Sobre a importância da publicação das decisões dos centros de arbitragem de consumo

Doutrina

Por Joana Campos Carvalho e Jorge Morais Carvalho

 

A publicação da Portaria n.º 165/2020, de 7 de julho, voltou a recordar-me da necessidade absoluta e urgente de as decisões dos centros de arbitragem de consumo serem publicadas e, assim, estarem disponíveis a quem as queira ler.

A Portaria referida trata de arbitragem, mas noutro domínio (matéria administrativa e tributária). O art. 5.º determina que a publicação de cada decisão arbitral é acompanhada, entre outros elementos, do “texto da decisão, com conteúdo pesquisável, expurgado de todos os elementos suscetíveis de identificar as pessoas a que diz respeito”.

É precisamente esta a regra que defendemos para a arbitragem (institucionalizada) de consumo, seguindo de perto o que já escrevemos sobre o tema [1].

No que diz respeito à publicitação das sentenças, o art. 30.º-6 da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV) estabelece que o dever de sigilo previsto no art. 30.º-5 “não impede a publicação de sentenças e outras decisões do tribunal arbitral, expurgadas de elementos de identificação das partes, salvo se qualquer destas a isso se opuser”.

No caso das decisões arbitrais de consumo, a publicação assume uma relevância particular, tendo em conta também a necessidade de controlo da aplicação das regras de proteção do consumidor, especialmente imposta pelo art. 14.º-1 da Lei 144/2015 [2].

O princípio da publicidade, na vertente da publicação das sentenças, cumpre alguns propósitos adicionais [3].

O direito tem o poder de mudar a sociedade. As normas jurídicas conformam a atuação das pessoas e, quando uma norma jurídica é alterada, o comportamento das pessoas adapta-se a essa alteração. No nosso sistema jurídico, a maior parte das normas jurídicas é criada por via legislativa. Contudo, a interpretação por parte dos tribunais é muitas vezes fundamental para a compreensão cabal de determinada norma jurídica. A publicidade, neste caso das decisões finais dos tribunais, assume, portanto, relevância para o cabal conhecimento do direito pela sociedade.

Associada a esta ideia, o princípio da publicidade contribui, também, para assegurar a certeza jurídica e a uniformidade jurídica.

Por um lado, o princípio da certeza jurídica, isto é “o conhecimento prévio daquilo com que cada um pode contar, para, com base em expectativas firmes governar a sua vida e orientar a sua conduta” [4], apenas pode ser alcançado se o Direito for conhecido por todas as pessoas. Assim, a publicidade e o acesso às decisões judiciais, na medida em que estas são, também, fonte de Direito, é fundamental para garantir que as pessoas conhecem o Direito e sabem, portanto, com o que contar, conformando a sua conduta.

Por outro lado, é fundamental também que os próprios julgadores conheçam e tenham acesso às decisões dos colegas para garantir a uniformidade das decisões. Com isto não se pretende, de forma alguma, afirmar que, em Portugal, os juízes e os árbitros estão vinculados ao que os colegas decidiram em casos anteriores, já que o nosso sistema jurídico não é baseado na regra do precedente. Contudo, é importante que quem julga tenha disponível toda a informação para garantir uma boa decisão, que pode, naturalmente, implicar uma discordância da jurisprudência anterior, mas neste caso esclarecida e ponderada.

Por último, importa ainda referir a importância do princípio da publicidade no avanço da ciência. Para fazer avançar qualquer ciência é habitualmente necessário o conhecimento profundo da matéria em estudo. São necessários dados que permitam ao cientista perceber o objeto da sua análise e, posteriormente, construir raciocínios sobre esse conhecimento. Nessa medida, a publicidade do processo e das decisões judiciais contribui para o avanço da ciência, seja jurídica, sociológica, antropológica, etc., porque permite o acesso a dados de estudo.

No âmbito do direito do consumo, são raros os casos que chegam aos tribunais judiciais, em grande medida tendo em conta o baixo valor da maior parte dos litígios. Nessa medida, os tribunais arbitrais dos centros de arbitragem de consumo são a principal sede de aplicação prática da legislação de consumo. Revela-se, pois, de primordial relevância a publicação das suas decisões.

Assim, se na arbitragem comercial faz todo o sentido que o art. 30.º-5 da LAV seja interpretado no sentido de o tribunal dever solicitar autorização a ambas as partes antes da publicação da decisão [5], na arbitragem de consumo tal interpretação não será a mais adequada. Tendo em conta a importância da publicação das decisões arbitrais acima explicitada, essa publicação deve ser a regra nos centros de arbitragem de consumo.

As partes podem opor-se à publicação, nos termos do art. 30.º-5 da LAV, mas a iniciativa terá de ser sua, e fundamentada, não cabendo ao tribunal pedir-lhes autorização. Se a decisão for expurgada de qualquer elemento de identificação das partes e estas não puderem ser identificadas de outra forma, não há qualquer razão para que a decisão não seja publicada, pelo que as partes não têm o direito de oposição à publicação.

 

[1] Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, 2017, pp. 138 a 140

[2] Marte Knigge e Charlotte Pavillon, “The Legality Requirement of the ADR Directive: Just Another Paper Tiger?”, in EuCML, n.º 4, 2016, p. 1631.

[3] Szonja Navratil, “Publicity in the Administration of Justice and the Disclosure of Court Decisions”, 2009, pp. 9 a 11.

[4] João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 2002, pp. 56 e 57.

[5] António Menezes Cordeiro, Tratado da Arbitragem, Almedina, 2015, p. 308.

Comissão Europeia, viagens organizadas e vouchers

Legislação

Há cerca de uma semana, chamamos aqui a atenção para a circunstância de o regime do art. 3.º-1 do Decreto-Lei n.º 17/2020, de 23 de abril, contrariar a Diretiva (UE) 2015/2302, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa às viagens organizadas e aos serviços de viagem conexos.

Ora, hoje, a Comissão Europeia decidiu iniciar um processo por infração contra 10 Estados-Membros, incluindo Portugal (os outros são República Checa, Chipre, Grécia, França, Itália, Croácia, Lituânia, Polónia e Eslováquia), por violação, precisamente, do artigo 12.º-4 da Directiva (UE) 2015/2302.

Aí se refere que “a Comissão tem deixado constantemente claro que os direitos dos consumidores permanecem válidos no atual contexto sem precedentes e que as medidas nacionais de apoio à indústria não devem baixá-los”. Os Estados-Membros não estão, portanto, autorizados a prever medidas, ainda que temporárias e excecionais, que contrariem o previsto na Diretiva, nomeadamente baixando o nível de proteção dos consumidores.

Segundo a Comissão, nos 10 países referidos, são aplicáveis regras nacionais específicas sobre viagens organizadas que permitem aos organizadores de viagens organizadas emitir vales de viagem, em vez de reembolso em dinheiro, para viagens canceladas, ou adiar o reembolso muito além do período de 14 dias, tal como estabelecido na Diretiva.

Do ponto de vista formal, a Comissão enviou cartas de notificação para cumprir aos países referidos. Estes têm agora dois meses para responder à Comissão e tomar as medidas necessárias para colmatar as lacunas identificadas.

Portugal terá, portanto, como referimos no dia 24 de junho neste espaço, de revogar o regime do art. 3.º-1 do Decreto-Lei n.º 17/2020.

Note-se que, enquanto não for revogada, a norma é aplicável. As Diretivas não são diretamente aplicáveis, pelo que é este o regime português no atual contexto. O direito europeu prevê apenas, nestes casos, a possibilidade de responsabilização dos Estados-Membros.

Nuno Manuel Pinto Oliveira escreve sobre venda de bens de consumo

Recensão

Em cima do acontecimento, damos hoje nota da publicação na Revista de Direito Comercial de um artigo de Nuno Manuel Pinto Oliveira, Juiz Conselheiro no Supremo Tribunal de Justiça e, como certamente saberão, também Professor da Escola de Direito da Universidade do Minho, dedicado à venda de bens de consumo.

Com 160 páginas, trata-se de uma verdadeira monografia sobre o tema, que tem como título “O Direito Europeu da Compra e Venda 20 Anos Depois – Comparação entre a Diretiva 1999/44/CE, de 25 de maio de 1999, e a Diretiva 2019/771/UE, de 20 de maio de 2019“. É de acesso livre, aspeto que também me parece muito positivo.

Depois de uma introdução dedicada ao compromisso entre a autonomia e a heteronomia no direito europeu da compra e venda (pp. 1217-1236), o autor debruça-se sobre os conceitos de conformidade e de não conformidade na Directiva 1999/44/CE (pp. 1236-1244), no anteprojeto de um quadro comum de referência e na proposta para um direito europeu comum da compra e venda (pp. 1245-1252) e na Diretiva 2019/771/UE (pp. 1252-1265). Segue-se uma análise da questão do ónus da prova da não conformidade com o contrato de compra e venda (pp. 1265-1270). O autor dedica-se, então, ao tema central da obra, os direitos do comprador e do vendedor em caso de não conformidade, primeiro na Diretiva 1999/44/CE (pp. 1270-1309) e no anteprojeto de um quadro comum de referência e na proposta para um direito europeu comum da compra e venda (pp. 1310-1326) e depois na Diretiva 2019/771/UE (pp. 1326-1356). São ainda tratados os temas do ónus da denúncia e dos prazos de garantia, denúncia e exercício dos direitos (pp. 1357-1368).

A conclusão (pp. 1368-1376) aponta para o futuro e para as opções do legislador no que respeita à  transposição da Diretiva 2019/771/UE para o direito português, defendendo o autor que se façam as alterações ao Código Civil que já poderiam ter sido feitas, como na Alemanha, na transposição da Diretiva 1999/44/CE.

Salientamos a afirmação (pp. 1369 e segs.) de que “seria porventura de aproveitar a oportunidade proporcionada pela Directiva 2019/771/UE para abandonar a distinção entre os defeitos ou vícios da coisa e os defeitos ou vícios do direito e para, dentro dos defeitos ou vícios da coisa, abandonar a distinção entre a venda específica e a venda genérica, em favor de conceitos amplos e unitários de conformidade e de não conformidade (de falta de conformidade); para abandonar o paradigma do erro em favor do paradigma do cumprimento defeituoso, imperfeito ou inexacto do contrato de compra e venda; para eliminar a restrição dos direitos à reparação e à substituição da coisa aos casos em que o vendedor conhecesse, ou devesse conhecer, o defeito da coisa vendida; para abandonar a relação de subsidiaridade entre a reparação e a substituição da coisa defeituosa em favor de uma relação de alternatividade, ainda que de alternatividade imperfeita; para abandonar o direito de anulação em favor de um direito de resolução; e para consagrar, em definitivo, a prioridade dos direitos orientados para o cumprimento sobre os direitos orientados para a cessação, total ou parcial, do contrato”.

Aproveito para deixar aqui a referência a outros textos escritos por autores portugueses sobre o tema, já à luz da Diretiva 2019/771/UE:

E agora é a hora de fazer uma leitura minuciosa deste artigo, pelo que vos deixo, recomendando que façam o mesmo.

Boas leituras!

Mais um pouco sobre viagens organizadas, cancelamentos e reembolsos

Legislação

Já aqui falamos de viagens organizadas por duas vezes nos últimos meses, a primeira a propósito do Decreto-Lei n.º 17/2020, de 23 de abril, que estabelece, em traços gerais, que o cancelamento de viagens organizadas marcadas para o período entre 13 de março de 2020 e 30 de setembro de 2020 não permite ao viajante a resolução imediata do contrato e o consequente direito ao reembolso, que só poderá ser efetivado no início do ano de 2022, e a segunda sobre a resposta europeia, embora nesse contexto nos tenhamos centrado essencialmente no transporte aéreo.

Imaginemos agora o seguinte exemplo: em 2019, o consumidor celebra um contrato de viagem organizada, a realizar em junho de 2020, que inclui o transporte aéreo e um cruzeiro, pagando de imediato. Nos termos do contrato, o consumidor pode cancelar a reserva até ao final de março de 2020, pagando um valor (penalização) correspondente a 10% do preço da viagem. Sem que a viagem tenha sido entretanto cancelada, o consumidor, na última semana de março, procede ao seu cancelamento.

Aplicar-se-á neste caso o Decreto-Lei n.º 17/2020, podendo a agência de viagens adiar o reembolso até 2022?

A resposta deve ser em sentido negativo. Com efeito, o regime aplica-se às viagens “que não sejam efetuadas ou que sejam canceladas por facto imputável ao surto da pandemia da doença Covid-19”. Ora, neste caso, a viagem foi cancelada ao abrigo da cláusula contratual que permite ao consumidor desvincular-se do contrato, sem indicação de motivo, dentro de um determinado prazo. Essa cláusula contratual visa precisamente dar segurança ao consumidor no momento da celebração do contrato, salvaguardando a posição da agência de viagens, que pode reter 10% do valor da viagem se este direito for exercido. Neste caso, o valor pago deve, portanto, ser restituído de imediato, depois de deduzidos os 10% da penalização.

Se a resposta fosse em sentido positivo, aplicando-se o Decreto-Lei n.º 17/2020 a este caso, considerar-se-ia o surto da pandemia como causa da cessação do contrato e o viajante poderia optar entre a emissão de um vale ou o reagendamento da viagem (art. 3.º-1). O reagendamento da viagem é impossível do ponto de vista lógico, uma vez que o consumidor já tinha cancelado a reserva antes do cancelamento da viagem. Quanto ao vale, este deve ser “de igual valor ao pagamento efetuado pelo viajante” [art. 3.º-1-a)]. Não pode, portanto, ter valor inferior. No exemplo que estamos a analisar, se a agência de viagens quiser impor a atribuição de um vale, prática que como já vimos não respeita o regime legal, não poderá nesse caso deduzir ao valor creditado os 10% da penalização. Seria ter o melhor dos dois Mundos, considerando simultaneamente que a causa da cessação do contrato é o arrependimento do consumidor (cancelamento da reserva) e o cancelamento da própria viagem.

Uma ultima nota para referir que este regime do art. 3.º-1 do Decreto-Lei n.º 17/2020 é excecional e temporário, limitando neste período o direito do consumidor à resolução do “contrato de viagem antes do início da mesma sem pagar qualquer taxa de [resolução], caso se verifiquem circunstâncias inevitáveis e excecionais no local de destino ou na sua proximidade imediata que afetem consideravelmente a realização da mesma ou o transporte dos passageiros para o destino”, previsto no art. 25.º-4 do Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março (regime jurídicos das viagens organizadas). O n.º 5 estabelece que a resolução “do contrato de viagem nos termos do número anterior confere ao viajante o direito ao reembolso integral dos pagamentos efetuados, sem direito a indemnização adicional, sendo a agência de viagens e turismo
organizadora responsável por esse reembolso”.

O problema é que estes preceitos transpõem o art. 12.º-2 da Diretiva (UE) 2015/2302, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa às viagens organizadas e aos serviços de viagem conexos, não podendo os Estados-Membros manter ou introduzir no direito nacional disposições divergentes (art. 4.º). Ora, é precisamente isso que o legislador português faz no art. 3.º-1 do Decreto-Lei n.º 17/2020, que viola, assim, o direito europeu, devendo ser eliminado.

A este propósito, a Vice-Presidente da Comissão Europeia, Margrethe Vestager, referiu no mês passado que “os consumidores têm direito ao reembolso em dinheiro. E, ponto final”.

Quebra de rendimentos e serviços públicos essenciais

Legislação

Há pouco menos de um mês, publicamos aqui um texto sobre a Lei n.º 18/2020, de 29 de maio, que alterou o art. 4.º da Lei n.º 7/2020, de 10 de abril, passando a prever-se no n.º 2 que a proibição de suspensão do fornecimento dos serviços de fornecimento de água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas se aplica “quando motivada por situação de desemprego, quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 %, ou por infeção por Covid-19”. Nos termos do n.º 3, estes factos também permitem ao consumidor, no que respeita a serviços de comunicações eletrónicas, a cessação unilateral do contrato, sem lugar a compensação ao fornecedor, ou a sua suspensão temporária.

Se a situação de desemprego ou a infeção por Covid-19 são fáceis de demonstrar, a demonstração da quebra de rendimentos pode ser mais complexa. Remeteu-se, então, esta questão para “portaria a aprovar,
no prazo de 15 dias, pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas das comunicações, do ambiente, da energia e da administração local” (art. 4.º-6).

Não foram 15 dias, mas foi hoje publicada a Portaria n.º 149/2020, de 22 de junho, que define e regulamenta os termos em que é efetuada a demonstração da quebra de rendimentos.

O art. 3.º-1 estabelece que a quebra de rendimentos “é calculada pela comparação entre a soma dos rendimentos dos membros do agregado familiar no mês em que ocorre a causa determinante da alteração de rendimentos e os rendimentos auferidos pelos mesmos membros do agregado no mês anterior”.

Não se define “causa determinante”, o que pode gerar dúvidas interpretativas. Poderá ser, no caso de trabalhadores dependentes, a colocação em regime de layoff e, no caso de trabalhadores independentes, a perda de um ou mais clientes. Em geral, poderá ser muito complexo perceber qual a “causa determinante”, no caso de se verificar uma concorrência de causas. É igualmente difícil conseguir delimitar esta análise por períodos mensais. Imaginemos um trabalhador independente que não recebeu nada nos dois meses anteriores e que perde entretanto todos os seus clientes. Não terá tido uma perda de rendimentos em comparação com o mês anterior, mas a sua situação caberá certamente no espírito do regime.

O art. 3.º-2 elenca os rendimentos relevantes para a aplicação deste regime, incluindo os de trabalho dependente, os de trabalho independente, os de pensões, os de prestações sociais recebidas de forma regular e os de outros rendimentos recebidos de forma regular ou periódica.

No que respeita aos comprovativos, a regra geral prevista no art. 2.º-1 é a da suficiência da declaração sob compromisso de honra, por parte do utente, que ateste quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20%. Os prestadores de serviços públicos essenciais poderão, em momento posterior, solicitar ao utente que comprove a alteração de rendimentos através do documento previsto no art. 3.º-3 (recibos de vencimento ou declaração da entidade patronal, no caso de rendimentos de trabalho dependente, ou documentos emitidos pelas entidades pagadoras ou outros documentos que evidenciem o recebimento, nos restantes casos).

Covid-19 e venda de bens de consumo

Legislação

A propósito do Decreto-Lei n.º 24-A/2020, de 29 de maio, que aditou o artigo 18.º-A ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020

Os nossos leitores já teriam certamente estranhado a circunstância de, em quase dois meses de legislação em torno da Covid-19, ainda não ter sido aprovada qualquer norma sobre venda de bens de consumo.

Aí está ela, no contexto da décima terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março.

O novo artigo 18.º-A, que tem como epígrafe “prorrogação dos prazos para exercício de direitos do consumidor”, estabelece que “os prazos para o exercício de direitos previstos no artigo 5.º-A do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, na sua redação atual, cujo término se tenha verificado entre os dias 18 de março de 2020 e 31 de maio de 2020, são prorrogados até 30 de junho de 2020”.

Esta medida reforça de forma clara os direitos dos consumidores, tendo como objetivo dar resposta à impossibilidade ou dificuldade de contacto com o profissional durante o período da crise pandémica, quer pelo eventual encerramento de estabelecimentos comerciais quer pela necessidade de confinamento do consumidor.

O artigo 5.º-A-1 do Decreto-Lei n.º 67/2003 estabelece prazos (i) para a denúncia da falta de conformidade (dois meses ou um ano a contar da deteção da falta de conformidade, consoante se trate de um bem móvel ou imóvel, respetivamente) e (ii) para a caducidade da ação (dois ou três anos a contar da data da denúncia, consoante se trate de um bem móvel ou imóvel, respetivamente).

A prorrogação prevista no artigo 18.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 implica que, se o prazo para a denúncia, por exemplo, tiver terminado no dia 19 de abril (por ter sido detetada a falta de conformidade no bem móvel no dia 19 de fevereiro), a denúncia ainda poderá ser feita até ao dia 30 de junho. Do mesmo modo, se o prazo para propor a ação terminasse no dia 19 de abril (por a denúncia ter sido feita nesse mesmo dia em 2018), prolonga-se até ao dia 30 de junho.

E se o período da garantia legal de conformidade, que não é prorrogado por este novo regime, terminar entre os dias 18 de março e 31 de maio sem que o consumidor tenha feito a denúncia? Nos termos do artigo 5.º-A-1 do Decreto-Lei n.º 67/2003, os direitos do consumidor caducariam nessa data, não sendo possível a denúncia em momento posterior. No entanto, deve fazer-se uma interpretação do artigo 18.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 tendo em conta a sua teleologia, permitindo que a denúncia da falta de conformidade seja feita após o termo final do prazo da garantia legal de conformidade, no limite até ao dia 30 de junho.

Salienta-se aqui um problema levantado pelo novo art. 18.º-A. Ao prever-se a prorrogação dos prazos que terminavam entre os dias 18 de março e 31 de maio até ao dia 30 de junho, os prazos que terminavam  depois (entre os dias 1 de junho e 29 de junho) vão terminar efetivamente na data prevista, ou seja mais cedo do que aqueles.

Recorrendo a um exemplo, imaginemos que o consumidor A detetou a falta de conformidade no dia 20 de janeiro, o consumidor B no dia 31 de março e o consumidor C no dia 1 de abril. Os consumidores A e B poderão cumprir o ónus de denúncia até ao dia 30 de junho, enquanto o consumidor C, apesar de ter detetado a falta de conformidade mais tarde, apenas o poderá fazer até ao dia 1 de junho.

Mais sobre Covid-19 e serviços públicos essenciais

Legislação

A propósito da Lei n.º 18/2020, de 29 de maio.

Quem nos acompanha com regularidade lembra-se seguramente do texto que publicamos há pouco menos de um mês sobre o art. 4.º da Lei n.º 7/2020 e o impacto da Covid-19 nos contratos relativos a serviços públicos essenciais.

O legislador volta agora ao tema, alterando o art. 4.º da Lei n.º 7/2020, o que vem resolver alguns problemas, mas criar outros.

As duas principais novidades introduzidas agora pela Lei n.º 18/2020 consistem (i) no alargamento do prazo relativo à proibição de suspensão do fornecimento dos serviços públicos essenciais abrangidos (água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas) e (ii) na limitação da proteção aos utentes, quer em função da sua natureza quer em função da situação em que se encontram.

Quanto ao prazo, a proibição de suspensão alarga-se agora até ao dia 30 de setembro. Ultrapassa-se, assim, a dúvida interpretativa suscitada pelo art. 4.º-1 da Lei n.º 7/2020, que consistia em saber se a proibição de suspensão se aplicava até ao dia 2 de junho (prazo de um mês a contar do termo final do estado de emergência) ou 30 de junho (mês subsequente ao do termo final do estado de emergência).

No que respeita à limitação da proteção dos utentes, por um lado, é necessário ter em conta que, no que concerne à prestação dos serviços de fornecimento de água, de energia elétrica e de gás natural, a regra se aplicava, na versão originária do diploma, independentemente da verificação de qualquer pressuposto. Ora, na versão atual, “a proibição de suspensão (…) aplica-se quando motivada por situação de desemprego, quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 %, ou por infeção por Covid-19”. Equipara-se, por baixo, ou seja, com um nível menor de proteção, os quatro serviços públicos essenciais abrangidos por este regime, uma vez que já era esta a regra para os serviços de comunicações eletrónicas.

Por outro lado, na versão originária do diploma, no que respeita à prestação dos serviços de fornecimento de água, de energia elétrica e de gás natural, o regime protegia qualquer utente (incluindo empresas) e não apenas a consumidores. Atualmente, com a inclusão de pressupostos que remetem para “desemprego”, “agregado familiar” ou “infeção”, teremos de estar necessariamente perante pessoas singulares, o que aponta para a restrição da proteção a utentes/consumidores.

Esta restrição entra em vigor no dia 1 de junho de 2020 (art. 3.º-2), o que significa que teremos uma redução do nível de proteção dos utentes, que poderá ser mais ou menos significativa em função da interpretação do prazo da proibição de suspensão previsto na versão originária do art. 4.º-1.

Lembramos, contudo, que, nos termos dos Regulamentos 255-A/2020 e 356-A/2020, da ERSE, não podem ser interrompidos os serviços de fornecimento de energia elétrica e de gás natural a qualquer utente/consumidor, independentemente da existência de um fundamento, até 30 de junho de 2020.

O diploma prolonga igualmente até 30 de setembro de 2020 o prazo dentro do qual o utente/consumidor de serviços de comunicações eletrónicas (em situação de desemprego ou com uma quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 % face aos rendimentos do mês anterior) se pode desvincular do contrato, mesmo que se encontre dentro do período de fidelização. Atribui-se igualmente ao utente/consumidor o direito à suspensão temporária do contrato.

Primeiros textos sobre as relações de consumo em tempos de Covid-19

Recensão

Hoje dedicamo-nos aos primeiros textos escritos a propósito da influência da epidemia SARS-CoV-2 e da infeção epidemiológica por Covid-19 no direito português do consumo.

Uma das características fundamentais dos textos escritos em tempos de crise pandémica é a sua inevitável desatualização, dada a incrível profusão de diplomas legislativos. A título de exemplo, refere-se o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, que já conta com 11 alterações, o que corresponde a uma média superior a uma alteração por semana.

No dia 9 de abril de 2020, publicamos no Observatório Almedina o texto “Direito do Consumo em Tempos de Pandemia – O Efeito das Crises no Nível de Proteção dos Consumidores“, no qual, além da breve análise de alguns diplomas legais até então aprovados, chamamos a atenção para duas tendências dos momentos de crise: (i) desproteger os consumidores para aliviar os profissionais de alguns custos e assim garantir a sua subsistência; (ii) acentuar a proteção de grupos de pessoas particularmente desprotegidas pelas dificuldades económicas em que se encontram. Os diplomas entretanto aprovados confirmam estas tendências.

Ainda sobre a realidade portuguesa, destacamos o texto de Nuno Manuel Pinto Oliveira “Covid-19, Contratos de Crédito, Contratos de Arrendamiento y Contratos de Viajes del Sector Turístico en Portugal“, publicado no Vol. VII, n.º 2 (2020), da Revista de Derecho Civil. Neste número são ainda publicados textos sobre o impacto da crise nos direitos alemão, austríaco, espanhol, francês, italiano, inglês, romeno, suíço, colombiano e mexicano. É ainda apresentado um quadro comparativo relativo a algumas medidas relativas a contratos de crédito.

Depois de uma breve introdução, em que salienta que o regime da alteração de circunstâncias foi considerado insuficiente, por se aplicar indistintamente a todos os contratos e por invocar conceitos indeterminados, cuja concretização causa incerteza jurídica, o autor analisa sucessivamente as medidas temporárias aprovadas em matéria de crédito ao consumo, arrendamento e viagens organizadas e reservas em alojamentos turísticos e estabelecimentos de alojamento local.

O autor conclui que existem indícios preocupantes de incoerência nos regimes jurídicos aprovados, chamando a atenção para a dificuldade que consumidores e empresas poderão ter para cumprir os contratos de crédito em outubro de 2020, reembolsando o capital e os juros agravados.

Sobre o crédito ao consumo em tempos de Covid-19 também já se pronunciou Miguel Pestana de Vasconcelos, na Revista de Direito Comercial, com um texto que tem como título “Contratos de Crédito Bancário e Covid-19. O Regime da Moratória Decorrente do Dec.-Lei n.º 10-J/2020” (pp. 1107-1134).

Salienta o autor que o regime constante do Decreto-Lei n.º 10-J/2020 é “muito complexo, mas gera diversas dúvidas – o que em grande parte, mas não só, se explica pela urgência com que foi elaborado -, quanto a seu âmbito de aplicação, em termos objetivos, ou seja, quanto aos créditos, de articulação com os regimes gerais de direito bancário, no âmbito da insolvência e recuperação, assim como no da responsabilidade bancária”.

Covid-19, transporte aéreo e outras viagens

Legislação

Já aqui trouxemos há algumas semanas as novidades legislativas nacionais em matéria de viagens organizadas e reservas em empreendimentos turísticos e estabelecimentos de alojamento local, tendo então previsto que teríamos novidades em breve em matéria de transporte aéreo. É este o tema a que hoje nos dedicamos, embora, como verão, indo um pouco além, a outras viagens, incluindo as organizadas.

Em matéria de cancelamento de voos, vigora o Regulamento (CE) n.º 261/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos.

No dia 18 de março de 2020, foi emitida uma Comunicação pela Comissão Europeia com orientações interpretativas relativas aos direitos dos passageiros no contexto da pandemia.

Neste documento, defende-se que o cancelamento resultante de medidas restritivas adotadas a nível nacional se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias, para efeito do art. 5.º-3 do Regulamento 261/2004, o que determina que a transportadora aérea não é obrigada a pagar uma indemnização aos passageiros.

Não fica, naturalmente, afastado o direito ao reembolso do valor total pago, previsto nos arts. 5.º-1-a) e 8.º-1-a) do Regulamento, o qual deve ser feito no prazo máximo de sete dias, “em numerário, através de transferência bancária eletrónica, de ordens de pagamento bancário, de cheques bancários ou, com o acordo escrito do passageiro, através de vales de viagem e/ou outros serviços”.

O passageiro não tem, portanto, de aceitar qualquer solução que passe pelo reagendamento da viagem ou pela atribuição de um vale para utilização em momento posterior. Em alterativa ao reembolso do preço, o passageiro pode também exigir o reencaminhamento. O direito a assistência (art. 9.º do Regulamento) também se mantém.

Esta orientação é, no essencial, mantida pela Comissão Europeia na Recomendação, de 13 de maio de 2020, sobre vouchers oferecidos aos passageiros e viajantes como alternativa ao reembolso para viagens e serviços de transporte cancelados no contexto da pandemia da Covid-19, integrada no contexto da Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 13 de maio de 2020, sobre turismo e transporte em 2020 e mais além.

A Recomendação aplica-se, não apenas às viagens aéreas, mas também ao transporte ferroviário, marítimo e rodoviário e às viagens organizadas.

A aceitação de vouchers por parte dos clientes, em alternativa ao reembolso, é fortemente incentivada por esta Recomendação. Com efeito, no ponto 21 pode ler-se que “as organizações de consumidores e de passageiros nacionais e europeias devem incentivar viajantes e passageiros a aceitar, em alternativa ao reembolso em dinheiro, vouchers que apresentem as caraterísticas e beneficiem da proteção em caso de insolvência descritas nesta recomendação”.

Recomenda a Comissão, no ponto 2, que os vouchers tenham as caraterísticas indicadas nos pontos 3 a 12 e estejam cobertos por uma proteção em caso de insolvência “que seja suficientemente efetiva e robusta”.

No que respeita às caraterísticas dos vouchers, estes devem ter um período de validade mínima de doze meses, findo o qual, em caso de não utilização, o cliente deve ser automaticamente reembolsado no prazo de catorze dias. O cliente deve ser reembolsado do valor total do voucher ou do valor remanescente no caso de o ter utilizado parcialmente. Se o voucher tiver um período de validade superior aos doze meses, o cliente deve ter a possibilidade de solicitar o reembolso no máximo após doze meses.

O voucher deve poder ser utilizado para a reserva de viagens em data posterior ao seu período de validade. Deve igualmente poder ser utilizado junto do profissional para o pagamento de qualquer viagem que este comercialize, sugerindo-se aos profissionais que estendam esta possibilidade a viagens comercializadas por outros profissionais do mesmo grupo empresarial. No caso de a viagem ter sido contratada através de agência de viagens ou outro intermediário, nomeadamente plataforma digital, os vouchers devem poder ser utilizados para reservas através dessa agência de viagens ou intermediário.

Os profissionais devem ainda assegurar que os vouchers permitem aos clientes realizar a viagem inicialmente marcada (mesmo trajeto, mesmos serviços), independentemente do preço que a viagem tenha no momento da nova reserva. Esta possibilidade pode ficar sujeita, naturalmente, à disponibilidade de lugares.

O voucher deve poder ser transferido, sem custos, para qualquer outra pessoa (exceto, no caso das viagens organizadas, os custos que possam ser exigíveis por algum dos prestadores dos serviços incluídos no pacote).

Recomenda-se, ainda, que, “para tornar os vouchers mais atraentes”, os profissionais ponderem a atribuição de vouchers com um valor superior ao valor pago, exemplificando-se com a atribuição de um valor monetário adicional ou com a inclusão de outros serviços.

Por fim, recomenda-se que os vouchers indiquem o período de validade e os direitos conferidos ao cliente e sejam emitidos num suporte duradouro, sendo remetidos ou entregues, por exemplo, em papel ou através de mensagem de correio eletrónico.

Trata-se de (meras) recomendações, mas parece-nos que, na prática, estas recomendações vão servir de referência nesta matéria ao longo dos próximos meses.

Covid-19 e saldos – Lei n.º 20-E/2020

Legislação

O Decreto-Lei n.º 20-E/2020, de 12 de maio, vem, na senda de outros diplomas aprovados nos últimos meses, estabelecer um regime excecional e temporário motivado pela crise pandémica em curso, neste caso em matéria de venda em saldos.

A problemática da comercialização de bens ou serviços com redução de preço encontra-se no limiar entre o direito do consumo e o direito da concorrência: por um lado, o objetivo é assegurar o conhecimento dos preços pelo consumidor, garantindo que existe uma diferença efetiva entre o preço praticado antes e depois da promoção; por outro lado, pretende defender-se o funcionamento regular dos mercados.

A matéria encontra-se regulada pelo Decreto-Lei n.º 70/2007.

O art. 3.º contém uma enumeração taxativa das práticas comerciais com redução de preços: saldos, promoções e liquidação. Os profissionais apenas podem publicitar uma redução de preços se esta consistir numa destas práticas (art. 3.º-3) e não podem utilizar uma expressão que não corresponda à prática utilizada (art. 3.º-4).

Note-se que, uma vez que o preço dos bens ou serviços pode ser livremente fixado, um profissional pode, em qualquer momento, fazer um desconto no valor da contraprestação. Ao contrário do que se poderia supor da letra da lei (“só são permitidas as práticas comerciais com redução de preço nas modalidades referidas no número anterior”), não está em causa a permissão da prática, mas o seu anúncio ao público em geral.

Assim, se um bem custa € 20 num estabelecimento comercial e, na semana seguinte, o comerciante o coloca à venda por € 10, sem fazer qualquer publicidade ao desconto, trata-se de uma redução do preço, que é válida e não tem de respeitar o regime do diploma em análise (com exceção das poucas normas que não dependem da existência de uma redução de preço, como os arts. 7.º-2 e 9.º). O que não é permitido é anunciar que é conferido um desconto e não cumprir as determinações da lei.

Se o conceito de promoção é bastante amplo, abrangendo qualquer redução de preços, independentemente da duração e do período do ano, o conceito de saldos é mais limitado.

Com efeito, o Decreto-Lei n.º 10/2015 alterou significativamente a teleologia subjacente aos saldos, tendo estes deixado de ter como caraterística a circunstância de se realizarem em fim de estação, em datas predefinidas pela lei (28 de dezembro e 28 de fevereiro e entre 15 de julho e 15 de setembro), podendo realizar-se em quaisquer períodos do ano, desde que não ultrapassassem, no total, quatro meses por ano. O Decreto-Lei n.º 109/2019 foi ainda mais longe, alargando ligeiramente a duração máxima da comercialização em saldos, que corresponde agora a 124 dias por ano (art. 10.º-1). Os saldos caraterizam-se atualmente apenas pelo seu objetivo: escoamento acelerado de bens ou serviços [art. 3.º-1-a)].

É precisamente com o objetivo de ajudar os profissionais a escoar produtos que o art. 3.º do Decreto-Lei n.º 20-E/2020 estabelece que “a venda em saldos que se realize durante os meses de maio e junho de 2020 não releva para efeitos de contabilização do limite máximo de venda em saldos de 124 dias por ano, previsto no n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março, na sua redação atual”.

Pode ler-se no preâmbulo do diploma que se torna “imperioso atender a que os estabelecimentos comerciais que se mantiveram encerrados ou cuja atividade foi suspensa se viram privados da possibilidade de escoar os respetivos produtos, diretamente ou através dos serviços prestados, acumulando agora existências nos respetivos inventários, que se revela essencial escoar, não apenas para permitir um esvaziamento e renovação dos produtos, como também para dinamizar a respetiva atividade económica”. Acrecenta-se ainda no preâmbulo que importa “introduzir soluções que permitam aos estabelecimentos comerciais escoar as respetivas existências, o que passa, nomeadamente, pela modificação provisória do regime das práticas comerciais com redução de preço, criando oportunidades de venda ou de prestação de serviços para os operadores económicos e novas oportunidades de compra de bens e serviços para os consumidores”.

É interessante que a lei reconheça que o anúncio de “saldos” é especialmente eficaz (provavelmente no subconsciente do consumidor) para a comercialização de bens e serviços, tendo um efeito mais significativo na decisão de contratar do consumidor do que o anúncio de “promoções”, que sempre estaria acessível aos profissionais nos termos do Decreto-Lei n.º 70/2007, sem necessidade de qualquer alteração da lei.

É bem mais duvidosa a afirmação de que a simples permissão do anúncio de comercialização de bens e serviços em saldos crie “novas oportunidades” para os consumidores. As oportunidades já estão nos bens não comercializados anteriormente, vindo a lei permitir apenas que a redução do preço seja anunciada de uma forma mais eficiente para o profissional.

O art. 4.º do Decreto-Lei n.º 20-E/2020 vem ainda estabelecer que “o operador económico que pretenda vender em saldos durante os meses de maio e junho de 2020 está dispensado de emitir, para este período, a declaração, prevista no n.º 5 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março, na sua redação atual, dirigida à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica”. Flexibiliza-se, portanto, ainda um pouco mais o anúncio de uma operação de saldos durante o período indicado.

É interessante notar que, em Espanha, a mensagem que se pretende passar é diferente no que respeita a promoções feitas em estabelecimentos comerciais físicos. Vejamos a disposição adicional segunda da Orden SND/399/2020, de 9 de mayo, para la flexibilización de determinadas restricciones de ámbito nacional, establecidas tras la declaración del estado de alarma en aplicación de la fase 1 del Plan para la transición hacia una nueva normalidad: “Os estabelecimentos não podem anunciar ou adotar práticas comerciais que possam ter como efeito a aglomeração de pessoas dentro do estabelecimento comercial ou na sua vizinhança. Esta restrição não afeta as vendas com desconto ou as vendas em oferta ou promoção realizada através do site”.

Proíbe-se, portanto, em Espanha, durante este período, o anúncio de promoções ou saldos nos estabelecimentos comerciais. Sobrepõe-se, assim, o objetivo de evitar aglomerações ao objetivo de garantir o escoamento de existências por parte dos profissionais.