Novas regras para a sustentabilidade: sobre agora ser proibido dar com uma mão e tirar com a outra (entre outras boas notícias)

Doutrina, Legislação

No passado dia 20 de fevereiro, foi adotada a Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera as Diretivas 2005/29/CE e 2011/83/UE no que respeita à capacitação dos consumidores para a transição ecológica, através de uma melhor proteção contra as práticas desleais e de melhor informação. Já no ano passado, aqui, tínhamos mencionado a iniciativa, apesar de nos termos concentrado na Green Claims Directive, que se encontra ainda em discussão e completará de forma mais eficiente o diploma sobre o qual nos debruçamos hoje.

A Proposta que hoje analisamos tem o intuito de capacitar os consumidores para a tomada de decisões de transação mais informadas, de promover o consumo sustentável, de eliminar práticas que prejudiquem a economia sustentável e de assegurar uma aplicação mais benéfica e mais coerente com o quadro jurídico da UE sobre a defesa do consumidor.

Em termos sintetizados, visa reforçar as regras de Direito do Consumo, nomeadamente (mas não só) no que toca à limitação da proliferação de práticas comerciais desleais que induzem os consumidores em erro quanto ao caráter sustentável do bem. Um hot topic desde que os consumidores aprenderam a pronunciar a palavra sustentabilidade, apesar de ainda não serem fluentes neste idioma.

No seguimento da discussão da Proposta, o Parlamento Europeu sugeriu adensar este mote com regras jurídicas mais específicas, de forma a prevenir práticas comerciais desleais em matéria de sustentabilidade, designadamente as seguintes:

– Obsolescência programada dos bens;

– Práticas de greenwashing;

– (Algumas) práticas de bluewashing; e

– Rotulagem obscura e/ou inidónea.

Dali resultaram as seguintes sugestões:

1. Alterar a Diretiva 2011/83/UE relativa aos direitos dos consumidores, nomeadamente quanto à obrigação do profissional de disponibilizar ao consumidor informações de forma clara e compreensível, tais como:

– Indicação da existência da “garantia legal” de conformidade dos bens e dos seus principais elementos, incluindo a sua duração mínima de dois anos, de forma bem visível, utilizando o aviso harmonizado;

– Em caso de garantia comercial de durabilidade prestada pelo produtor sem custos adicionais, abrangendo a totalidade do bem e com uma duração superior a dois anos, indicação de que o bem beneficia dessa garantia, a respetiva duração e indicação da existência da “garantia legal” de conformidade, de forma bem visível, utilizando o rótulo harmonizado;

– Nos contratos à distância, fornecimento de informações sobre as condições de pagamento e de entrega, incluindo opções de entrega respeitadoras do ambiente (por exemplo, bicicleta);

– Criação de um aviso harmonizado e de um rótulo harmonizado, de fácil reconhecimento e compreensão para os consumidores e fáceis de utilizar e reproduzir pelos profissionais.

2. Alterar a Diretiva 2005/29/CE relativa às práticas comerciais desleais, de forma a serem adicionados os aspetos ambientais, sociais e circulares à lista das principais características de um produto relativamente às quais:

2.1. As práticas do comerciante possam ser consideradas enganosas:

– Alegações ambientais referentes ao desempenho ambiental futuro sem compromissos claros, objetivos, publicamente disponíveis e verificáveis;

– Publicidade alusiva a benefícios para os consumidores que são irrelevantes e/ou que não resultam de qualquer característica própria do bem ou da empresa (por exemplo: “brincos sem glúten”, “telemóvel vegan” ou “shampoo sem lactose”);

– Utilização de alegações ambientais com afirmações genéricas sem fundamento (tais como, “amigo do ambiente”, “natural”, “biodegradável” ou “eco”) ou que, sob o manto da informação ambiental, implicam a retirada de conclusões relacionadas com outras características que não as ambientais (tais como “responsável”, “sustentável”, “consciente”).

E, de forma mais fascinante:

2.2. Aditamento de novas práticas à lista negra de práticas comerciais desleais, como, por exemplo:

– Exibição de rótulos de sustentabilidade não contemplados nos sistemas de certificação oficiais ou marcas de certificação criadas por autoridades públicas;

– Alegar, com base na compensação de emissões de gases com efeito de estufa, que um produto tem um impacto neutro, reduzido ou positivo no ambiente em termos de emissões de gases com efeito de estufa;

– Alegar falsamente que, em condições normais de utilização, um bem tem uma determinada durabilidade em termos de tempo ou intensidade de utilização;

– Fazer uma alegação ambiental sobre a totalidade do produto ou sobre a totalidade da atividade do profissional, quando esta diga respeito apenas a um determinado aspeto do produto ou a uma atividade específica da empresa/do profissional.

Interessa-nos hoje em particular este último ponto. Apesar de as novas regras incluírem, em alguns segmentos, a sustentabilidade social, no que toca a este último ponto parece fixar-se apenas nas alegações ambientais. Para melhor enquadramento, encontramos referência à parte social da sustentabilidade nos seguintes pontos:

– Inclusão de características (ambientais e) sociais não correspondentes à verdade na lista das ações enganosas (no art. 6.º-1 da Diretiva 2005/29/CE);

– Inclusão de características (ambientais e) sociais na prestação de informação durante a comparação de produtos (no art. 7.º da Diretiva 2005/29/CE);

– Inclusão de características (ambientais e) sociais nas regras relativas à rotulagem de sustentabilidade (no art. 2.º da Diretiva 2005/29/CE).

Como se percebe, existe ainda alguma resistência (ou timidez) em legislar para a sustentabilidade social, estando a atividade legislativa em torno da sustentabilidade ambiental muito mais desempoeirada. É compreensível, uma vez que a discussão sobre a ligação entre os problemas sociais e o consumo ainda está em ascensão, mas sobretudo porque não é evidente que tratar ambas as questões em conjunto seja o caminho mais profícuo.

Em todo o caso, há várias hipóteses em que os dois temas dão origem aos mesmos problemas e que encontrarão agora resposta neste diploma. Vejam-se alguns exemplos:

1. Caracterização de um pneu como “superverde”, quando não corresponde à verdade;

2. Alegação de que o consumidor, ao comprar um bem, “melhora a vida dos agricultores”, quando não corresponde à verdade;

3. Alegação de que o bem é “muito mais sustentável/ecológico/responsável/reciclável/durável/biodegradável do que as outras marcas no mercado” (se não for divulgado o método de comparação, os produtos objeto da comparação e os fornecedores desses produtos, bem como as medidas em vigor para manter essas informações atualizadas);

4. Exibição de um rótulo com as seguintes mensagens ou símbolos: “Trade Faire”; “UN”; “Green Piece”; “ESG”.

Por outro lado, não estando a sustentabilidade social incluída em muitos outros preceitos deste diploma, casos há que certas alegações sociais ficarão de fora do escopo destas novas regras, apesar de a lógica de washing ficar protegida nas alegações ambientais. Veja-se:

1. Empresa A: “Compensamos o ambiente”, “impacto climático reduzido” ou “a nossa política tem crédito de carbono”;

2. Empresa B: “Por cada t-shirt vendida, doamos 1€ à UNICEF” (t-shirt produzida com recurso a trabalho infantil).

Neste exemplo, a empresa A pode ser responsabilizada ao abrigo do novo acrescento à “lista negra”, uma vez que faz alegações com base na compensação de emissões. Já a empresa B não pode ser responsabilizada a esta luz, apesar de fazer alegações com base em compensações sociais.

Veja-se ainda:

1. Empresa A: “Feito a partir de material reciclado” (quando só a embalagem o é);

2. Empresa B: “Sapatos produzidos em condições justas” (quando só as solas o são).

Aqui, a empresa A pode ser responsabilizada ao abrigo da nova “lista negra”, uma vez que faz uma alegação ambiental que sugere que todo o bem é composto por material reciclado quando só uma parte dele o é. Já a empresa B não pode ser responsabilizada à luz desta nova inserção, uma vez que o preceito apenas diz respeito a alegações ambientais e não sociais, apesar de se tratar da mesma lógica de distorção da interpretação por parte do consumidor.

1. Empresa A: “Temos certificação [sistema de certificação ecológico]” (quando, por exemplo, apenas um dos bens vendidos pela empresa é certificado);

2. Empresa B: “Temos certificação [sistema de certificação social]” (quando, por exemplo, apenas um dos bens vendidos pela empresa é certificado);

Neste exemplo, também a empresa A poderá vir a ser responsabilizada ao abrigo da nova “lista negra”, já não a empresa B. No primeiro exemplo, tratando-se de uma alegação ambiental, a empresa A procura beneficiar da certificação que obteve para apenas um dos bens da sua gama, parecendo tentar sugerir que essa certificação diz respeito a toda a sua atividade. Já a empresa B, fazendo uma alegação social, não está abrangida pela norma.

Por fim, veja-se este caso:

Numa gama de 10 embalagens de café do mesmo produtor/vendedor, apenas um dos segmentos apresenta certificação Fairtrade.

Este caso não se encontra contemplado nos exemplos anteriormente analisados e não é igualmente subsumível às novas proibições, trazendo um outro problema aplicável quer às alegações ambientais quer sociais. Agora, a mesma empresa apresenta uma gama de produtos certificados e outros não certificados (devidamente identificados), o que levanta dúvidas éticas acerca de uma prática empresarial que tanto aceita transacionar bens resultantes de boas práticas sustentáveis ambientais/sociais como bens que daí não resultam. Será este o próximo nível das práticas de green e bluewashing?

As questões hoje analisadas ainda farão correr muita tinta. Para já, aguardemos as assinaturas da Presidente do Parlamento Europeu de o Presidente do Conselho e a respetiva publicação do diploma.

Uma nova era de responsabilidade civil extracontratual por danos causados por inteligência artificial

Legislação

À medida que a Inteligência Artificial (“IA”) continua a remodelar o nosso mundo, os criadores e utilizadores de sistemas IA enfrentam um cenário de responsabilidade civil em evolução. Neste post, vamos analisar a proposta de Diretiva de Responsabilidade por danos causados por IA (a AI Liability Directive – “AILD”) e explorar os seus elementos-chave relativamente ao regime de responsabilidade civil extracontratual que consagra.

Compreender a proposta AILD

Tal como explorámos numa publicação anterior, na UE, a responsabilidade extracontratual por danos causados pela IA funcionará num sistema de duas vias, sendo uma delas amplamente harmonizada, graças à proposta de Diretiva relativa à responsabilidade pelos produtos defeituosos (a Product Liability Directive – “PLD”). A outra via envolve um regime de responsabilidade em grande parte não harmonizado, composto pela AILD, que deixa uma margem de manobra substancial aos Estados-Membros, ao abrigo das regras do direito nacional em matéria de responsabilidade civil.

Suponhamos que um sistema de IA causa danos a um consumidor. De acordo com a proposta da PLD, esta situação envolve em regra responsabilidade objetiva, em que a parte lesada teria de provar o defeito do produto, o dano e o nexo de causalidade entre os dois. No caso particular de sistemas de IA, contudo, determinar o nexo de causalidade e o defeito pode ser uma tarefa complexa, razão pela qual a PLD consagra presunções de defeito, nexo de causalidade, ou ambos, para aliviar o ónus da prova para os consumidores.

Se o regime a aplicar for o da AILD, então a abordagem será diferente. Esta Diretiva centra-se principalmente em aspetos processuais, com o objetivo de harmonizar as regras para o acesso a informação e o ónus da prova quando se trata de responsabilidade extracontratual baseada na culpa por danos causados por sistemas IA. Por outras palavras, esta Diretiva procura harmonizar o regime processual de pedidos de responsabilidade civil, deixando os requisitos dessa responsabilidade (danos, culpa, nexo de causalidade, etc.) para os Estados-Membros regularem.

Âmbito de aplicação:

No que toca ao seu escopo, a Proposta AILD aplica-se a casos de responsabilidade civil extracontratual subjetiva, nos casos em que o dano é causado por um sistema de IA[1]. No entanto, a AILD não especifica quem pode estar sujeito a estas regras de responsabilidade. De facto, a proposta limita-se a incluir o conceito de “demandado” como a pessoa contra a qual é apresentado um pedido de indemnização. Isto alarga a sua aplicabilidade para além dos criadores, potencialmente abrangendo utilizadores profissionais e não profissionais e até os próprios consumidores.

No entanto, é relevante mencionar que, embora a proposta não defina quem pode ser responsável por danos, esta limita aqueles a quem as suas disposições se aplicam. Com efeito, o n.º 1 do artigo 3.º menciona potenciais demandados: fornecedores, utilizadores e fabricantes de produtos. Isto significa que os direitos e obrigações aqui consagrados estarão provavelmente vinculados aos atores definidos no Regulamento Inteligência Artificial.

Divulgação e acesso a informação:

Uma parte importante da proposta AILD é o artigo 3.º, que regula a divulgação e o acesso à informação no âmbito destes processos de responsabilidade civil. Esta disposição estabelece deveres específicos de divulgação para os potenciais demandantes quando confrontados com pedidos de indemnização decorrentes de danos causados por sistemas de IA de alto risco.

Para que um potencial requerente possa recorrer ao artigo 3.º do AILD, é necessário que:

  • o potencial requerente apresente factos e provas que apoiem a plausibilidade do seu pedido de indemnização (n.º 1, segundo parágrafo, do artigo 3.º);
  • o potencial requerido tenha recusado o acesso às informações necessárias, apesar de as ter à sua disposição (n.º 1, primeiro parágrafo, do artigo 3.º).

A proposta AILD exige que o potencial requerente adote todos os esforços razoáveis para obter os elementos de prova junto do potencial requerido antes de solicitar uma decisão judicial (n.º 2 do artigo 3.º). Se o potencial requerido não cumprir a ordem judicial de divulgação, as consequências são significativas, levando a uma presunção ilidível de incumprimento de um dever de diligência (n.º 5 do artigo 3.º). Esta presunção pode ser utilizada como presunção (ilidível) de um nexo de causalidade entre a culpa do requerido e o dano produzido pelo sistema de IA (n.º 1, alínea a), do artigo 4.º), como veremos mais adiante.

Eis o que isto significa na prática: Suponhamos que alguém sofre um dano devido a um sistema de IA de alto risco e decide apresentar uma queixa. De acordo com a proposta AILD, pode solicitar uma ordem judicial para que o potencial requerido revele provas e informações. No entanto, há uma condição essencial: o caso deve envolver sistemas de IA de alto risco, de acordo com a classificação do Regulamento Inteligência Artificial.

Ónus da prova:

A proposta AILD contém duas presunções significativas que ajudam a aliviar o ónus da prova dos requerentes:

  • O n.º 5 do artigo 3.º cria a presunção de incumprimento de um dever de diligência, que descrevemos acima, e
  • O artigo 4.º trata da causalidade entre a culpa do requerido e o resultado do sistema de IA.

Estas presunções são componentes cruciais da proposta AILD, simplificando o processo de determinação da responsabilidade nos casos de responsabilidade por danos que envolvam IA. De facto, pode ser muitas vezes difícil determinar as características exatas dos modelos de IA que foram mais relevantes para o resultado. Para fazer face a este risco de opacidade, o artigo 4.º da proposta AILD introduz uma presunção ilidível. Esta presunção refere-se especificamente ao nexo de causalidade entre a culpa, que deve incluir, pelo menos, a violação de um dever de diligência, e o resultado produzido pelo sistema.

Nesse sentido, para se valer desta presunção, o requerente deve demonstrar com êxito os seguintes elementos (artigo 4.º, n.º 2):

  • o requerente demonstrou ou o tribunal presumiu a culpa do requerido, devido ao incumprimento do dever de diligência previsto acima[2] ;
  • pode ser considerado razoavelmente provável, com base nas circunstâncias do caso, que a falha tenha influenciado o resultado produzido pelo sistema de IA ou a incapacidade do sistema de IA para produzir um resultado;
  • o requerente demonstrou que o resultado produzido pelo sistema de IA ou a falha do sistema de IA em produzir um resultado deu origem ao dano.

É importante notar que esta presunção não abrange a determinação da culpa em si, a existência – ou inexistência – de uma ação por parte da IA, a existência e o âmbito do dano, ou o nexo de causalidade entre a ação da IA e o dano. Ademais, ao contrário do artigo 3.º, o artigo 4.º não limita o seu âmbito de aplicação aos sistemas de IA de alto risco, abrangendo assim todos os sistemas de IA. Na verdade, define mesmo no n.º 5 que se o pedido de indemnização visar um sistema de IA que não seja de alto risco, a presunção estabelecida no n.º 1 só se aplica se o tribunal nacional considerar excessivamente difícil para o requerente provar o nexo de causalidade aí mencionado.

A proposta AILD não oferece, no entanto, uma definição de culpa, deixando ao critério dos Estados-Membros a forma como a definem nos seus sistemas jurídicos. Esta abordagem proporciona flexibilidade aos países para adaptarem o conceito de culpa aos seus quadros jurídicos atuais. No entanto, também implica que os criadores de sistemas de IA têm de ter em atenção a forma como o conceito é interpretado na jurisdição em que os seus sistemas são utilizados.

Comentários sobre a proposta da AILD

Nesta secção, aprofundamos considerações específicas e potenciais desafios relacionados com a AILD. A compreensão dessas nuances ajudará os criadores de sistemas de IA e consumidores a navegar em matérias de responsabilidade por danos causados por IA com maior confiança.

O primeiro aspeto importante a abordar é transposição de categorias de sistemas de IA (ex. sistemas de alto risco) do Regulamento Inteligência Artificial para a Proposta AILD, como feito no artigo 3.º desta. A categoria de alto risco definida pelo Regulamento Inteligência Artificial pode nem sempre se alinhar perfeitamente com aquilo que seria expectável de um regime processual harmonizado em termos de responsabilidade por danos causados por sistemas de IA. Este desalinhamento pode resultar em situações onde sistemas não são incluídos neste regime, quando deviam, e vice-versa.

Por exemplo, existem sistemas de IA que não são classificados como de alto risco e que podem ainda assim causar danos significativos aos indivíduos, mesmo que não apresentem o mesmo nível de risco para a sociedade em geral. É neste sentido que, por exemplo, a Autoridade Europeia para a Proteção de Dados sugeriu alterar tanto o mecanismo de divulgação de informação como a presunção do artigo 4.º para que sejam desligados da definição de sistemas de alto risco e se apliquem a todos os sistemas de IA.

Por outro lado, ao centrar-se nos sistemas de alto risco, a AILD parece ignorar os sistemas que são considerados proibidos ao abrigo do Regulamento Inteligência Artificial. Tendo em conta os efeitos especialmente negativos que estes sistemas acarretam, a proposta AILD deve ser atualizada de modo a abranger os danos infligidos pela sua utilização. Atualmente, a proposta não aborda explicitamente estas situações. Esta falha cria potenciais ambiguidades e incertezas quanto à responsabilidade dos criadores e utilizadores de sistemas de IA proibidos. Por último, a prova de falhas em sistemas de IA representa um desafio substancial para as pessoas lesadas por sistemas de IA. Este desafio decorre das complexidades dos modelos em causa, em especial quando se trata de revelar quais as características que influenciaram significativamente o resultado produtor do dano. Assim, mesmo com os desenvolvimentos processuais trazidos pelo AILD, ao não se regular em concreto a definição de culpa, eventuais lesados terão ainda de provar elementos como dolo ou negligência do demandado, o que pode ser particularmente difícil.


[1] De acordo com a definição de IA adotada no Regulamento Inteligência Artificial, ainda em processo legislativo.

[2] O artigo 4.º do AILD consagra outros requisitos que obrigam o requerente a provar que o dever de diligência foi violado, quando se trata de sistemas de IA de alto risco, relacionados com o incumprimento das obrigações consagradas no Regulamento Inteligência Artificial.

A step backwards from the European Union in Consumer ADR?

Legislação

On 17 October 2023, the European Commission presented a set of proposals and recommendations to revise the legal framework for the consumer alternative dispute resolution (CADR), which includes the following main documents:

Proposal for a Regulation of the European Parliament and of the Council repealing Regulation (EU) No 524/2013 and amending Regulations (EU) 2017/2394 and (EU) 2018/1724 with regards to the discontinuation of the European ODR Platform;

– Proposal for a Directive of the European Parliament and of the Council amending Directive 2013/11/EU on alternative dispute resolution for consumer disputes, as well as Directives (EU) 2015/2302, (EU) 2019/2161 and (EU) 2020/1828;

– Commission Recommendation (EU) 2023/2211 of 17 October 2023 on quality requirements for dispute resolution procedures offered by online marketplaces and Union trade associations.

The Report from the Commission to the European Parliament, the Council and the European Economic and Social Committee on the application of Directive 2013/11/EU of the European Parliament and of the Council on alternative dispute resolution for consumer disputes and Regulation (EU) No 524/2013 of the European Parliament and of the Council on online dispute resolution for consumer disputes has also been made public as a supporting document.

Overall, although several provisions may represent a step forward in the field of CADR, the European Union plans to take a significant step backwards in this area, at least in comparison with the 2013 legislative package.

So far, it was possible to identify three different phases in the evolution of the EU policy on ADR:

– First phase – Identification of the problem and adoption of non-binding instruments;

– Second phase – Adoption of binding instruments with a sectoral impact, applicable to all means of ADR or to means of CADR on specific issues;

– Third phase – Adoption of binding CADR instruments.

We are probably now heading towards a fourth phase of slowdown and disinvestment in this field.

Obviously, the European Commission does not present the legislative package adopted for discussion in this light. One can, however, easily see a clear trend in this direction.

Given the substantial differences between the Member States in terms of models and commitment to CADR, the solution is justified. Although I believe that alternative dispute resolution is the right way forward in this and other areas, I admit that the role of the European Union could be reduced by helping the Member States to implement the mechanisms they deem appropriate and, if possible, by financially supporting the organisations that resolve disputes.

The following is an analysis of the eight main aspects in which this legislative package, in particular the Proposal for a Directive, is innovative[1].

  • Discontinuation of the European ODR Platform

In an article published in 2016[2], Joana Campos Carvalho and I had already predicted that the sad end of the platform would be in sight if significant changes were not made to the system provided for in Regulation (EU) No 524/2013 and some of its provisions. The number of cases was already low then and, over the years, it certainly has not increased.

Three main problems were identified.

Firstly, the lack of information about the existence of the platform. Although it was rightly required that the trader informed the consumer about the platform, nothing was done to ensure that this information was actually provided in a way that was easily accessible to the consumer. We therefore proposed the creation of a EU logo, which would have to be displayed on the homepage of the trader. Without information, both consumers and professionals are unlikely to take part in the project.

Secondly, the platform had very little flexibility and was not in line with some of the most successful national CADR systems. In fact, in cases where CADR is imposed on traders by national legislation, the platform had no mechanism to allow the process to move forward without the cooperation of the trader. If the CADR is imposed on them, the platform could never allow the trader to block the continuation of the process.

Thirdly, the Regulation was distrustful of CADR entities, not allowing them to contact the trader directly to convince them of the advantages of CADR before deciding whether or not to accept the procedure.

In practical terms, the shutdown of the platform will have very little impact on CADR, since it has always had very little use over the last ten years.

However, from a symbolic point of view, it is a landmark step in the EU’s policy and the main reason for the conclusion that the European institutions have clearly disinvested in this area. Nevertheless, the courage to back down from a solution that has not worked is to be commended.

  • Duties to inform and respond

The Proposal for a Directive removes the duty of the trader to inform the consumer about the CADR if they are not bound to take part in a CADR procedure.

Whilst it is true that traders have an excessive number of information duties resulting from EU legislation (in many cases, on top of those resulting from purely national rules), it is nonetheless symbolic that the aim of reducing bureaucracy and the associated costs comes at the cost of a rule in such a relevant area.

This information had one objective: to make the CADR known to consumers. If the information is no longer provided, the likelihood of consumers knowing about the system and realising whether the trader is bound by it decreases dramatically.

It can be said that this is a cost rationalisation measure for businesses, which may well be justified, but it cannot be said that it will encourage greater participation in the CADR.

On the other hand, it is now compulsory for the trader to reply to the CADR entity within a maximum of 20 days. The response can be to participate or not participate in the procedure, in cases where it is not binding under national law, but the trader cannot fail to respond.

The effectiveness of this measure will essentially depend on the consequences envisaged internally in the event of a lack of response.

In terms of information duties, the simplification of procedures for CADR entities should be emphasised. This measure is positive, as some of these entities are more like centres of bureaucracy than of dispute resolution. It is strange, however, that there is no longer a requirement to report on the training of the individuals who manage the CADR procedures. This training is very important for the quality of the system, and it is anticipated that removing this duty to report could have the effect of reducing training time and, consequently, reducing the quality of the procedures.

  • Extended scope of application

The scope of application of the Directive is extended to include non-contractual consumer relationships, particularly as regards the pre-contractual phase, and legal obligations.

This is a step in the right direction, although I think it would be preferable to extend the scope of application to all consumer disputes, possibly excluding only those that it would not be appropriate to resolve through ADR. I find it difficult to specify which disputes would be excluded from the scope of the Directive if the path I suggest were to be followed, which demonstrates the advantages of the extension.

  • Bundling similar cases

In order to make the system more flexible and procedures more efficient, it is now possible to bundle similar cases involving the same trader.

I think we could go a little further and allow, in some situations, with the authorisation of the parties involved, the bundling of similar cases even if two or more different traders are involved.

  • Prior contact with the CADR entity

The CADR bodies will still be able to refuse to deal with a dispute on the grounds that the consumer did not first try to contact the trader to resolve the dispute.

However, if the amendment is approved, the Directive will provide that CADR bodies may not impose disproportionate conditions in this regard. Recital (12) gives two examples: (i) “the obligation to use the company escalation system after a first negative contact with the complaints handling service” and “the obligation to prove that a specific part of a company’s after sales service was contacted”.

  • Disputes with traders established outside the European Union

The Proposal for a Directive clarifies that the ADR entities must handle disputes in cases where the consumer is a resident of the Member State in question and the trader is based in a country outside the European Union.

This is a good solution, although attention is drawn to the difficulty, in many of these cases, of contacting the trader and, if necessary, managing the procedure, including for linguistic reasons.

  • Accessibility

Article 5-2 of the Proposal for a Directive expressly provides that (i) consumers may submit the complaint and access the paper file at their request, (ii) that tools relating to digital procedures are “easily accessible and inclusive” and that, (iii) in the event that the procedure is automated, the parties are granted a right to a review of the decision by a natural person.

The rationale for providing for these rights is understandable, although it should be emphasised that these are burdens that can be significant in practice for CADR entities.

  • CADR contact point

One of the main innovations introduced by the Directive is the creation of a CADR contact point, which must be designated in each Member State, to assist consumers and traders.

Member States will have to make a first decision in this regard: will the CADR contact point be competent only for cross-border disputes or also for domestic disputes?

This question may be relevant to answering the second one: who should be the CADR contact point in each Member State?

The rule points to a preference for the contact point to operate in the European Consumer Centre, but this will probably only make sense in two cases: (i) the contact point is only intended to assist in cross-border disputes; (ii) the European Consumer Centre of the Member State concerned has powers extended to domestic disputes.

In any case, the success of this measure will essentially depend on its practical application. A contact point that effectively provides assistance to consumers and traders can add value to the system, helping to fulfil the objective of increasing access to the ADR network.


[1] Issues related to online marketplaces are not analysed: (i) on the one hand, the relationship between this regime and Art. 21 of the Digital Services Act; (ii) on the other hand, Recommendation (EU) 2023/2211, indicated in the second paragraph of the text.

[2] “Online Dispute Resolution Platform – Making European Contract Law More Effective”, in Alberto De Franceschi (ed.), European Contract Law and the Digital Single Market, Intersentia, Cambridge, 2016, pp. 245-266.

Uma proposta de proibição de produtos fabricados com recurso a trabalho forçado no mercado da UE

Doutrina, Legislação

No dia 14 de setembro de 2022, a Comissão Europeia apresentou a Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho sobre a proibição de produtos fabricados com recurso ao trabalho forçado no mercado da União Europeia, tendo sido agora aprovada, no passado outubro, sem votos contra, por duas comissões do Parlamento Europeu.

Numa altura em que muito se debate sobre sustentabilidade na UE – com especial ênfase, é preciso dizê-lo, na sustentabilidade ambiental – é com entusiasmo que se recebe a notícia de uma proposta de regulamentação que tutela diretamente o S dos pilares ESG. Depois da Diretiva do Reporte de Sustentabilidade e da Proposta de Diretiva relativa ao Dever de Diligência das Empresas (DDD), diplomas que recaem diretamente sobre as obrigações das empresas, surge então agora uma proposta especificamente vocacionada para limitar a comercialização de bens que resultem de trabalho forçado, que vem intervir diretamente sobre os bens e não criando propriamente novas regras para as empresas. A viabilização desta Proposta depende da aprovação do Parlamento Europeu e do Conselho, sendo o Regulamento depois aplicado a todos os Estados-Membros 24 meses após a respetiva entrada em vigor.

Esta iniciativa é, em geral, de aplaudir. É uma iniciativa relevante que dignifica e densifica os princípios comunitários e multilaterais de defesa dos direitos humanos, sendo sobretudo de salientar a ousadia de se iniciar um movimento legislativo que, a ser aprovado, comportará consequências muitíssimo expressivas no panorama do comércio europeu. Se pensarmos, por exemplo, dentro do setor têxtil, apenas nos bens de vestuário produzidos com algodão como matéria-prima, uma em cada cinco peças dessa roupa envolve trabalho forçado na sua produção, sendo, por isso, eliminável do comércio europeu. Não se descarte, por isso, a coragem subjacente à elaboração desta Proposta – ela comporta uma alteração notável do quadro vigente e não se refreia pela circunstância de os consumidores europeus poderem vir a encontrar as prateleiras mais folgadas, com todas as consequências que daí advêm para vários setores.

Não deixa também de ser uma proposta visionária, no sentido em que acolhe as preocupações cada vez mais crescentes dos consumidores europeus em relação à questão.

Sobre os aspetos positivos desta Proposta:

• É de ressaltar, em particular, a potencialidade da sua aplicação aos bens comercializados por todas as empresas – micro, pequenas, médias e grandes empresas – e por todos os operadores económicos, o que significa que tem a potencialidade de impactar (finalmente) absolutamente todos os consumidores europeus que compram bens. Será, neste sentido, uma boa ultrapassagem (ou complemento) das limitações da DDD, ainda que apenas em termos de sustentabilidade social.

• É de aplaudir a ideia de implementação de entidades de investigação do histórico da cadeia de abastecimento dos bens que ingressam no mercado europeu, entidades e competências essas que mais cedo ou mais tarde teriam de ser criadas/adaptadas na União de forma a honrar a expiação do problemático fenómeno do trabalho forçado. De acordo com a Proposta, as autoridades competentes conduzirão investigações e decidirão na sequência dessas investigações. As decisões destas autoridades deverão depois ser comunicadas às autoridades aduaneiras, que serão responsáveis pela identificação dos produtos em causa e pela realização de controlos das importações e exportações na fronteira da UE. Infelizmente, a atribuição deste controlo dividido entre autoridades nacionais e autoridades aduaneiras não prima pela melhor abordagem ao problema, deixando uma larga margem ao contorno do sistema arquitetado .

• A Proposta sugere a criação de uma base de dados relativa a zonas e produtos com exposição ao risco de utilização de trabalho forçado, sendo útil às empresas que queiram contornar fornecedores problemáticos. Este é um aspeto positivo, sobretudo pela transparência e acesso aberto a toda a comunidade, ainda que tivesse sido relevante pensar-se em formas de tornar essa comunicação eficaz junto do consumidor. Apesar de tudo, é um passo bastante importante a assinalar, sobretudo pelo quadro absolutamente dúbio e cinzento que se encontra atualmente nesta matéria.

• É de felicitar o estabelecimento de critérios específicos para a avaliação do risco de os operadores económicos estarem imiscuídos ou não em cadeias de abastecimento enformadas por escravatura moderna. Estes critérios serão muito úteis à condução da investigação que a entidade responsável por este controlo terá de levar a cabo, levantando o véu daqueles que são os sinais de alarme a que empresas, consumidores e mesmo entidades públicas devem estar atentos no momento da contratação.

A avaliação terá em conta os seguintes critérios (não exaustivos):

(i) Observações apresentadas por pessoas singulares ou coletivas ou por qualquer associação sem personalidade jurídica;

(ii) Indicadores de risco e outras informações, que devem basear-se em informações independentes e verificáveis, incluindo relatórios de organizações internacionais, em especial da Organização Internacional do Trabalho, da sociedade civil e de organizações empresariais, e ter em conta a experiência adquirida com a aplicação da legislação da União que estabelece requisitos de dever de diligência em matéria de trabalho forçado;

(iii) A base de dados sobre zonas ou produtos com exposição ao risco de utilização de trabalho forçado;

(iv) Informações e decisões codificadas no sistema de informação e comunicação, incluindo quaisquer casos anteriores de cumprimento ou incumprimento da proibição por parte de um operador económico;

(v) Informações solicitadas pelas autoridades competentes a outras autoridades pertinentes sobre se os operadores económicos objeto de avaliação estão sujeitos ao dever de diligência em matéria de trabalho forçado e exercem esse dever em conformidade com a legislação aplicável da União ou com a legislação dos Estados-Membros que estabeleça requisitos de dever de diligência e de transparência no que diz respeito ao trabalho forçado.

Se a iniciativa é sem dúvida para se elogiar, ocorre, ainda assim, que apresenta também alguns problemas e limitações que podem e devem ser consideradas no futuro do procedimento legislativo.

Além das que foram já sendo assinaladas, é de destacar pela negativa a proposta de destino a oferecer aos bens que venham a ser considerados produzidos em condições de trabalho forçado.

São dois os cenários:

(i) Se, antes da colocação dos bens no mercado, se detetar que o bem não cumpre os requisitos, as autoridades competentes determinarão a proibição de venda no mercado da UE.

(ii) No entanto, se os bens já estiverem no mercado, será ordenada a retirada e eliminação desses bens, a expensas do operador económico, bem como a proibição de exportação desses bens (“os operadores económicos que tenham sido objeto de investigação [devem retirar] do mercado da União os produtos em causa já disponibilizados e [mandá-los] destruir, inutilizar ou de outra forma eliminar” – Considerando 27).

Ainda que a solução do ponto (i) se compreenda, obviamente que a solução do ponto (ii) não pode passar por este desfecho. O bem jurídico que se pretende proteger com a criação deste Regulamento será sobretudo o da proteção da integridade física dos “trabalhadores” (e, no máximo, a expectativa do consumidor ético e de outras entidades), que não sai protegida com a retirada do bem do mercado. Antes pelo contrário, esta consequência é desastrosa para os princípios de sustentabilidade ambiental que pautam a agenda da UE por estes dias. Não pode a UE tratar um bem fruto de escravatura moderna como se de um bem perigoso se tratasse. A situação é exatamente a inversa: a produção do bem é que tornou perigosa a situação para o “trabalhador”. Retirar o bem do mercado não oferece nenhuma vantagem para nenhum deles, ainda que se compreenda que é uma medida de desincentivo ao operador económico. Mesmo que a solução venha a ser a de doar os bens (pelo menos os perecíveis) – que seria uma solução, em geral, mais sustentável – tal não ultrapassa o problema de não responder à verdadeira motivação de criação do Regulamento. Devem, pois, encetar-se medidas de combate à escravatura moderna, sem dúvida, mas em harmonia com todos os pilares da sustentabilidade e em fidelidade à solução do problema de facto.

As alternativas existem.

Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil na UE: Responsabilidade por Produtos Defeituosos

Legislação

Introdução

Nesta blogpost, vamos explorar o regime de responsabilidade por danos causados por sistemas de Inteligência Artificial (“IA”) na União Europeia (“UE”), especialmente no que diz respeito à responsabilidade por produtos defeituosos, no contexto da proposta relativa à Diretiva sobre Responsabilidade por Produtos Defeituosos (“Proposta”). O nosso objetivo será explicar as principais matérias reguladas pela Proposta, dando-lhes um pano de fundo e proporcionando uma compreensão clara de como esta proposta altera o regime atual, especialmente quando se trata de regular a responsabilidade por sistema de IA num cenário Business to Consumer.

Enquadramento geral da responsabilidade civil por danos de sistemas de IA

Antes de entrar nesse regime, importa analisar a regulação europeia em termos de IA. Este panorama é marcado por vários atos legislativos, quer já estejam em vigor, quer estejam a passar pelo respetivo processo legislativo. Assim, para compreender o quadro de responsabilidade por danos da UE, é importante contextualizá-lo num escopo mais vasto de Regulamentos e Diretivas.

Regime europeu aplicável à IA

Na UE, os sistemas de IA estão a ser objeto de regulação em duas frentes: regimes gerais e regras específicas de IA.

Começando pelo quadro jurídico geral, têm-se travado importantes debates sobre a sobreposição (e potencial ineficácia) de certos Regulamentos e Diretivas quando aplicados à IA. Os mais referidos são os seguintes:

Proteção de Dados: A IA depende fortemente de dados, especialmente de dados pessoais. A conformidade com os princípios de proteção de dados, incluindo a minimização, a limitação da finalidade, a exatidão e a responsabilidade, é uma obrigação, embora nem sempre seja fácil de alcançar na prática;

Propriedade intelectual: Para além dos dados pessoais, a legislação da UE rege outros aspetos relacionados com a IA, através de regimes como os direitos de autor, as patentes e os segredos comerciais, bem como a proteção das bases de dados. Através destes regimes, os dados (não pessoais) de treino, os inputs, os outputs e até o próprio modelo poderão ter de cumprir determinados critérios para serem abrangidos pelo escopo destes direitos. Neste sentido, dois dos temas mais atuais são a questão de saber se os sistemas de IA podem ser autores (por exemplo, para efeitos de direitos de autor), bem como a potencial violação dos direitos de autor concedida aos autores de obras que são utilizadas para treinar sistemas de IA;

Direito do Consumo: As Diretivas existentes em matéria de Direito do Consumo têm vindo a adaptar-se para englobar a IA de uma forma mais direta. Dois exemplos claros são a Diretiva relativa aos conteúdos digitais e a Diretiva relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens;

Responsabilidade Civil: Tal como acontece com o Direito do Consumo, o legislador da UE está a agir no sentido de atualizar os atuais regimes de responsabilidade para incluir sistemas tecnologicamente mais avançados, como a IA. Assim, para além da Diretiva Conteúdos Digitais e da Diretiva relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens que preveem opções para os consumidores em caso de não conformidade, o legislador europeu está atualmente a preparar a Proposta, que será analisada mais aprofundadamente adiante.

Na regulação específica da IA, a UE adota uma abordagem dupla:

Conformidade e regulamentação: O Ato da IA (AI Act) impõe obrigações principalmente aos utilizadores e criadores de sistemas de IA com base numa abordagem baseada no risco. Consoante os riscos potenciais que apresentam, os sistemas podem variar entre uma regulamentação mínima e uma proibição estrita. Os sistemas de alto risco e as partes da cadeia de abastecimento enfrentam obrigações pormenorizadas;

Responsabilidade Civil: A UE abordará a questão da responsabilidade por danos relacionados com a IA através da Diretiva sobre Responsabilidade por IA (AI Liability Directive ou “AILD”), atualmente em discussão pelo legislador da UE. No entanto, esta Diretiva centrar-se-á apenas na responsabilidade extracontratual baseada na culpa.

Responsabilidade civil por danos causados por sistemas de IA

Se nos debruçarmos especificamente sobre os quadros de responsabilidade civil, verificamos que o legislador da UE pretende abordar a responsabilidade por danos causados por sistemas de IA de duas formas:

Responsabilidade contratual: Para as relações entre consumidores e profissionais, a Diretiva Conteúdos Digitais e a Diretiva relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens preveem um regime de responsabilidade a que os consumidores podem recorrer em caso de não conformidade;

Responsabilidade extracontratual: A AILD e a Proposta da nova Diretiva regerão a responsabilidade extracontratual baseada na culpa dos sistemas de IA[1].

Com este roteiro em mente, o resto deste blogpost centrar-se-á na Proposta da nova Diretiva, abordando os seus principais elementos, como o seu âmbito material e pessoal, bem como os requisitos para desencadear a responsabilidade dos operadores económicos.

Escopo da Proposta

Ao analisar a proposta de Diretiva e o seu impacto nos sistemas de IA, é importante compará-la com as regras da atual Diretiva. Esta comparação revela duas primeiras melhorias fundamentais, relacionadas, por um lado, com o seu âmbito material e, por outro, com o seu âmbito pessoal.

Escopo material e definições

A Proposta da Diretiva representa um desenvolvimento substancial da Diretiva em vigor, ao atualizar as suas definições com conceitos tecnologicamente mais avançados, onde se incluem sistemas de IA. Para o efeito, o âmbito das regras de responsabilidade decorrente dos produtos é alargado através das seguintes definições:

Alargamento da definição de “produto”: A definição abrange agora os ficheiros de fabrico digitais e o software;

Introdução da definição de ‘componente’: Esta adição abrange qualquer elemento tangível ou intangível, ou qualquer serviço conexo que é incorporado num produto ou interligado com o mesmo pelo fabricante desse produto ou sob o controlo do fabricante;

Definição de “serviço conexo”: Um serviço conexo é definido como um serviço digital que, quando ligado a um produto, é essencial para o funcionamento normal do produto.

Estas definições atualizam o regime de responsabilidade decorrente de produtos defeituosos, garantindo que os produtos que incorporam elementos e serviços digitais estejam sujeitos a estas regras de responsabilidade. Este aspeto é especialmente relevante no contexto atual, em que serviços são frequentemente integrados nos produtos, como acontece com os assistentes virtuais como a Alexa e a Siri, em que a atual Diretiva dá respostas pouco claras.

Escopo pessoal e operadores económicos

Por outro lado, a Proposta também alarga as entidades que podem ser responsabilizadas por danos, introduzindo uma mudança significativa de “produtores” para “operadores económicos”. Este novo conceito alarga o âmbito de aplicação para incluir várias partes na cadeia de abastecimento, tais como o fabricante do produto, os fabricantes de componentes, os prestadores de serviços conexos, os representantes autorizados, os importadores, etc.

Embora estas novas entidades estejam abrangidas pelo âmbito de aplicação da Proposta da Diretiva, tal não significa que todas partilhem regimes de responsabilidade idênticos. Por exemplo, os importadores, os representantes autorizados e os prestadores de serviços de execução têm responsabilidade subsidiária, tornando-se responsáveis se o fabricante estiver situado fora da UE (artigo 7.º, n.º 2). Se nem o fabricante nem o importador puderem ser identificados, os distribuidores podem ser responsabilizados.

Crucialmente, é importante notar que a Proposta de Diretiva alarga a responsabilidade às entidades que prestam serviços conexos. Esta alteração constitui uma mudança conceitual, uma vez que a Diretiva se aplica tradicionalmente a produtos e não a serviços. No entanto, a inclusão é lógica, uma vez que os produtos contêm cada vez mais componentes digitais essenciais para o seu funcionamento. No contexto da “Internet of Things”, uma distinção estrita entre produtos e serviços não pode pôr em causa a responsabilidade por produtos defeituosos.

O que isto significa, em termos práticos, é que se uma empresa desenvolve um sistema de IA, que é integrado no software de um produto criado por outra, ambas as entidades podem ser responsabilizadas por defeitos do produto final. Se a parte lesada receber uma indemnização do fabricante do produto final, essa entidade pode eventualmente ter direito a uma compensação do fabricante do componente com base na legislação nacional aplicável.

Regime de responsabilidade civil ao abrigo da Proposta

Vamos agora explorar os fatores críticos que ativam a responsabilidade ao abrigo da Proposta. São eles a existência de dano e o caráter defeituoso do produto.

Relativamente ao primeiro, foram incluídas duas alterações fundamentais na Proposta:

Supressão do limiar mínimo de 500 €: A Proposta elimina o limiar de 500 € previsto na atual Diretiva, alargando assim o âmbito da responsabilidade;

Inclusão da perda ou corrupção de dados: A perda ou corrupção de dados, não utilizados exclusivamente para fins profissionais, passa a ser considerada um dano pelo qual os operadores económicos podem ser responsabilizados. No entanto, a responsabilidade continua limitada, excluindo os danos económicos. Esta limitação afeta cenários de IA como os seguros, a pontuação de crédito e situações laborais, em que os danos económicos são mais comuns.

O segundo elemento, e provavelmente o elemento central que desencadeia a responsabilidade, é o caráter defeituoso do produto.

Em termos gerais, a nova disposição sobre o carácter defeituoso assemelha-se muito ao artigo 6.º da atual Diretiva, que considera as expectativas do consumidor.

No âmbito deste quadro, são feitas duas principais melhorias:

Aprendizagem após a colocação no mercado: A Proposta alarga a responsabilidade aos defeitos que surgem depois de o produto ser colocado no mercado, ao considerar a potencial aprendizagem do sistema após o seu lançamento;

Controlo após o lançamento: Outra consideração crítica é o nível de controlo mantido pelos fabricantes ou programadores depois de o produto ser introduzido no mercado ou colocado em serviço. Assim, a Proposta prevê que a responsabilidade pelos defeitos continue até que o controlo seja abandonado. Este requisito garante que as empresas permanecem proativas na abordagem e retificação dos defeitos.

É de notar que a Proposta de Diretiva prevê situações de responsabilidade por defeitos posteriores, nomeadamente no artigo 10.º. Aqui, os operadores económicos podem não ser responsabilizados por danos causados por um produto defeituoso se demonstrarem que é provável que o defeito que causou o dano não existia quando o produto foi colocado no mercado ou em serviço. Contudo, o n.º 2 do artigo 10.º prevê exceções a esta regra. Os operadores económicos serão responsabilizados se o defeito resultar de um serviço conexo, de software (incluindo atualizações e upgrades) e da sua ausência quando necessário para a manutenção da segurança. É importante notar que estas exceções só se aplicam quando os operadores económicos mantêm o controlo sobre o produto após a sua colocação no mercado. Assim, existe um paralelo entre o n.º 1, alínea c), do artigo 6.º e o artigo 10.º, que alarga a responsabilidade aos casos de defeitos posteriores quando o operador económico mantém um grau de controlo sobre o produto.

Acesso a informação e ónus da prova

Para além das regras gerais em matéria de responsabilidade civil, a Proposta inclui disposições relativas ao acesso à informação e ao ónus da prova.

O artigo 8.º pode ser invocado para aceder a informações relativas a sistemas de IA, quer estes sejam de alto risco ou não. Trata-se de uma distinção importante em relação à AILD, que se centra principalmente nos sistemas de alto risco. Outro aspeto significativo deste artigo é a utilização do termo “demandado”, indicando que o direito de acesso à informação diz respeito principalmente a processos judiciais em curso.

No que toca ao ónus da prova, a Proposta visa aliviar o ónus da parte lesada na prova de certos elementos necessários a uma ação de indemnização.

Resumidamente, o artigo 9.º estabelece que cabe normalmente ao demandante ou à parte lesada o ónus de provar o carácter defeituoso, o dano e o nexo de causalidade entre eles. Contudo, a Proposta estabelece condições específicas que desencadeiam a presunção de defeito, de nexo de causalidade entre o defeito e o dano ou de ambos. Estas condições são as seguintes:

Condições suficientes para a presunção de defeito: (i) Incumprimento pelo requerido de uma obrigação de divulgação nos termos do artigo 8.º, n.º 1; (ii) Violação de requisitos de segurança obrigatórios; (iii) Danos causados por um mau funcionamento óbvio do produto;

Condições suficientes para a presunção de nexo de causalidade: presume-se o nexo de causalidade se for comprovado o caráter defeituoso do produto e se o dano for compatível com o mesmo. No entanto, a proposta não especifica os tipos de danos tipicamente considerados coerentes com o defeito, introduzindo potencialmente incerteza jurídica e encargos adicionais para os consumidores;

Condições adicionais de suficiência para ambas as presunções (n.º 4 do artigo 9.º): (i) O tribunal deve considerar excessivamente difícil para o requerente provar o respetivo objeto da presunção (defeito, causalidade ou ambos); (ii) O requerente deve estabelecer que o produto contribuiu para o dano, (iii) O objeto factual da presunção deve ser provável, baixando o limiar de prova do padrão normal para a mera probabilidade.

Os demandados têm a possibilidade de ilidir qualquer uma destas presunções (n.º 5 do artigo 9.º). Isto significa que podem apresentar provas ou argumentos para contestar as presunções de defeito ou de nexo de causalidade.


[1] É importante mencionar que a Proposta e em geral o regime de responsabilidade por produtos defeituosos pode também ser aplicado a relações contratuais, não estando, contudo, dependente da sua existência.

Lei n.º 28/2023 – Mais uma peça no combate à obsolescência programada

Legislação

No passado dia 4 de julho, foi publicada no Diário da República a Lei n.º 28/2023, que procedeu à nona e mais recente alteração da Lei n.º 24/96, de 31 de julho (Lei de Defesa do Consumidor),

Esta lei veda a renovação forçada de serviços ou equipamentos cuja vida útil não tenha expirado.

Com efeito, o artigo 9.º, que tem como epígrafe “Direito à proteção dos interesses económicos”, tem agora no seu n.º 7 a seguinte redação: “É vedada ao fornecedor de bens ou ao prestador de serviços a adoção de quaisquer técnicas que visem reduzir deliberadamente a duração de vida útil de um bem de consumo a fim de estimular ou aumentar a substituição de bens ou a renovação da prestação de serviços que inclua um bem de consumo”.

Alterou-se a redação de 2021, resultante do DL n.º 109-G/2021, de 10 de Dezembro. A norma era semelhante e tinha como fim não se estimular ou aumentar a substituição de bens. Agora a prestação de serviços é expressamente contemplada, ficando o consumidor ainda mais protegido contra as práticas de obsolescência programada. Note-se que as expressões fornecedor e prestador de serviços eram já utilizadas no n.º 6 do mesmo artigo[1].

Como já referido neste Blog, o Novo Plano de Ação para a Economia Circular, a propósito do Pacto Ecológico Europeu[2] que visa transformar a UE numa economia com impacto neutro no clima, prevê o combate à obsolescência precoce como estratégia da UE no domínio da transição ecológica, domínio considerado prioritário na Nova Agenda do Consumidor[3]. O Pacto Ecológico Europeu pretende que a Europa seja o primeiro continente neutro do ponto de vista carbónico em 2050, o que passa por tecnologias mais ecológicas, que evitam compras recorrentes e desnecessárias.

Também a obsolescência programada é acutelada pelo Direito, designadamente pelo indicado DL de 2021 que transpôs parcialmente a Diretiva (UE) 2019/2161. Também a Diretiva (UE) 2019/770,  no artigo 8.º-1-b), relativo aos requisitos objetivos de conformidade, se refere a “funcionalidade, compatibilidade, acessibilidade, continuidade e segurança, que são habituais em conteúdos ou serviços digitais do mesmo tipo e que o consumidor possa razoavelmente esperar”, ainda que seja uma abordagem muito tímida[4] ao tema da obsolescência programada. Veja-se igualmente o considerando 32 da Diretiva (UE) 2019/771, onde se refere que “assegurar uma maior durabilidade dos bens é importante para se alcançarem padrões de consumo mais sustentáveis e uma economia circular”, devendo ser assegurada uma “durabilidade que é normal para bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar dada a natureza dos bens, incluindo a eventual necessidade de manutenção razoável dos bens”. A durabilidade é avaliada para efeitos de conformidade. Dado que vivemos numa sociedade altamente consumista, a UE reconhece que a transformação ecológica é indissociável da transformação digital[5], apostando assim no combate à obsolescência, quer precoce, quer programada.


[1] “É vedado ao fornecedor ou prestador de serviços fazer depender o fornecimento de um bem ou a prestação de um serviço da aquisição ou da prestação de um outro ou outros”.

[2] Pacto Ecológico Europeu [COM(2019) 640 final de 11 de dezembro de 2019].

[3] A Agenda abrange cinco domínios prioritários: (1) Transição ecológica; (2) Transformação digital; (3) Reparação e aplicação dos direitos dos consumidores; (4) Necessidades específicas de determinados grupos de consumidores; e (5) Cooperação internacional.

[4] Jorge Morais Carvalho, “Venda de Bens de Consumo e Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais – As Diretivas 2019/771 e 2019/770 e o seu Impacto no Direito Português”, in Revista Electrónica de Direito, n.º 3, 2019, p. 76.

[5] Construir o futuro digital da Europa [COM(2020) 67 final de 19 de fevereiro de 2020].

Green Claims Directive Proposal: hello from the other side

Doutrina, Legislação

No passado dia 22 de março, foi divulgada a Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à fundamentação e comunicação de alegações ambientais explícitas (Green Claims Directive). Esta Proposta surge no seguimento da Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera as Diretivas 2005/29/CE e 2011/83/UE no que diz respeito à capacitação dos consumidores para a transição ecológica através de uma melhor proteção contra práticas desleais e de melhor informação, visando adensar o regime legal e complementar as propostas de alteração à Diretiva relativa às práticas comerciais desleais. Além da Green Claims Directive, também no passado dia 22 de março foi divulgada a Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho sobre as regras comuns para a promoção da reparação de bens e que propõe alterar o Regulamento n.º 2017/2394 e as Diretivas 2019/771 e 2020/1828.

 O mote da sustentabilidade no consumo já tinha sido dado em 2019, um ano mais longínquo do que há 4 anos atrás, com o Pacto Ecológico Europeu. A perspetiva de que o consumidor é também ele uma parte ativa na causa ambiental conheceu oficialmente a luz do dia há já quase meia década. Muitos anos depois, no final de 2020, com a Nova Agenda do Consumidor, a intenção de combate ao greenwashing ficou mais clara, sobretudo após ser detetada a proliferação do fenómeno. Greenwashing, para todos os efeitos, será a prática que consiste em maquilhar uma empresa ou um bem, apresentando-a/o como benigna/o ambientalmente (sustentável, portanto), sendo que essas características não têm correspondência de facto, visando atrair mais consumidores, sobretudo os interessados nessas características. Este é sem dúvida o momento para a discussão destas matérias, com uma União Europeia cada vez mais comprometida com o direito do consumo e suas ligações extraprivatísticas, mais uma vez se verificando o empenho da UE em regular para o seu tempo e no sentido das causas dos europeus.

A Proposta que esta semana veio a público representa uma tentativa de legislar o fenómeno do greenwashing, que já vem sendo bem conhecido como prática habitual junto dos consumidores. O setor empresarial foi expedito no ajustamento às intenções de consumo mais sustentável por parte dos consumidores nos últimos anos, prezando por alegações ambientais ou de sustentabilidade social mesmo quando (i) tais referências eram esvaziadas de conteúdo; (ii) tais referências eram absolutamente falsas; (iii) tais referências, sendo verdadeiras, dissimulavam práticas não sustentáveis.

Um estudo da Comissão que analisou 150 alegações ambientais, em vários produtos, verificou que 53,3% dessas alegações eram vagas, enganosas ou infundadas, 40% não tinham qualquer fundamento factual e 50% da rotulagem verde não era objeto de verificação (ou, sendo, era fraca). Os próprios consumidores apresentam desconfiança em relação a estas alegações ambientais, em geral. Se, por um lado, esse ceticismo é demonstrativo da maior atenção dos consumidores em relação à atuação do profissional, por outro prejudica claramente a sua disponibilidade de escuta de alegações fidedignas, fazendo com que o consumidor, muitas vezes, ao duvidar da alegação, fique paradoxalmente desinformado.

Neste sentido, a Proposta de Diretiva relativa à capacitação dos consumidores para a transição ecológica já apresentara, em 2022, algumas medidas legislativas tendentes à superação do greenwashing. Especificamente no que ao diploma das práticas comerciais desleais diz respeito, são de destacar as seguintes propostas de alteração:

(i) Alargamento da lista das ações consideradas enganosas, estabelecidas no artigo 6.º, n.º 1 da Diretiva 2005/29/CE, visando incluir os conceitos de “impacto ambiental ou social”, “durabilidade” e “reparabilidade”;

(ii) Alteração do artigo 6.º, n.º 2 da mesma Diretiva, no sentido de se poder considerar enganosa, no seu contexto factual, a apresentação de uma alegação ambiental que não assente em compromissos e metas claras, objetivas e verificáveis, nem um sistema de controlo independente;

(iii) Aditamento de novas práticas comerciais que devem ser consideradas desleais em qualquer circunstância (artigo 5.º, n.º 5 da Diretiva e Anexo I), nomeadamente:

– Exibição de um rótulo de sustentabilidade que não se baseia num sistema de certificação ou que se baseia num sistema de certificação que não foi criado por autoridades públicas;

– Fazer uma alegação ambiental genérica para a qual o profissional não consegue demonstrar um desempenho ambiental reconhecido e relevante para a alegação;

– Fazer uma alegação ambiental sobre o bem na sua totalidade quando se refere apenas a uma determinada parte desse bem;

– Apresentar como característica distintiva do bem requisitos impostos por lei a todos os bens no mercado da União.

Na mais recente Proposta (Green Claims Directive), é reforçada a intenção de prevenção de manobras de greenwashing, regulando a forma como as empresas fundamentam e comunicam as suas alegações sustentáveis. No artigo 3.º, é proposto o estabelecimento de requisitos específicos quanto aos contornos de fundamentação das alegações ambientais que o profissional faça. Com particular interesse para o consumidor, no artigo 5.º são propostos os moldes de comunicação das alegações ambientais, nomeadamente, entre muitos outros, a inclusão da informação acerca de como o consumidor deve utilizar o bem de forma a obter o desempenho ambiental esperado e alegado (n.º 3). Estes moldes de comunicação são bastante alargados, provavelmente demasiado. Por outro lado, a Proposta vem também procurar regular as alegações ambientais comparativas, estabelecendo igualmente a forma como estas devem ser comunicadas ao consumidor. Além disso, como não poderia deixar de ser, a Proposta vem apresentar os requisitos que devem ser respeitados para que o profissional possa utilizar um determinado sistema de certificação ambiental. Muito interessante notar que um desses requisitos se prende com a existência de um sistema de reclamações e de resolução de litígios para questões relacionadas com a rotulagem/certificação. Não é menos interessante que a Proposta pareça sugerir que se encete o caminho para a diminuição da proliferação de sistemas de certificação, o que se compreende, considerando os já 230 rótulos disponíveis na UE.

Todas estas propostas são passíveis de contribuir para a promoção de consumidores mais informados e para o desincentivo à implementação de práticas de greenwashing pelo setor empresarial, como é evidente. No entanto, não é tão claro que o resultado da implementação de todas estas propostas venha a refletir-se em consumidores melhor informados, sobretudo se atentarmos na imensa quantidade de informação que deve ser comunicada ao consumidor (também) neste potencial diploma legislativo. Além disso, importa precisar que o caminho atual não se basta com uma estratégia de regulação a estrear do fenómeno. Na verdade, agora, importa justamente também implementar estratégias que devolvam a confiança e a certeza aos consumidores.

Finalmente, o novo Regulamento dos Serviços Digitais (Digital Services Act DSA)!

Legislação

A 27 de outubro de 2022, foi publicado no Jornal Oficial da União Europeia o muito aguardado Regulamento (UE) 2022/2065 dos Serviços Digitais (mais conhecido pelo nome inglês Digital Services Act DSA), aprovado a 19 de outubro no Conselho.

Apresentado há quase dois anos pela Comissão no Pacote dos Serviços Digitais (que inclui também o agora aprovado Regulamento (UE) 2022/1925 dos Mercados Digitais – Digital Markets Act DMA), o Regulamento dos Serviços Digitais atravessou um procedimento legislativo muito ativo: os 106 considerandos e 74 artigos da proposta inicial foram bastante trabalhados pelo Parlamento Europeu e o Conselho, resultando num total final de 156 considerandos e 93 artigos.

O Regulamento dos Serviços Digitais surge principalmente com o objetivo de atualizar o regime aplicável à responsabilidade dos prestadores de serviços digitais, anteriormente inserido nos artigos 12.º a 15.º da Diretiva do Comércio Eletrónico (2000/31/CE), agora revogados. Este regime de responsabilidade dos serviços intermediários pelo transporte e armazenamento de conteúdos ilegais, com quase 20 anos, carecia de atualização normativa, devido a todas as controvérsias relacionadas com a proliferação de conteúdos ilegais (violações de direitos de autor, promoção de terrorismo, pornografia infantil, entre outras) e tentativas de os moderar (erros dos algoritmos de sinalização e bloqueio, falsos positivos e negativos) que resultam por sua vez em restrições de direitos fundamentais de acesso à informação e liberdade de expressão, os chamados efeitos de silenciamento (“chilling effects”), que se tornaram evidentes com a omnipresença e dependência da sociedade atual nestes serviços.

O Regulamento acaba por não reinventar os principais princípios que regem a responsabilidade e o papel dos intermediários e a questão da moderação de conteúdos, focando-se antes na codificação e aprofundamento normativo de práticas que já constavam de intervenções junto dos principais stakeholders, sejam instrumentos de soft-law e self-regulation, nomeadamente a “Recomendação sobre medidas destinadas a combater eficazmente os conteúdos ilegais em linha”.

Assim, o Regulamento não altera substancialmente o regime de “safe harbour”, de isenção de responsabilidade dos prestadores de serviços de simples transporte e armazenagem temporária (“catching”) (arts. 4.º e 5.º), sendo que os serviços de alojamento virtual (novo termo para armazenagem em servidor “hosting”), recebe apenas algumas alterações cirúrgicas (em direito do consumo, abordada mais adiante). O princípio da proibição de obrigações gerais de vigilância mantém-se, sendo que é acrescentada a cláusula do “bom samaritano” (art. 7.º), que já existia no Content Decency Act CDA (a legislação americana de 1996 equivalente à antiga diretiva). Este permite aos prestadores de serviços manter a imunidade quando conduzem investigações próprias, voluntariamente e de boa-fé, destinadas a detetar, identificar e suprimir ou bloquear o acesso a conteúdos ilegais.

O papel das autoridades administrativas e judiciais é reforçado, com normas para a emissão de ordens de bloqueio e remoção de conteúdos. A figura dos sinalizadores de confiança (“trusted flaggers”) é também codificada (art. 22.º).

O Regulamento dos Serviços Digitais impõe severas medidas de controlo e auditoria de todos estes mecanismos, procurando reajustar o equilíbrio na relação entre utilizadores, plataformas e partes terceiras. Os direitos fundamentais de acesso à informação e liberdade de expressão estão refletidos nas diversas disposições do diploma.

Relação com o Direito do Consumo

O Regulamento dos Serviços Digitais não é um diploma de direito do consumo no sentido clássico do conceito. Na proposta original, a proteção de consumidores não surgia sequer indicada nos considerandos como um dos objetivos centrais do diploma, em especial a proteção económica, embora este pretendesse complementar a atuação das diretivas, com um foco nos direitos fundamentais. Este aspeto mudou com as recomendações e mudanças propostas pelo Parlamento Europeu, que referiu a necessidade de o diploma abordar as práticas desleais dos mercados em linha, assim como a articulação com normas de segurança de produtos e responsabilidade de plataforma.

Trata-se de um instrumento de regulação horizontal, que afeta uma série de áreas diferentes, incluindo os direitos de propriedade intelectual, os dados pessoais e a proteção dos consumidores. O regulamento não obsta à aplicação do acquis do direito do consumo europeu, como expressamente se indica no art. 1.º-4-f) e no considerando 10.

A definição de conteúdos ilegais, pertinente para as questões de moderação de conteúdos, inclui os conteúdos digitais que, independentemente da sua forma, violem ou estejam relacionados com violações de direito do consumo.

Os consumidores, enquanto utilizadores destes serviços, veem os seus direitos fundamentais de acesso à informação e à liberdade de expressão reforçados com mecanismos de reddress, para a contestação e recurso das decisões das plataformas na moderação de conteúdos, incluindo instrumentos de resolução de litígio.

O art. 6.º-3 inclui uma exceção expressa da exclusão de responsabilidade extremamente relevante para a proteção de consumidores: sempre que plataformas, que permitam a celebração de contratos à distância entre consumidores e comerciantes, apresentem o elemento específico de informação ou permitam, de qualquer outra forma, que a transação específica em causa induza um consumidor médio a acreditar que a informação, o produto ou o serviço objeto da transação é fornecido pela própria plataforma em linha ou por um destinatário do serviço que atue sob a sua autoridade ou controlo”. Os conceitos desta norma são desenvolvidos nos considerandos 23 e 24:

  • O considerando 23 salienta que este elemento da atuação sob autoridade ou controlo do prestador de um serviço de alojamento virtual, se verifica nos casos em que o fornecedor da plataforma em linha pode determinar o preço dos bens e serviços que são oferecidos pelos comerciantes nestes contratos à distância.
  • O considerando 24, por sua vez, aborda a questão das informações que induzam o consumidor médio a acreditar que os bens ou serviços objeto do contrato são fornecidos pela própria plataforma em linha ou por um comerciante que atue sob a sua autoridade ou controlo. O Regulamento indica como possíveis exemplos os casos em que a plataforma em linha não apresenta claramente a identidade do comerciante, se recusa a divulgar a identidade ou os dados de contacto do comerciante até após a celebração do contrato entre este e o consumidor ou comercializa o produto ou serviço em seu próprio nome, em vez de utilizar o nome do comerciante que irá fornecer esse produto ou serviço.

Será necessário, com base em todas as circunstâncias pertinentes e de forma objetiva, determinar se a apresentação é passível de induzir um consumidor médio a acreditar que a informação em causa foi prestada pela própria plataforma em linha ou por comerciantes que atuem sob a sua autoridade ou controlo. Consideramos que a utilização do conceito de consumidor médio nestes considerandos é infeliz, dado os problemas que este conceito tem levando na aplicabilidade da Diretiva 2005/29/CE, que regula as práticas comerciais desleais.

Os prestadores de serviços de intermediação em linha estão também proibidos de utilizar “dark patterns”, isto é, práticas que afetem e distorção os comportamentos dos consumidores, afetando a sua capacidade de realizar decisões autónomas, informadas e livres, graças a funcionalidades, nudges, à estrutura, design da plataforma e interface, com recurso ao tratamento de dados pessoais, considerando 67 e artigo 25.º. Estas práticas têm sido muito debatidas quanto à aplicabilidade da Diretiva 2005/29/CE das práticas comerciais desleais.

Neste sentido, o regulamento impõe ainda obrigações de transparência sobre os anúncios que são apresentados aos utilizadores, assim como os sistemas de recomendação, que apresentam sugestões ou rankings aos utilizadores, com base em decisões algorítmicas arts. 26.º e 27.º. As plataformas em linha devem informar adequadamente os consumidores sobre estas funcionalidades, os principais parâmetros e critérios utilizados, deixando que estes possam customizar, modificar estes sistemas, de acordo com preferências pessoais, 27.º-3.

De forma a assegurar a efetividade do direito do consumo europeu, os prestadores de mercados e plataformas em linha que permitam a celebração de contratos à distância a consumidores, são sujeitos a novas obrigações de due diligence, devendo aplicar os seus melhores esforços na recolha de todas as informações pré-contratuais e dados necessários, como os relacionados com a identidade dos profissionais, de forma a permitir a sua rastreabilidade art. 30.º, no âmbito das diretivas de consumo, nomeadamente a Diretiva 2011/83/EU, considerando 74.

O Regulamento inclui ainda uma série de medidas de forma a reforçar a atuação e cooperação entre entidades reguladoras independentes dos Estados-Membros (de forma a prevenir o fenómeno de bottleneck, causado pelo mecanismo one stop shop das ações por violação do RGPD[1]), assim como normas relacionadas com auditorias e supervisão das plataformas.


[1] Neste fenómeno, as Big Tech colocaram a suas sedes na Irlanda e no Luxemburgo, não só por questões de competitividade fiscal, mas também uma espécie de forum shopping regulatório, não no sentido das normas serem menos exigentes, mas devido à falta da sua efetividade, devido às entidades reguladores destes Estados não terem recursos para todas as queixas colocadas.

Alegações Ambientais e o Ecobranqueamento: a defesa dos direitos dos consumidores no âmbito da transição verde

Legislação

Existe atualmente um crescente impacto da comunicação comercial com recurso a alegações ambientais que visam influenciar as decisões de compra do consumidor. Tornou-se banal depararmo-nos com referências à sustentabilidade ou reciclabilidade de um produto. Proliferaram os selos, logos e certificações. A utilização de expressões como “Green” ou “Eco” foram banalizadas e alegações ambientais genéricas e vagas são muitas vezes uma prática no mercado.

A 30 de março de 2022 foi publicada pela Comissão Europeia, a Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera as Diretivas 2005/29/CE e 2011/83/UE, no que diz respeito à capacitação dos consumidores para a transição ecológica através de uma melhor proteção contra práticas desleais e de melhor informação.

Na preparação da Proposta, foram consultados mais de 12.000 consumidores, empresas, autoridades nacionais dos Estados-Membros e especialistas na área do consumo e Direito do Consumo, tendo a mesma revelado que o receio do ecobranqueamento tem impedido os consumidores de participar mais ativamente na transição verde. A questão da fiabilidade da informação surgiu como a principal questão para o consumidor.

A viabilidade da reparação dos produtos foi identificada como passível de permitir aos consumidores uma escolha de produtos mais sustentáveis e, por sua vez, uma melhor informação sobre a durabilidade dos mesmos foi identificada como a melhor opção para capacitar os consumidores na transição ecológica, permitindo assim uma economia circular.

É de grande importância e de se sublinhar a crescente atenção dada pela Comissão Europeia à temática das alegações ambientais. A Proposta visa, entre outros objetivos, a proteção dos consumidores no âmbito de práticas comercias desleais que induzam o consumidor em erro quanto às suas escolhas de consumo sustentável, reforçando o princípio do direito à informação.

É uma das iniciativas previstas na Nova Agenda do Consumidor e no Plano de Ação para a Economia Circular e dá seguimento ao Pacto Ecológico Europeu, mais conhecido como o Green Deal.

Mais precisamente, a Proposta visa, entre outros, impedir as práticas de ecobranqueamento, de obsolescência precoce e de utilização de rótulos, selos e certificações não fiáveis.

São adicionadas dez práticas comerciais ao elenco constante no anexo I da Diretiva 2005/29/CE que devem ser consideradas desleais em quaisquer circunstâncias, sendo três delas sobre o tema das alegações ambientais.

O foco recai igualmente sobre as informações pré-contratuais, sendo alterada a Diretiva 2011/83/EU. A Proposta introduz os conceitos de durabilidade e reparabilidade dos produtos, temas relacionados com a obsolescência programada/precoce, sendo curiosamente introduzida uma pontuação de reparabilidade. O consumidor é assim capacitado para uma participação mais ativa na economia circular.

No que dirá respeito à durabilidade, passa a ser necessária a prestação de informação sobre a existência e a duração da garantia comercial de durabilidade dos produtos, sempre que o produtor disponibilize essa informação. Notamos que estas alterações são estendidas à celebração de contratos à distância e de contratos celebrados fora do estabelecimento comercial.

Trata-se portanto de uma Proposta com o objetivo claro de contribuição para o bem-estar dos consumidores europeus e para a economia da UE.

No âmbito nacional assinala-se igualmente um crescente foco nas temáticas trazidas pela transição verde.

A Direção-Geral do Consumidor (DGC) é a entidade pública em Portugal que tem por missão a definição e execução da política de defesa do consumidor, sendo responsável pelo acompanhamento e fiscalização da publicidade em Portugal e se tem movimentado numa ótica de sensibilização e informação tanto junto dos profissionais como dos consumidores.

Em Outubro de 2021, foi lançado pela DGC e pela Auto Regulação Publicitária, um guia explicativo, que visa orientar os profissionais para práticas transparentes e capacitar o consumidor para escolhas mais conscientes tendo em conta as implicações ecológicas dos seus hábitos de consumo.

São exemplificadas boas e más práticas, sendo claro que qualquer alegação ambiental deverá ser “verdadeira, precisa e capaz de ser comprovada através de provas científicas”, que por sua vez deverão estar disponibilizadas ao consumidor de forma imediata e junto da alegação em causa, devendo a linguagem ser acessível e clara.

É assim que aguardamos com expectativa as negociações e emendas do Parlamento Europeu e do Conselho, a publicação da Diretiva e a sua posterior transposição, sendo certo que todo o trabalho efetuado a nível Europeu e em Portugal permitirá uma maior capacitação do consumidor para um consumo sustentável, circular e consciente das suas implicações ecológicas.

“Sustainable development is development that meets the needs of the present without compromising the ability of future generations to meet their own needs.” Gro Harlem Brundtland, Líder internacional em desenvolvimento sustentável.

Em busca de um conceito de consumidor vulnerável

Legislação

O Programa do XXIII Governo Constitucional, apresentado e debatido no Parlamento nos dias 7  e 8 de abril de 2022, prevê a definição do Estatuto do Consumidor Vulnerável. A medida, pouco concretizada para já, assenta na fixação de um conjunto de critérios e direitos correspondentes à condição de consumidor vulnerável, o que parece apontar para aprovação de um instrumento legislativo de caráter transversal.

Entre nós, encontramos referência expressa ao consumidor vulnerável no art. 6.º-a) do Decreto-Lei n.º 57/2008, que transpôs para a nossa ordem jurídica a Diretiva n.º 2005/29/CE, relativa às práticas comerciais desleais (PCD).

Apesar de não avançar com uma definição em sentido próprio, o regime das PCD estabelece, com base numa delimitação subjetiva, dois níveis de proteção: um nível genérico, visando proteger todos tipos de consumidores relativamente a práticas comerciais desleais, e uma tutela reforçada, fundamentada na especial fragilidade dos consumidores que integram uma categoria específica, em função de três critérios não taxativos: doença mental ou física, idade ou credulidade.

Porém, enquanto na Diretiva o conceito emerge no art. 5.º-3, funcionando como um critério para a aplicação da cláusula geral do regime, na versão portuguesa, a matéria surge num patamar autónomo, sob a epígrafe “práticas comerciais desleais em especial, no art. 6.º-a), opção sistemática no mínimo discutível.

Na legislação nacional, assinala-se, ainda, uma diferenciação entre consumidores, com base em critérios económicos, nos diplomas que criaram as tarifas sociais de fornecimento de energia elétrica, de gás natural, de água e de serviços de acesso à Internet em banda larga, pese embora as expressões utilizadas sejam distintas[1].

Na mesma senda, também no art. 14.º do Código da Publicidade é possível encontrar regras que disciplinam a publicidade especialmente dirigida a menores, orientadas para proibir práticas que explorem a “vulnerabilidade psicológica”, enquanto caraterística comummente associada a este conjunto de consumidores.

Nos últimos dois anos, fruto da crise sanitária provocada pela pandemia de COVID-19, que colocou em evidência a situação de especial fragilidade de certos grupos de consumidores, a matéria da proteção dos consumidores vulneráveis ganhou novo fôlego.

Com isto em mente, no ponto 4 da Nova Agenda do Consumidor para 2020-2025, apresentada em novembro de 2020, a Comissão Europeia alertou para a necessidade de “dar resposta às necessidades específicas dos consumidores”, considerando que “certos grupos de consumidores podem, em determinadas situações, ser particularmente vulneráveis e necessitar de salvaguardas específicas”, numa abordagem muito voltada para os casos de endividamento.

Recentemente, no passado dia 2 de março, entrou em vigor em Espanha a Ley 4/2022, de 25 de febrero, relativa à proteção dos consumidores e utilizadores em situações de vulnerabilidade social e económica.

Em consonância com o regime especial, criado no contexto pandémico pelo Real Decreto-ley 1/2021, de 19 de enero, este diploma introduziu o art. 3.º- 2 na Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuarios, que passou a incluir a definição de consumidor vulnerável, integrando as pessoas singulares que, individual ou coletivamente, devido às suas características, necessidades ou circunstâncias pessoais, económicas, educacionais ou sociais, se encontram numa situação especial de subordinação, indefensabilidade ou falta de proteção que as impede de exercer os seus direitos como consumidores em condições de igualdade.

Assim, no art. 8.º-1 surgem elencados os direitos básicos dos consumidores e no art. 8.º-2 encontramos agora uma referência expressa a esta categoria, determinando que os direitos dos consumidores vulneráveis devem beneficiar de uma atenção especial, que será coberta pelos regulamentos e pelas regulamentações sectoriais aplicáveis em cada caso.

Já no Brasil, ordenamento no qual vigora a figura da hipervulnerabilidade por a vulnerabilidade ser encarada como uma caraterística ínsita no próprio conceito de consumidor, o art. 39.º, IV, do Código de Defesa do Consumidor proíbe o fornecedor de produtos ou serviços de “(…) prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços”.

Como pode constatar-se, tanto o legislador brasileiro como o espanhol optaram por reconhecer a existência de grupos que carecem de especial proteção em função de critérios qualificadores ricos em conceitos indeterminados, cujo preenchimento caberá ao intérprete-aplicador.

Conforme ficou patente, o grupo dos consumidores vulneráveis está longe de ser homogéneo. Com efeito, a vulnerabilidade assume contornos diversos e pode manifestar-se em diversos planos − socioeconómico, técnico, jurídico, informacional, psicológico, digital – e até de forma cumulativa.

Além disso, não se trata de uma realidade estanque: um consumidor pode encontrar-se numa situação de particular vulnerabilidade exclusivamente numa determinada conjuntura em função de circunstâncias que podem alterar-se no tempo e no espaço.

A natureza dinâmica do conceito reflete-se, também, nos novos desafios que o consumidor enfrenta em virtude da evolução tecnológica, que podem, por exemplo, realçar fragilidades específicas do ambiente digital[2].  

Neste quadro, cremos que a vulnerabilidade deve ser vista não como uma condição, mas como um estádio que pode ou não ser temporário, e, ainda, como um espectro, contemplando diversos graus de incidência[3].

De resto, cremos que aqui poderá residir uma das maiores dificuldades a enfrentar pelo nosso legislador no que toca à densificação do conceito: a vulnerabilidade é um fenómeno multidimensional e mutável, o que pode conviver mal com uma lógica de cristalização normativa. Aguardamos, por isso, com natural expectativa os desenvolvimentos que se avizinham neste domínio.


[1] No art. 5.º do Decreto-Lei n.º 138-A/2010, que fixa a tarifa social de fornecimento de energia elétrica e no art. 2.º do Decreto-Lei n.º 101/2011, que cria a tarifa social de fornecimento de gás natural, o legislador refere-se a “clientes finais economicamente vulneráveis”, no art. 2.º do Decreto-Lei n.º 147/2017, que consagra o regime da tarifa social relativa à prestação dos serviços de águas, recorre-se ao conceito de “pessoas singulares que se encontrem em situação de carência económica” e no art. 4.º do Decreto-Lei n.º 66/2021, que estabelece a tarifa social de internet, determina-se que a medida se destina a “consumidores com baixos rendimentos ou com necessidades sociais especiais”.

[2] Nas Orientações sobre a interpretação e a aplicação da Diretiva 2005/29/CE, a Comissão Europeia refere que “as formas pluridimensionais de vulnerabilidade são particularmente acentuadas no ambiente digital, que se caracteriza cada vez mais pela recolha de dados sobre características sociodemográficas, mas também por características pessoais ou psicológicas, tais como interesses, preferências, perfil psicológico e humor”.

[3] Neste sentido, relatório final do estudo Consumer vulnerability across key markets in the European Union, que examinou a incidência da vulnerabilidade na UE a 28 e na Islândia e Noruega, divulgado pela Comissão Europeia, em 2016.