Conceito de consumidor na jurisprudência do TJUE no primeiro semestre de 2020

Jurisprudência

Iniciamos hoje uma série de posts dedicados à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no primeiro semestre de 2020. Selecionamos, para o efeito, as 16 decisões que, debruçando-se sobre pedidos de reenvio prejudicial de tribunais dos Estados-Membros, tratam matérias de direito do consumo.

Começamos com o tema do conceito de consumidor, presente em duas decisões do TJUE.

No Processo C-329/19 (acórdão de 2 de abril de 2020), o tribunal é chamado a pronunciar-se sobre a qualificação do condomínio como consumidor, matéria que já tratamos aqui no blog a propósito de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Estava em causa, neste caso, a aplicação da Diretiva 93/13/CEE, relativa às cláusulas abusivas.

O TJUE conclui que o condomínio não é consumidor para efeitos da Diretiva, mas que os Estados-Membros têm liberdade no sentido de qualificar o condomínio como consumidor no direito interno.

Mantém-se aqui a orientação no sentido de que os Estados-Membros podem alargar o âmbito de aplicação subjetivo das diretivas de proteção do consumidor, mesmo que estas sejam de harmonização máxima, podendo os direitos nacionais enquadrar quaisquer pessoas como consumidores.

No Processo C‑500/18 (acórdão de 2 de abril de 2020), está em causa o conceito de consumidor para efeitos de aplicação do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, relativo à competência judiciária.

O tribunal conclui que “uma pessoa singular que, ao abrigo de um contrato como o contrato financeiro por diferenças celebrado com uma sociedade financeira, efetua operações financeiras por intermédio dessa sociedade, pode ser qualificada de «consumidor», na aceção dessa disposição, se a celebração desse contrato não se inserir no âmbito da atividade profissional dessa pessoa, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar”.

Defende ainda o tribunal que não são decisivos para a qualificação “o facto de essa pessoa ter efetuado um elevado número de transações num período relativamente curto ou ter investido elevadas quantias nessas transações”. Isto significa que o número de transações e/ou o seu montante não constituem indícios suficientes para concluir se o investidor é consumidor.

Em sentido contrário, também não releva por si só “o facto de essa pessoa ser um «cliente não profissional»”, nos termos da Diretiva 2004/39/CE, relativa aos mercados de instrumentos financeiros. Assim, a qualificação como “cliente não profissional” não implica necessariamente a qualificação da pessoa em causa como “consumidor”.

Iremos analisar mais catorze decisões do TJUE em futuros posts, sendo o próximo desta série dedicado a cláusulas contratuais gerais.

Automóvel Desconforme e a Hierarquia de Direitos – Comentário ao Acórdão do TRG de 20-02-2020

Jurisprudência

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Sumário

I – Os direitos à reparação ou à substituição previstos no artigo 914º do Código Civil – e também no artigo 12, n.º 1 da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, que veio estabelecer «o regime legal aplicável à defesa dos consumidores» – não constituem pura alternativa ou opção oferecida ao comprador, antes se encontrando subordinados a uma sequência lógica.

II – Assim, o consumidor tem o poder-dever de seguir primeiramente e preferencialmente a via da reposição da conformidade devida, pela reparação ou substituição da coisa, sempre que possível e proporcionada, em nome da conservação do negócio jurídico, tão importante numa economia de contratação em cadeia, e só subsidiariamente o caminho da redução do preço ou resolução do contrato.

III – Isto porque, embora a lei (art. 5º do DL nº 67/2003) não hierarquize os direitos conferidos ao consumidor, numa interpretação conforme à Diretiva (Diretiva nº 1999/44/CE, de 25/05), há prevalência da “reparação/substituição” sobre o par “redução/resolução”, pois a concorrência eletiva dos diversos direitos do consumidor não é absoluta, por não prescindir de uma “aticização da escolha” através do princípio da boa fé, sendo que o art. 4º nº 5 do diploma citado recorre à cláusula do abuso de direito.

 

Enquadramento

– O Autor, consumidor que pretendia resolver os seus problemas de deslocação, adquiriu um automóvel em segunda mão (da marca BMW), por contrato de compra e venda verbal, pelo valor de € 15 500. O automóvel estava publicitado no site do stand como tendo 96 000 kms e estando em ótimas condições de funcionamento.

– Logo no início da utilização do automóvel surgiram problemas técnicos, tendo o autor recorrido a uma oficina. Na oficina, verificou-se que o automóvel tinha diversos problemas, faltando peças e estando outras estavam bastante danificadas. O automóvel necessitava também de atualizações de software.

– O Autor comunicou as desconformidades ao profissional, o stand, por email, tendo também tentado o contacto telefónico. Foi ignorado sucessivamente, tendo-lhe sido recusada a reparação. A resolução extrajudicial do litígio também foi recusada.

– No mês seguinte, o Autor colocou o automóvel numa oficina da marca BMW para realizar um check-up, tendo-se verificado vários outros problemas técnicos. Concluiu-se também que a quilometragem estava adulterada, com grandes diferenças no valor.

– Face à recusa de reparação e comunicação pelos Réus, o Autor colocou o automóvel a ser reparado por sua conta para poder utilizá-lo.

– O tribunal de primeira instância aceitou o pedido do réu de redução do preço do automóvel com base na desconformidade, tendo esta decisão sido confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães.

 

Comentário

Este acórdão recente do Tribunal da Relação de Guimarães vem recuperar uma orientação muito defendida pela doutrina e pela jurisprudência portuguesas[1] nos primeiros anos da transposição da Directiva 1999/44/CE pelo Decreto-Lei n.º 67/2003: a de que existe uma hierarquia nos direitos dos consumidores elencados no art. 4.º-1, com prioridade para os direitos à reparação e à substituição do bem desconforme, só subsidiariamente podendo ser exercidos os direitos à redução adequada (ou proporcional) do preço ou à resolução do contrato.

O TRG até reconhece que atualmente a orientação predominante na doutrina e jurisprudência[2] é de que não existe hierarquia entre estes direitos[3], sendo a sua escolha livre pelos consumidores, com a exceção da impossibilidade ou do abuso do direito (art. 4.º-5).

A argumentação utilizada no sentido de defender a hierarquia assenta nos seguintes pontos:

  • “O consumidor tem o poder-dever de seguir primeiramente e preferencialmente a via da reposição da conformidade devida, pela reparação ou substituição da coisa, sempre que possível e proporcionada, em nome da conservação do negócio jurídico (…)”;
  • “(…) Que embora a lei (art. 5º do DL n.º 67/2003) não hierarquize os direitos conferidos ao consumidor, numa interpretação conforme a Directiva (Directiva 1999/44/CE, de 25/05), há prevalência da “reparação/substituição” sobre o par “redução/resolução”, pois a concorrência electiva dos diversos direitos do consumidor não é absoluta, por não prescindir de uma “eticização da escolha” através do princípio da boa fé, sendo que o art. 4º nº 5 do diploma citado recorre à cláusula do abuso de direito”.

O Tribunal considerou assim que, ainda que o legislador tenha conscientemente procurado afastar-se do texto da Diretiva através de uma previsão normativa mais protetora do consumidor, aberta e flexível, o consumidor está vinculado pelo princípio da boa fé a procurar a manutenção da relação contratual pela reposição da conformidade pelo profissional.Alude-se ainda a uma interpretação conforme à Diretiva. Segundo o Tribunal, exigir a redução do preço primeiramente, sem dar oportunidade ao profissional de ser ele a repor a conformidade, constituíria assim abuso de direito. A mesma lógica se aplica à resolução do contrato, que é ainda mais grave, por comprometer a própria relação contratual.

Assim, embora tente evitar concluir que o diploma consagra uma hierarquia formal, o Tribunal reconhece a existência de uma hierarquia material/funcional ao refugiar-se na “sequência lógica”.

Infelizmente, este tipo de interpretações da lei irá sempre causar muitas dúvidas e uma incerteza jurídica no consumidor e no profissional, que, olhando para a letra da lei, dificilmente irão descortinar a existência deste mecanismo, mesmo que esta seja a solução que melhor equilibra os interesses de ambos.

No caso sub judice, independentemente do exposto, o Tribunal sempre teria chegado à decisão final de confirmar o recurso, dada a recusa de reparação pelo stand, mas a ratio decidendi deste acórdão não deixa de ser um sinal claro da recuperação desta orientação, que fora abandonada até por alguns dos seus primeiros defensores.

Antecipar-se-á aqui já o futuro, tendo em conta a Diretiva (UE) 2019/771, no seu artigo 13º. Voltaremos ao tema muito em breve. Fiquem atentos.

[1] Como exemplo: Acórdão do STJ de 15/03/2005

[2] Como exemplo: Acórdão do STJ de 5/05/2015

[3] “Com a entrada em vigor do DL 67/2003, a doutrina tem vindo a aceitar que a vontade do legislador é efectivamente afastar a hierarquia no exercício dos direitos decorrentes do cumprimento defeituoso na compra e venda de consumo; o que já é reconhecido mesmo entre autores que não concordam com tal opção legislativa.

Também a jurisprudência, após a entrada em vigor do DL 67/2003, vem adoptando a opinião de que foi afastada a hierarquia no exercício dos direitos – sendo já a mais numerosa” – Acórdão TRG de 20/2/2020.

Placa de carregamento avariada e módulo de ecrã partido – Comentário à Sentença do Tribunal Arbitral do CICAP, de 8-5-2018, Juiz-árbitro Rui Saavedra

Jurisprudência

Resumo do caso

O Requerente comprou à Requerida um telemóvel pelo preço de € 299, o qual, menos de dois anos depois da entrega deixou, subitamente, de ligar e de permitir o carregamento da bateria.

Após entrega do aparelho à requerida para reparação, a análise técnica por esta efetuada concluiu pela existência de uma anomalia na placa de carregamento, o que havia originado a falta de funcionamento denunciada pelo Requerente.

No entanto, para proceder à reparação daquela anomalia, a Requerida exigiu ao Requerente o pagamento da quantia de € 143,43, relativa à reparação de outro componente (módulo de ecrã), que apresentava fissuras.

O Requerente pediu a condenação da Requerida a proceder à reparação do telemóvel ou, a título subsidiário, a entregar-lhe uma placa de carregamento em estado de nova.

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Comentário

A questão mais interessante que se levanta na análise deste caso é a possibilidade de o profissional condicionar o exercício do direito à reparação de um componente de um bem de consumo ao pagamento de determinada quantia associada à reparação de outro componente, cuja avaria não esteja abrangida pela garantia.

No caso, interessava aferir se a reparação da placa de carregamento, que subitamente avariara, poderia ser condicionada pelo profissional ao pagamento da reparação do outro componente (o módulo de ecrã) que apresentava fissuras derivadas de quedas reconhecidas pelo proprietário.

Por um lado, a avaria relativa à bateria do equipamento deve ser considerada uma desconformidade para os efeitos do art. 2.º-1, al. c) do Decreto-lei n.º 67/2003, de 8 de abril (1), presumindo-se que existia já no momento da entrega do bem, nos termos do art. 3.º-2. Por outro lado,  as fissuras no módulo do ecrã não existiam no momento da entrega do bem e derivaram, como o requerente reconhece, de quedas acidentais, não conferindo qualquer direito ao requerente.

Para apreciar tal questão é importante ter presente que as fissuras no módulo de ecrã não causaram a avaria da bateria (2), nem impediam a reparação do equipamento (3). Os problemas poderiam surgir no momento de recolocação das peças no equipamento, na medida em que, se o módulo de ecrã estivesse danificado por dentro (o que não era possível verificar sem abrir o equipamento), poderia não se conseguir voltar a fixar e aparafusar todas as peças.

Tendo em conta estes factos, parece-nos que a decisão do tribunal arbitral de condenar a requerida a proceder à reparação do telemóvel é correta e adequada.

Para a decisão ser, pelo contrário, de improcedência do pedido, teria de ficar provado, em alternativa, que:

  • A avaria da placa de carregamento não existia no momento da entrega do bem, mas fora provocada pela utilização incorreta/indevida do equipamento pelo requerente, nomeadamente pelas fissuras no módulo de ecrã;
  • Que a reparação da placa de carregamento era impossível devido às fissuras no módulo de ecrã.

No primeiro caso, provar-se-ia a inexistência de uma desconformidade no momento da entrega do bem, nos termos do art. 3.º-1, não se reconhecendo ao requerente os direitos previstos no art. 4.º, nomeadamente o da reparação. Ora, a verificar-se tal enquadramento, muito dificilmente (para não dizer nunca) o profissional condicionaria a reparação de um componente ao pagamento dos custos de reparação do outro, recusando justificada e simplesmente a responsabilidade pela reparação de qualquer um deles.

No segundo caso, provar-se-ia a impossibilidade do exercício do direito à reparação, nos termos do art. 4.º-5. Ora, é em casos como este que talvez se torne mais questionável a admissibilidade de um condicionamento como o que está em analise. Assim, se uma desconformidade se manifesta dentro do prazo de garantia e não é ilidida a presunção de que ela existia no momento da entrega do bem, ou inclusive o profissional reconhece a sua responsabilidade e se disponibiliza para proceder à reparação, mas se conclui que é tecnicamente impossível fazê-lo devido a outros defeitos no equipamento não cobertos pela garantia (nomeadamente porque provocados por facto imputável ao consumidor), parece abstratamente admissível o profissional exigir ao consumidor o pagamento dos custos de reparação do componente do equipamento cujo defeito impossibilita a reparação do componente desconforme. Em alternativa, poderá ser equacionada a viabilidade de o consumidor optar pelo exercício dos outros direitos previstos pelo art. 4.º, a saber, a substituição do equipamento, a redução do preço e a resolução do contrato, com destaque para os primeiros dois.

Quanto à substituição do equipamento, a adequação depende do valor relativo dos componentes avariados. No caso de o componente que impossibilita a reparação e cuja avaria não é abrangida pela garantia ter um elevado custo, e, pelo contrário, o componente desconforme cuja avaria é abrangida pela garantia ter um valor reduzido, o exercício deste direito manifestar-se-á necessariamente abusivo, nos termos do art. 334.º do Código Civil, aplicável por via do art. 4.º-5.

Ainda que a substituição do equipamento não se mostre adequada à composição justa do litígio, sempre poderá ser exercido o direito de redução do preço, ainda que essa redução possa ser de pequeno montante quando o valor do componente que manifesta a desconformidade abrangida pela garantia assim o determine.

Notas

(1) Os artigos citados sem referência a qualquer diploma legal pertencem a este decreto-lei, disponível aqui.

(2) Resulta do facto indiciário de as fissuras haverem ocorrido 6 meses antes da avaria da bateria e da não ilisão da presunção de existência da desconformidade no momento da entrega do bem, quando esta se manifeste no prazo de dois anos (art. 3.º-2 do DL n.º 67/2003).

(3) Ficou provado que, abstratamente, a substituição da placa da bateria pode ser executada sem necessidade de substituir o módulo de ecrã.

“Box de televisão, Serviços Públicos Essenciais e Arbitragem” – Comentário ao Ac. TRC, 24-09-2019, rel. Fernando Monteiro

Jurisprudência

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Sumário

“1. A Lei dos Serviços Públicos Essenciais ( Lei nº 23/96 de 26/7 ) é aplicável à relação que se estabelece entre a concessionária do serviço de comunicações electrónicas e o utilizador de tais serviços.

2. A box é um elemento imprescindível para o serviço de televisão prestado pela concessionária, fazendo parte da rede de transmissão do seu sinal.

3. O litígio entre a concessionária e o utente, relativo a dano provocado pela box na televisão, é um litígio de consumo no âmbito de um serviço público essencial, podendo ser sujeito a arbitragem necessária, ao abrigo do disposto no artigo 15º da Lei nº 23/96 de 26/7.”

 

Comentário

Resumidamente, o caso em análise respeita a um televisor que avariou (deixou de dar imagem e som) por haver sofrido uma descarga elétrica a partir da box. Esta box foi fornecida e instalada no âmbito de um contrato de telecomunicações entre o requerente (proprietário da televisão) e a requerida (empresa de telecomunicações).

O litígio foi inicialmente submetido e solucionado pelo tribunal arbitral constituído no âmbito do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Distrito de Coimbra, tendo a requerida proposto ação de anulação da decisão arbitral com base na arguição de incompetência do tribunal.

A questão a decidir pelo TRC era saber se o litígio em causa se inseria ou não na prestação de um serviço público essencial. No caso de a resposta ser afirmativa, o tribunal arbitral seria competente para decidir, sem necessidade de existir uma convenção arbitral, por via do artigo 15.º da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (Lei n.º 23/96, de 26 de julho).

Nos termos desta disposição, os litígios de consumo que surjam no âmbito de contratos relativos a serviços públicos essenciais são obrigatoriamente solucionados por tribunal arbitral, se essa for a opção expressa do utente (arbitragem necessária).

Adiante-se que o TRC considerou, sem margem para dúvidas, ser aplicável o mencionado regime, confirmando a decisão que o tribunal arbitral havia emitido quanto à sua própria competência.

Ora, o contrato celebrado entre o requerente e a requerida insere-se no serviço público de comunicações eletrónicas (art. 1.º-2, al. d) da LSPE), como ambas as partes o reconhecem.

No âmbito deste tipo de contratos, é prestado um serviço “que consiste total ou principalmente no envio de sinais através de redes de comunicações eletrónicas, incluindo os serviços de telecomunicações (serviços de telefone fixo, telefone móvel, internet fixa, internet móvel e televisão por subscrição) e os serviços de transmissão em redes utilizadas para a radiodifusão”, contra remuneração paga pelo utente.

A questão é saber se a avaria da TV provocada pela box instalada pela empresa concessionária pode ser relacionada com aquele serviço, o que é recusado por esta.

Apelando ao espírito do sistema legal de especial proteção do utente-consumidor e levando em consideração a imprescindibilidade da box para a transmissão do sinal para o televisor, o TRC concluiu que o litígio relativo à avaria da televisão é um litígio de consumo no âmbito de um serviço público essencial, sujeito a arbitragem necessária, ao abrigo do disposto no artigo 15º da lei 23/96.

Em consequência, considerou o tribunal arbitral competente e a ação de anulação da decisão arbitral improcedente.

 

“Segunda chave do carro” – Comentário ao Ac. TRP, 20-02-2020, rel. Aristides Rodrigues de Almeida

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Resumo do caso

A situação fática colocada perante o tribunal foi a da celebração de um contrato de compra e venda de um automóvel, coligado com um contrato de mútuo celebrado entre o comprador do carro e uma instituição bancária. No momento da celebração do contrato, o vendedor do carro comprometeu-se a entregar uma segunda chave ao comprador, uma vez que não dispunha dela naquele momento. O comprador começou a utilizar normalmente o carro, até que este foi furtado. A segunda chave nunca chegou a ser entregue, pelo que o comprador exerceu o direito de resolução extrajudicial do contrato de compra e venda com base no incumprimento dessa obrigação, resolvendo ainda o contrato de mútuo com base na cessação daquele.

Questões interessantes do ponto de vista do Direito do Consumo

  1. Ónus de alegação e prova dos factos que permitem a qualificação do comprador como consumidor

Segundo as regras gerais, a alegação e prova dos factos que consubstanciam a qualidade de consumidor do autor cabem a este, na medida em que são factos que o beneficiam (art. 342.º-1 Código Civil). Ou seja, é ao autor que incumbe o ónus de alegar e provar, nomeadamente, a utilização que confere ao bem adquirido (art. 1.º-B-a) do DL n.º 67/2003), por forma a, dando-se como provado que esse uso é privado, gozar do estatuto de consumidor.

No entanto, convém esclarecer que o consumidor não tem o ónus de invocar esse estatuto/qualidade, ou seja, não tem de invocar as normas de direito (do consumo) aplicáveis ao caso, uma vez que é ao tribunal que incumbe a aplicação do direito, independentemente da configuração jurídica que as partes dão ao conflito (art. 5.º-3 do Código de Processo Civil). Este ponto foi salientado pelo TJUE, no Acórdão Faber (1), onde se pode ler que “o tribunal está obrigado, sempre que disponha dos elementos de direito e de facto necessários para tal ou deles possa dispor mediante mero pedido de esclarecimento, a verificar se o comprador pode ser qualificado de consumidor, ainda que este não tenha expressamente invocado essa qualidade”.

O próprio TRP reconheceu a mencionada jurisprudência europeia, não tendo, no entanto, considerado que dispunha dos elementos de facto suficientes para aferir essa qualidade do comprador do carro. Argumenta o tribunal, na fundamentação de direito, que o autor não se referiu ao uso destinado ao carro e que a natureza do bem (uma carrinha) não indicia por si só uma utilização privada do mesmo.

Parece-nos que o dever de averiguação do tribunal nacional reconhecido pelo TJUE não foi incumprido, na medida em que o ónus de alegação dos factos que sustentam a aplicação do direito do consumo ao litígio permanece na esfera do autor (art. 5.º-1 do CPC), ainda que de forma “atenuada”. Se o tribunal não considerou indiciada nas peças processuais  essa qualidade nem tal resultou da discussão em julgamento, não nos parece ser exigível ao tribunal o cumprimento de tal dever de pedido de esclarecimento, à luz dos princípios gerais do dispositivo e da autorresponsabilidade das partes.

2. Conceito de desconformidade do bem para efeitos de aplicação do DL n.º 67/2003

Após excluir a existência de um defeito no bem, nos termos do artigo 913.º CC, e bem assim afastar a aplicação do DL n.º 67/2003 pelas razões que vimos no ponto anterior, o TRP analisou, ainda assim, se o bem entregue pelo vendedor ao comprador em cumprimento do contrato era desconforme com este, nos termos da legislação de proteção do consumidor.

Recapitulando a factualidade em análise, sabemos que apenas no momento da entrega do veículo objeto do contrato é que o comprador se apercebeu de que não lhe seriam entregues duas chaves. Nesse momento foi convencionada essa entrega em momento posterior, constituindo-se tal obrigação.

Essa obrigação nunca chegou a ser cumprida, o que implica a conclusão de que o bem entregue não corresponde completa e perfeitamente ao que foi convencionado pelas partes. É precisamente este um dos pontos em que o art. 2.º-1 do DL n.º 67/2003 se revela mais protetor da posição jurídica do comprador do que o regime geral do Código Civil. O conceito de “desconformidade” daquele diploma é mais abrangente do que o “defeito” previsto no regime do contrato de compra e venda civil.

Não aderimos também à argumentação do TRP quando invoca o conhecimento do facto no momento de entrega do bem para afastar a existência de uma desconformidade relevante (nos termos do art. 3.º-2 do DL n.º 67/2003). É que, como vimos, foi precisamente no momento de entrega do carro que o conteúdo do contrato se alterou/clarificou e em que se constituiu uma obrigação de entrega (da segunda chave) complementar.

Concluímos, portanto, que se o TRP houvesse entendido estar perante um contrato de consumo, deveria considerar existir uma desconformidade entre o bem entregue e o convencionado entre as partes, nomeadamente porque um dos elementos do objeto do contrato, a segunda chave, não havia sido entregue.

O que ficou dito não implica que se defenda a legitimidade do exercício de resolução, como melhor veremos no ponto 3).

3. Direito de resolução do contrato em casos de “incumprimento insignificante”

Como vimos, o comprador do carro pretendia ver reconhecido judicialmente o direito de resolução do contrato, alegando o incumprimento da obrigação de entrega da segunda chave do carro como fundamento. Considerando tal pedido improcedente, o tribunal entendeu que o incumprimento de tal obrigação acessória era insignificante no contexto global do contrato, não admitindo um remédio tão drástico (arts.  802.º-2 e 762.º-2  do CC). Salientou também que o vendedor não se encontrava ainda em incumprimento definitivo por não ter sido convencionado prazo para o prazo para a entrega da chave nem ter sido realizada a interpelação admonitória (arts. 805.º- 1 e 2-a) e 808.º CC), nem tão pouco se poderia alegar a perda objetiva de interesse na prestação devido ao furto do carro ocorrido na pendência da situação de mora do vendedor, na medida em que o artigo 808.º CC exige que essa perda de interesse seja resultado da própria mora e não de um evento exógeno, como é o caso (furto do carro).

Aderindo no essencial à fundamentação do tribunal, interessa-nos perceber se a solução seria idêntica caso fosse aplicável o DL n.º 67/2003 (que, como vimos no ponto 1), não era).

Ora, a resposta à pergunta parece-nos ser positiva. Ainda que entendamos, como explanado no ponto 2), existir uma desconformidade entre o bem entregue e o convencionado, não podemos deixar de concordar que, no contexto global do contrato, tal desconformidade seria mínima.

Ora, ainda que não exista qualquer hierarquia entre os direitos conferidos ao consumidor pelo art. 4.º do DL n.º 67/2003, seria manifestamente exagerado recorrer à resolução do contrato para reagir a tão mínimo incumprimento, configurando-se tal pretensão como abuso de direito (nos termos dos arts. 4.º-5 do DL 67/2003 e 334.º do CC).  Assim, parece-nos que seria mais adequado ao caso a redução do preço pago pelo comprador correspondente ao preço de aquisição de uma segunda chave.

Notas

(1) Acórdão TJUE de 04-06-2015, no processo C-497/13

“Condomínio-consumidor” – Comentário ao Ac. STJ 10-12-2019, rel. Nuno Pinto Oliveira

Jurisprudência

Ac. STJ 10-12-2019, rel. Nuno Pinto Oliveira

Sumário

“I. O condomínio deve ser considerado como um consumidor desde que uma das fracções seja destinada a uso privado.

II. A relação entre empreiteiro e comprador deve considerar-se como uma relação de consumo desde que o empreiteiro conhecesse, ou devesse conhecer, o fim do dono da obra de dividir o edifício em fracções autónomas e de vender cada uma das fracções autónomas a consumidores.

III. Em relação aos defeitos das partes comuns do edifício, o prazo de garantia do art. 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril deverá contar-se a partir da constituição da administração do condomínio.

IV. Em relação aos defeitos das partes próprias, das fracções autónomas, o prazo deverá contar-se a partir da entrega da coisa ao primeiro adquirente — ao primeiro comprador / consumidor — de cada uma das fracções.”

Anotação

Inauguro a minha participação neste blog abordando um tema que me é já familiar, a questão do “condomínio-consumidor”, tema da minha tese de mestrado (1). Faço-o a propósito do comentário a um acórdão do STJ que aborda a mesma temática.

Centrando-nos no aresto, são duas as questões jurídicas alvo de análise nesta anotação:

i) Quando se inicia a contagem dos prazos (dies a quo) de caducidade do exercício dos direitos dos condóminos quanto aos defeitos detetados nas partes comuns do edifício;

ii) Se, e em que condições, deve o condomínio considerar-se consumidor para efeitos do DL n.º 67/2003 (venda de bens de consumo e garantias).

Quanto à primeira das questões, a decisão segue a doutrina maioritária do Supremo, entendendo que a contagem dos prazos de reação face aos defeitos detetados nas partes comuns do edifício apenas deve iniciar-se no momento da constituição da administração do condomínio, ou seja, quando a assembleia de condóminos se reúne pela primeira vez e elege o administrador, e não quando são vendidas a primeira ou a última fração autónoma do edifício, nem tão-pouco quando no momento em que a obra é entregue pelo empreiteiro/construtor do prédio ao dono da obra/vendedor das frações.

Quanto à segunda problemática, como consta do sumário, o Supremo defendeu que para o condomínio beneficiar da proteção acrescida conferida pelas normas de direito do consumo basta que um dos condóminos haja adquirido a sua fração para a destinar a um uso privado (neste caso, habitação própria). É esta também a tese que defendemos na nossa tese de mestrado, no desenvolvimento do que é apontado por Jorge Morais Carvalho no seu Manual (2).

Uma última nota para destacar o raciocínio desenvolvido no acórdão que permite ao condomínio (autor) a dedução da sua pretensão contra o vendedor da fração e, em simultâneo, contra o construtor do prédio/empreiteiro. Dado que o conceito de consumidor é um conceito relacional, ou seja, depende da existência de uma relação entre um consumidor e um profissional, enquanto a qualificação do contrato entre vendedor e comprador da fração como contrato de consumo é pacífica, já não o será a relação entre este e o construtor do prédio. Em rigor, nem sequer existe uma relação contratual entre estes, mas a jurisprudência do STJ (3) vem entendendo que se deve ficcionar uma relação de consumo quando o empreiteiro conheça ou deva conhecer o fim do dono da obra de dividir o edifício em frações autónomas e vendê-las a consumidores. Este entendimento funda-se no espírito de proteção especial do consumidor e na consideração da elevada experiência técnica e negocial dos empreiteiros.

Notas

(1) O Condomínio e as Relações de Consumo: Um Teste à Elasticidade do Conceito de Consumidor, Julho 2019, publicada no Anuário do NOVA Consumer Lab, Ano I, 2019, disponível no site do NOVA Consumer Lab 

Consultar Anuário

(2) Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 2020

(3) Além do acórdão em análise, veja-se o Ac. STJ de 17-10-2019, rel. Oliveira Abreu

Consultar acórdão