui uma razão imperiosa de interesse geral que pode justificar uma limitação ao exercício da atividade de alojamento local.

Apesar de não ser parte nesta ação, o efeito da decisão tem um impacto significativo para a Airbnb e outras plataformas de intermediação no setor do alojamento local, na medida em que o TJUE vem legitimar muitas normas, aprovadas um pouco por toda a Europa nos últimos anos, que visam limitar o alojamento local em cidades com maior pressão turística.

RALC na jurisprudência do TJUE no primeiro semestre de 2020

Jurisprudência

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu duas decisões ao longo do primeiro semestre de 2020 relacionadas com a resolução alternativa de litígios (RAL) de consumo.

Começamos pelo Processo C‑380/19 (acórdão de 25 de junho de 2020).

O art. 13.º da Diretiva 2013/11/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, sobre a resolução alternativa de litígios de consumo, prevê dois deveres de informação que o profissional deve cumprir, um na fase pré-contratual (n.os 1 e 2) e o outro no momento em que ocorre o litígio (n.º 3).

Neste processo, está em causa o dever pré-contratual de informação. Assim, os profissionais devem informar “os consumidores acerca da entidade ou entidades de RAL de que dependem”. Essa informação deve ser prestada “de forma clara, compreensível e facilmente acessível no sítio web dos comerciantes, caso exista, e, se for caso disso, nos termos e nas condições gerais aplicáveis aos contratos de venda ou de serviços entre o comerciante e o consumidor”.

Descrevendo brevemente os factos relevantes, temos neste caso um profissional (cooperativa de crédito) que disponibiliza um site através do qual não é possível celebrar contratos. Esse profissional está vinculado a uma entidade de resolução alternativa de litígios de consumo e disponibiliza no site um documento com os “termos e condições”, que não contém essa informação.

Segundo o tribunal, o art. 13.º-2 da Diretiva “não limita a obrigação de informação nela prevista aos casos em que o comerciante celebra com os consumidores contratos por intermédio do seu sítio web”.

Acaba por concluir-se, assim, que as normas em causa devem ser interpretadas no sentido de que um profissional “que disponibiliza no seu sítio web os termos e condições gerais dos contratos de venda ou de serviços, mas que não celebra contratos com os consumidores por intermédio desse sítio, está obrigado a incluir nesses termos e condições gerais as informações relativas à entidade ou às entidades de resolução alternativa de litígios de que esse comerciante depende, quando este último se comprometa, ou seja obrigado, a recorrer a esta ou estas entidades para resolver os litígios com os consumidores. A este respeito, não é suficiente que o referido comerciante apresente essas informações noutros documentos acessíveis no referido sítio, ou noutros separadores desse sítio, ou preste ao consumidor as referidas informações, aquando da celebração do contrato sujeito aos referidos termos e condições gerais, através de um documento distinto destes últimos”.

O Processo C‑578/18 (acórdão de 23 de janeiro de 2020) aborda uma questão diversa: a interpretação do artigo 37.º da Diretiva 2009/72/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece regras comuns para o mercado interno da eletricidade, que trata as “obrigações e competências das entidades reguladoras”.

Neste caso, um cliente doméstico de eletricidade contactou a entidade reguladora finlandesa solicitando que esta verificasse o modo de faturação praticado pela empresa. A entidade reguladora considerou o procedimento legal. O cliente recorreu, então, para um tribunal administrativo, pedindo que lhe fosse reconhecido o estatuto de parte no processo e a anulação das decisões, pedidos que foram considerados procedentes. A entidade reguladora recorreu da decisão para o Supremo Tribunal Administrativo, invocando não poder ser atribuído ao cliente o estatuto de parte, com a consequência de não ter legitimidade para recorrer. O tribunal decidiu então suspender a instância e submeter várias questões ao TJUE.

O TJUE conclui que não se impõe aos Estados‑Membros “que atribuam à entidade reguladora a competência para resolver os litígios entre os clientes domésticos e os operadores de rede” nem que “concedam ao cliente doméstico que apresentou uma queixa à entidade reguladora contra um operador de rede a qualidade de «parte» (…) e o direito de interpor recurso da decisão tomada por essa autoridade na sequência dessa queixa”.

É interessante notar que o tribunal considera que “os Estados‑Membros podem atribuir a competência relativa à resolução extrajudicial de litígios entre os clientes domésticos e as empresas de eletricidade a uma autoridade distinta da entidade reguladora” (considerando 39), podendo “igualmente conferir essa competência à entidade reguladora” (considerando 40). Ora, no caso concreto, “o órgão nacional competente para tratar de uma queixa de um consumidor contra uma empresa de eletricidade é o kuluttajariitalautakunta (Comissão de Litígios de Consumo, Finlândia), perante o qual o queixoso tem o estatuto de parte” (considerando 41). Já a entidade reguladora trata de “pedidos de inquérito que lhe são dirigidos e que o estatuto do autor do pedido de inquérito não é o de parte, mas de informador, o que permite à entidade reguladora cumprir a sua obrigação de monitorização” (considerando 42).

Este caso é bastante revelador da distinção entre o procedimento administrativo, que visa a aplicação de sanções a profissionais infratores, e o procedimento de resolução alternativa de litígios, que visa regular a relação entre o cliente e o profissional.

Avaliação da solvabilidade do consumidor

Jurisprudência

Conforme prometido, regressamos hoje ao crédito ao consumo, com uma breve análise da decisão proferida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no Processo C‑679/18 (acórdão de 5 de março de 2020), que trata do dever de avaliação da solvabilidade do consumidor por parte do credor.

O tribunal é chamado a pronunciar-se, no essencial, sobre a questão de saber se podem ser estabelecidos limites no que respeita à invocação pelo consumidor do incumprimento do dever em causa e se o tribunal deve poder conhecer oficiosamente desse incumprimento.

Do ponto de vista do direito português, talvez o aspeto mais interessante consista em saber se a previsão apenas de uma sanção contraordenacional é suficiente para cumprir as obrigações resultantes do direito europeu. Lá chegaremos.

As normas relevantes para o caso são os arts. 8.º e 23.º da Diretiva 2008/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores. O art. 8.º-1 prevê que “os Estados-Membros devem assegurar que, antes da celebração do contrato de crédito, o mutuante avalie a solvabilidade do consumidor com base em informações suficientes, se for caso disso obtidas do consumidor e, se necessário, com base na consulta da base de dados relevante. Os Estados-Membros cuja legislação exija que os mutuantes avaliem a solvabilidade dos consumidores com base numa consulta da base de dados relevante podem reter esta disposição”. Segundo o art. 23.º, “os Estados-Membros devem determinar o regime das sanções aplicáveis à violação das disposições nacionais aprovadas em aplicação da presente diretiva e tomar todas as medidas necessárias para assegurar a aplicação das referidas disposições. As sanções assim previstas devem ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas.

Segundo o TJUE, estas disposições “devem ser interpretados no sentido de que impõem que um órgão jurisdicional nacional examine oficiosamente a existência de uma violação da obrigação pré‑contratual do mutuante de avaliar a solvabilidade do consumidor”, extraindo “as consequências que decorrem, no direito nacional, de uma violação dessa obrigação”.

Conclui ainda o tribunal que o direito europeu se opõe “a um regime nacional nos termos do qual a violação, pelo mutuante, da sua obrigação pré‑contratual de avaliar a solvabilidade do consumidor só é punida com a nulidade do contrato de crédito, acompanhada da obrigação de esse consumidor reembolsar ao mutuante o montante principal, num prazo adequado à sua capacidade financeira, na condição de o referido consumidor suscitar essa nulidade, e isso num prazo de prescrição de três anos”.

No que respeita à sanção propriamente dita (“nulidade do contrato de crédito, acompanhada da obrigação de esse consumidor reembolsar ao mutuante o montante principal, num prazo adequado à sua capacidade financeira”), o TJUE parece considerar que ela é adequada e dissuasiva (considerando 30).

O problema identificado pelo tribunal está na exigência de que o consumidor suscite a nulidade. Como já vimos, esta deve ser de conhecimento oficioso. E não deve estar sujeita a um prazo fixo de arguição de três anos.

Uma questão muito interessante, do ponto de vista do direito português, é a relação desta sanção civil com a sanção administrativa, também prevista no direito checo. Como sabemos, no direito português apenas se estabelece uma sanção contraordenacional para o incumprimento do dever de avaliar a solvabilidade do consumidor (arts. 10.º e 30.º-1 da Lei n.º 133/2009, na redação vigente), não estando prevista qualquer sanção civil.

No considerando 37, depois de concluir que a sanção (civil) não é efetiva, defende o tribunal que “esta conclusão não pode ser posta em causa pelo argumento invocado pelo Governo checo, nas suas observações escritas, segundo o qual as disposições nacionais em matéria de supervisão prudencial das instituições de crédito também preveem uma sanção administrativa sob a forma de uma coima até 20 milhões de CZK (cerca de 783 000 euros), em caso de concessão de um crédito em violação da obrigação de avaliar a solvabilidade do consumidor”. No início do considerando 38 realça-se, ainda, a circunstância de a sanção nunca ter sido aplicada na República Checa.

Da segunda parte do considerando 38 resulta de forma bastante clara que a sanção contraordenacional poderá não ser suficiente, à luz do direito europeu. Vejamos: “essas sanções não são, por si sós, suscetíveis de assegurar de modo suficientemente eficaz a proteção dos consumidores contra os riscos de sobreendividamento e de insolvência, pretendida pela Diretiva 2008/48, na medida em que não se repercutem na situação de um consumidor com quem tenha sido celebrado um contrato de crédito em violação do artigo 8.º desta Diretiva”.

Impõe-se, portanto, a previsão de uma sanção civil, a qual não se encontra consagrada no direito português.

Crédito ao consumo na jurisprudência do TJUE no primeiro semestre de 2020

Jurisprudência

Estamos de volta com mais um post sobre a jurisprudência do TJUE sobre direito do consumo, dedicando-nos hoje a duas decisões sobre crédito ao consumo. Deixamos uma terceira decisão, sobre avaliação da solvabilidade do consumidor, para um post autónomo, que será publicado muito em breve.

No Processo C‑66/19 (acórdão de 26 de março de 2020), está em causa a informação que deve constar do contrato de crédito ao consumo.

Nos termos do art. 10.º-2-p) da Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores, o contrato de crédito deve especificar de forma clara e concisa, entre outros elementos, informação sobre “a existência ou inexistência do direito de retratação [leia-se direito de arrependimento], o prazo e o procedimento previstos para o seu exercício e outras condições para o seu exercício, incluindo informações sobre a obrigação do consumidor de pagar o capital levantado e os juros, de acordo com a alínea b) do n.º 3 do artigo 14.º, bem como o montante dos juros diários”.

O direito de arrependimento encontra-se previsto no art. 14.º da Diretiva, estabelecendo o n.º 1 que “o consumidor dispõe de um prazo de 14 dias de calendário para exercer o direito de retratação [arrependimento] do contrato de crédito sem indicar qualquer motivo”, começando a correr o prazo “a contar da data da celebração do contrato de crédito” ou “a contar da data de receção, pelo consumidor, dos termos do contrato e das informações a que se refere o artigo 10.º, se essa data for posterior”.

No contrato em causa neste processo, este elemento, tal como outros, não constava diretamente no documento contratual, remetendo o documento para a legislação alemã aplicável, da qual consta a informação (considerando 14).

O TJUE foi primeiro chamado a pronunciar-se sobre a questão de saber se as informações sobre o prazo incluem a informação sobre o início da sua contagem. O tribunal responde afirmativamente a esta questão, o que significa que tem de constar do contrato, não apenas o prazo, mas também quando é que se inicia a sua contagem.

A segunda questão diz respeito à simples remissão no contrato para a legislação, que o TJUE considera ser insuficiente. Com efeito, defende o tribunal que não basta remeter para um diploma legal que contenha as informações em causa, devendo estas constar do próprio documento contratual. As circunstâncias do caso tinham a particularidade de a norma legal não conter também as informações em causa, mas remeter para outro dispositivo legal, mas este aspeto não nos parece ter sido decisivo para a decisão do tribunal, que teria sido a mesma no caso de a norma legal em causa conter ela própria as informações. Isto é visível na afirmação constante do considerando 47: “uma simples remissão, constante das condições gerais de um contrato, para um texto legislativo ou regulamentar que estipula os direitos e as obrigações das partes não é suficiente”.

No Processo C‑779/18 (acórdão de 26 de março de 2020), está em causa o custo do crédito e a informação a ele relativa.

No essencial, a legislação polaca introduz um conceito adicional, não previsto na Diretiva, de “custo do crédito excluindo juros”. O tribunal polaco questionou o TJUE sobre se a introdução deste conceito colocava em causa o direito europeu, tendo em conta que a Diretiva é de harmonização máxima (art. 22.º-1).

É importante ter em conta que, como consta do considerando 47, “resulta dos elementos dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que as disposições nacionais relativas ao custo do crédito excluindo juros se limitam a estabelecer um limite máximo e um método de cálculo desse custo, bem como as consequências do desrespeito desse limite máximo”. Não parece ser, portanto, acrescentada qualquer obrigação de informação suplementar relativamente às que estão previstas no art. 10.º-2.

Este é um aspeto importante para entender a decisão do tribunal, que conclui que o normativo polaco em causa é conforme ao direito europeu se não introduzir obrigações de informação suplementares.

Assim, é possível impor limites ao custo do crédito excluindo custos, mas a indicação do custo do crédito excluindo juros não pode ser imposta enquanto elemento de informação a constar do documento contratual.

Contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento na jurisprudência do TJUE no primeiro semestre de 2020

Jurisprudência

Retomamos hoje a nossa série de posts sobre a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no primeiro semestre de 2020. Já abordamos os termas do conceito de consumidor e das cláusulas contratuais gerais, dedicando-nos agora aos contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento e, em especial, ao direito de arrependimento. Excluímos, para já, os contratos relativos a serviços financeiros, que serão tratados num post autónomo.

Estão em causa três decisões do TJUE, uma relativa ao exercício do direito de arrependimento e, em especial, à indicação de um número de telefone para o efeito e as outras duas respeitantes à aplicação do regime e à existência de direito de arrependimento em dois casos específicos (serviço prestado por um arquiteto, por um lado, e descontos em contratos de transporte, por outro lado).

No Processo C‑266/19 (acórdão de 14 de maio de 2020), estava em causa um site de venda de artigos eróticos e a ausência de indicação do número de telefone nas informações relativas ao direito de arrependimento, apesar de ser indicado um número de telefone nas informações pré-contratuais.

A Diretiva 2011/83/UE prevê, no art. 6.º-1-c), que o profissional deve facultar ao consumidor, antes da celebração do contrato, “(…) o seu número de telefone e de fax, bem como o seu endereço de correio eletrónico, se existirem, para permitir ao consumidor contactá-lo rapidamente e comunicar com ele de modo eficaz”. O profissional deve ainda, nos termos da alínea h) do mesmo preceito, disponibilizar ao consumidor, sempre que este seja titular do direito de arrependimento, “as condições, o prazo e o procedimento de exercício desse direito”, bem como o modelo de arrependimento constante de anexo ao diploma (anexo I, Parte B). O n.º 4 do art. 6.º determina que as informações previstas na alínea h) podem ser prestadas mediante o modelo de instruções de arrependimento apresentado no anexo I, Parte A, considerando-se cumprido o requisito de informação se essas instruções tiverem sido entregues ao consumidor corretamente preenchidas.

O tribunal conclui que “numa situação em que o número de telefone de um profissional é exibido no seu sítio Internet de um modo que sugere, aos olhos do consumidor médio, a saber, um consumidor normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, que esse profissional utiliza esse número de telefone para os seus contactos com os consumidores, deve considerar‑se que esse número existe na aceção desta disposição. Nesse caso, (…) o profissional que fornece ao consumidor, antes de este estar vinculado por um contrato celebrado à distância ou fora do estabelecimento comercial, as informações relativas às modalidades de exercício do direito de (…) (arrependimento), recorrendo para esse efeito ao modelo de instruções que figura no (…) anexo I, parte A, é obrigado a indicar o mesmo número de telefone nessas instruções, de modo a permitir ao consumidor comunicar‑lhe a sua eventual decisão de fazer uso desse direito através deste número de telefone”.

Em suma, o profissional não é obrigado a disponibilizar ao consumidor um número de telefone, mas, se o fizer, tem de o incluir também nas instruções de arrependimento e permitir que o direito seja exercido por essa via.

Esta solução está em linha com as alterações introduzidas na Diretiva 2011/83/EU pela Diretiva (UE) 2019/2161. Com efeito, a nova redação do art. 6.º-1-c) passa a impor a indicação de um número de telefone, constando também do anexo I, parte A, na nova versão, a obrigatoriedade de inserção de um número de telefone.

Já no Processo C‑208/19 (acórdão de 14 de maio de 2020), os consumidores celebraram um contrato fora do estabelecimento comercial com um arquiteto profissional, “tendo por objeto a elaboração de um projeto de uma casa individual a construir”.

O tribunal austríaco em causa colocou duas questões ao TJUE, a primeira quanto a saber se o contrato em causa (contrato celebrado entre um arquiteto e um consumidor, por força do qual o primeiro se compromete a elaborar unicamente, a favor do segundo, um projeto de uma casa individual a construir e, neste contexto, a realizar planos) é um contrato “relativo(…) à construção de novos edifícios”, contrato esse que, assim qualificado, estaria excluído do âmbito de aplicação da Diretiva 2011/83/UE, nos termos do seu art. 3.º-3-f). O TJUE responde negativamente a esta questão, aplicando-se a este contrato, portanto, a diretiva.

A segunda questão, que pressupunha uma resposta negativa à primeira, consistia em saber se o contrato em causa pode ser qualificado como um contrato sobre o “fornecimento de bens realizados segundo as especificações do consumidor ou claramente personalizados”, caso em que, nos termos do art. 16.º-c), estaria excluído o direito de arrependimento. Note-se que o art. 2.º-4) define “bem produzido segundo as especificações do consumidor” como “qualquer bem que não seja pré-fabricado e para o qual seja indispensável uma escolha ou decisão individual por parte do consumidor”. O tribunal também responde negativamente a esta questão. Segundo o tribunal, “o objeto principal de tal contrato consiste na realização, pelo arquiteto, de uma prestação intelectual que consiste na elaboração de um projeto de uma casa individual a construir, sendo o fornecimento dos planos como bens meramente secundário em relação à prestação principal a realizar” (considerando 59). Não se aplica, portanto, a referida exceção ao direito de arrependimento. Como também é realçado no acórdão, poderá aplicar-se a exceção prevista na alínea a) do art. 16.º, relativa aos contratos de prestação de serviço, mas nesse caso pressupõe-se que o serviço tenha sido integralmente prestado e que a execução tenha sido iniciada com o prévio consentimento expresso dos consumidores e com o reconhecimento, por parte destes, de que perdem o direito de arrependimento quando o contrato tiver sido plenamente executado. Ora, os dois últimos pressupostos parecem não estar verificados, pelo que o exercício do direito de arrependimento por parte dos consumidores é eficaz.

No Processo C‑583/18 (acórdão de 12 de março), estava em causa uma empresa alemã, que “comercializa, na qualidade de intermediária” de uma outra empresa, cartões de desconto para viagens de comboio dessa outra empresa. A encomenda pode ser feita online e o site da empresa não contém qualquer informação sobre o direito de arrependimento.

Também aqui são colocadas duas questões ao TJUE, consistindo a primeira em saber se a diretiva é aplicável a um contrato nos termos do qual “o profissional não está diretamente obrigado a prestar um serviço, antes adquirindo o consumidor o direito de beneficiar de um desconto nos serviços a contratar no futuro”. O tribunal responde afirmativamente a este questão, baseando-se fundamentalmente no art. 2.º-6), que define contrato de prestação de serviço como “qualquer contrato, com exceção de um contrato de compra e venda, ao abrigo do qual o profissional presta ou se compromete a prestar um serviço ao consumidor e o consumidor paga ou se compromete a pagar o respetivo preço”. A definição é suficientemente ampla para abranger qualquer contrato que não possa ser qualificado como contrato de compra e venda.

Dedica-se, então, o tribunal a responder à segunda questão, em concreto, se este contrato deve ser qualificado como um “contrato relativo(…) a serviços de transporte de passageiros”, estando assim excluído do âmbito de aplicação da Diretiva 2011/83/UE, nos termos do art. 3.º-3-k). A resposta é negativa, aplicando-se, portanto, o regime ao contrato em causa. Tal como na decisão anterior, o tribunal realça que as exceções ao direito de arrependimento devem ser interpretadas “de forma estrita” (considerando 27). Neste caso, segundo o tribunal, deve distinguir-se de forma clara o contrato em causa no processo e o contrato de transporte posterior, não sendo aquele um contrato relativo a serviços de transporte. Com efeito, aquele contrato apenas permite beneficiar de um posterior (e eventual) desconto na contratação de serviços de transporte. Daí a solução que considerar o contrato incluído no âmbito da diretiva.

Em breve voltaremos à jurisprudência do TJUE no primeiro semestre de 2020, a propósito dos temas do crédito ao consumo, da comercialização de serviços financeiros à distância e da resolução alternativa de litígios de consumo.

Fique atento!

Portugal adere à Convenção das Nações Unidas sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias

Legislação

Hoje no nosso blog fugimos um pouco ao direito do consumo para dar nota da muito aguardada adesão de Portugal à Convenção das Nações Unidas sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias, adotada em Viena, em 11 de abril de 1980, e também conhecida pelo acrónimo CISG, do inglês United Nation Convention on Contracts for the International Sale of Goods.

A Convenção foi aprovada, para adesão, pelo Decreto n.º 5/2020, de 7 de agosto, que contém em anexo a versão autenticada em inglês e uma tradução em língua portuguesa.

Da longa lista de (85 países) aderentes, constam todos os países da União Europeia, com exceção da Irlanda (e do Reino Unido), e algumas das outras principais economias mundiais, como o Brasil, a China, os Estados Unidos da América ou a Rússia.

A Convenção tem 101 artigos, divididos em quatro partes:

I – Âmbito de aplicação e disposições gerais

II – Formação do contrato

III – Compra e venda de mercadorias

IV – Disposições finais

Nos termos do art. 1.º-1, a Convenção aplica-se a contratos de compra e venda de mercadorias entre partes que tenham o seu estabelecimento em diferentes Estados, nos casos em que ambos os Estados são Estados contratantes ou em que as regras de direito internacional privado conduzem à aplicação da lei de um Estado contratante.

Como já referimos, a Convenção não se aplica a contratos de consumo. Com efeito, o artigo 2.º-a) estabelece que a Convenção não é aplicável às vendas de “mercadorias adquiridas para uso pessoal, familiar ou doméstico, salvo se o vendedor, em qualquer momento anterior à conclusão do contrato ou no momento da sua conclusão, não conhecesse nem devesse ter conhecimento que as mesmas tinham sido adquiridas para um desses usos”.

Apesar de não se aplicar a relações de consumo, a Convenção constitui uma das principais fontes inspiradoras das diretivas sobre venda de bens de consumo [Diretiva 1999/44/CE e Diretiva (UE) 2019/771], em especial no que respeita à introdução do conceito de conformidade do bem com o contrato. Tal como as diretivas referidas, a Convenção também se aplica a “contratos de fornecimento de mercadorias a fabricar ou a produzir” (artigo 3.º-1).

A adesão à Convenção será certamente um passo importante para o aprofundamento das relações comerciais internacionais das empresas portuguesas e o seu estudo será cada vez mais relevante para os juristas nacionais.

Cláusulas contratuais gerais na jurisprudência do TJUE no primeiro semestre de 2020

Jurisprudência

Iniciamos na semana passada uma série de posts sobre a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no primeiro semestre de 2020. Abordamos então o conceito de consumidor. Analisamos agora quatro decisões proferidas em matéria de cláusulas contratuais gerais.

Começamos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 93/13/CEE, do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores. Duas decisões debruçam-se sobre o art. 1.º-2 da Diretiva, que estabelece que “as disposições da presente diretiva não se aplicam às cláusulas contratuais decorrentes de disposições legislativas ou regulamentares imperativas, bem como das disposições ou dos princípios previstos nas convenções internacionais de que os Estados-Membros ou a Comunidade sejam parte, nomeadamente no domínio dos transportes”.

No Processo C‑779/18 (acórdão de 26 de março de 2020), conclui-se que o preceito “deve ser interpretado no sentido de que não está excluída do âmbito de aplicação desta diretiva uma cláusula contratual que fixa o custo do crédito excluindo juros respeitando o limite máximo previsto por uma disposição nacional, sem necessariamente ter em conta os custos efetivamente suportados”.

No Processo C‑125/18 (acórdão de 3 de março de 2020), defende-se que se encontra abrangida “a cláusula de um contrato de mútuo hipotecário celebrado entre um consumidor e um profissional, que prevê que a taxa de juro aplicável ao mútuo se baseia num dos índices de referência oficiais previstos pela regulamentação nacional suscetíveis de ser aplicados pelas instituições de crédito aos mútuos hipotecários, quando essa regulamentação não prevê nem a aplicação imperativa desse índice, independentemente da escolha das partes no contrato, nem a sua aplicação supletiva na falta de um acordo diferente entre essas mesmas partes”.

Nesta última decisão, considera-se ainda que o tribunal nacional deve “fiscalizar o caráter claro e compreensível de uma cláusula contratual relativa ao objeto principal do contrato”. Esta questão é relevante em Estados-Membros que, ao contrário de Portugal, tenham transposto o art. 4.º-2 da Diretiva (“a avaliação do carácter abusivo das cláusulas não incide nem sobre a definição do objeto principal do contrato nem sobre a adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os bens ou serviços a fornecer em contrapartida, por outro, desde que essas cláusulas se encontrem redigidas de maneira clara e compreensível”)

O tribunal vai mais longe, concluindo que, “para cumprir a exigência de transparência de uma cláusula contratual que fixa uma taxa de juro variável no âmbito de um contrato de mútuo hipotecário, essa cláusula deve não só ser inteligível nos planos formal e gramatical mas também permitir que um consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, esteja em condições de compreender o funcionamento concreto do modo de cálculo dessa taxa e avaliar assim, com base em critérios precisos e inteligíveis, as consequências económicas, potencialmente significativas, dessa cláusula nas suas obrigações financeiras”.

Trata ainda este acórdão das consequências da nulidade da cláusula. Defende-se aqui que é admissível uma norma que permita a substituição de um índice considerado abusivo (neste caso, um índice de referência para o cálculo dos juros variáveis de um empréstimo) “por um índice legal, aplicável na falta de acordo em contrário das partes no contrato, desde que o contrato de mútuo hipotecário em causa não possa subsistir em caso de supressão da referida cláusula abusiva, e que a anulação desse contrato no seu todo exponha o consumidor a consequências particularmente prejudiciais”.

No Processo C‑495/19 (acórdão de 4 de junho de 2020), aborda-se a questão do conhecimento oficioso de cláusulas abusivas, matéria que muito tem ocupado o TJUE e que é muito pouco discutida (e aplicada) em Portugal. Conclui-se que contraria o direito europeu a interpretação de uma norma nacional no sentido de “que impede o órgão jurisdicional a quem foi submetida uma ação, (…) e que se pronuncia à revelia, não tendo esse consumidor comparecido na audiência para a qual foi convocado, de adotar as medidas de instrução necessárias para apreciar oficiosamente o caráter abusivo das cláusulas contratuais em que o profissional baseou o seu pedido, quando esse tribunal tenha dúvidas quanto ao caráter abusivo dessas cláusulas”.

Também o Processo C-511/17 (acórdão de 11 de março de 2020) se ocupa desta temática. Segundo o tribunal, a Diretiva deve ser interpretada “no sentido de que um juiz nacional, chamado a pronunciar‑se sobre uma ação intentada por um consumidor e destinada a obter a declaração do caráter abusivo de determinadas cláusulas constantes de um contrato que este último celebrou com um profissional, não está obrigado a apreciar oficiosa e individualmente todas as outras cláusulas contratuais, que não foram impugnadas pelo dito consumidor, a fim de verificar se as mesmas podem ser consideradas abusivas, mas apenas as que estão relacionadas com o objeto do litígio, tal como este foi delimitado pelas partes, desde que o juiz nacional disponha dos elementos de direito e de facto necessários para esse efeito, completados, eventualmente, por medidas de instrução”. Acrescenta ainda o tribunal que, “embora seja verdade que, para apreciar o caráter abusivo da cláusula contratual que serve de base às pretensões de um consumidor, se deva ter em conta todas as outras cláusulas do contrato celebrado entre um profissional e esse consumidor, essa tomada em consideração não implica, enquanto tal, uma obrigação, para o juiz nacional chamado a pronunciar‑se, de examinar oficiosamente o caráter eventualmente abusivo de todas essas cláusulas”.

Continuaremos esta série muito em breve, com novos temas e novas decisões proferidas pelo TJUE no primeiro semestre de 2020.

Conceito de consumidor na jurisprudência do TJUE no primeiro semestre de 2020

Jurisprudência

Iniciamos hoje uma série de posts dedicados à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no primeiro semestre de 2020. Selecionamos, para o efeito, as 16 decisões que, debruçando-se sobre pedidos de reenvio prejudicial de tribunais dos Estados-Membros, tratam matérias de direito do consumo.

Começamos com o tema do conceito de consumidor, presente em duas decisões do TJUE.

No Processo C-329/19 (acórdão de 2 de abril de 2020), o tribunal é chamado a pronunciar-se sobre a qualificação do condomínio como consumidor, matéria que já tratamos aqui no blog a propósito de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Estava em causa, neste caso, a aplicação da Diretiva 93/13/CEE, relativa às cláusulas abusivas.

O TJUE conclui que o condomínio não é consumidor para efeitos da Diretiva, mas que os Estados-Membros têm liberdade no sentido de qualificar o condomínio como consumidor no direito interno.

Mantém-se aqui a orientação no sentido de que os Estados-Membros podem alargar o âmbito de aplicação subjetivo das diretivas de proteção do consumidor, mesmo que estas sejam de harmonização máxima, podendo os direitos nacionais enquadrar quaisquer pessoas como consumidores.

No Processo C‑500/18 (acórdão de 2 de abril de 2020), está em causa o conceito de consumidor para efeitos de aplicação do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, relativo à competência judiciária.

O tribunal conclui que “uma pessoa singular que, ao abrigo de um contrato como o contrato financeiro por diferenças celebrado com uma sociedade financeira, efetua operações financeiras por intermédio dessa sociedade, pode ser qualificada de «consumidor», na aceção dessa disposição, se a celebração desse contrato não se inserir no âmbito da atividade profissional dessa pessoa, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar”.

Defende ainda o tribunal que não são decisivos para a qualificação “o facto de essa pessoa ter efetuado um elevado número de transações num período relativamente curto ou ter investido elevadas quantias nessas transações”. Isto significa que o número de transações e/ou o seu montante não constituem indícios suficientes para concluir se o investidor é consumidor.

Em sentido contrário, também não releva por si só “o facto de essa pessoa ser um «cliente não profissional»”, nos termos da Diretiva 2004/39/CE, relativa aos mercados de instrumentos financeiros. Assim, a qualificação como “cliente não profissional” não implica necessariamente a qualificação da pessoa em causa como “consumidor”.

Iremos analisar mais catorze decisões do TJUE em futuros posts, sendo o próximo desta série dedicado a cláusulas contratuais gerais.