Inteligência Artificial – Recomendações universais da UNESCO em discussão

Doutrina, Legislação

A UNESCO apresentou o draft da sua “Recommendation on the Ethics of Artificial Intelligence (AI)” que, a ser aprovado, será o primeiro instrumento normativo global sobre a matéria.

O Comité Especial Intergovernamental de peritos da UNESCO (CEI) discutiu o documento numa primeira reunião, entre 26 e 30 de abril, a que se seguirá outra, prevista para entre 21 e 25 de junho. O vídeo dos trabalhos encontra-se disponível aqui, nas seis línguas oficiais (inglês, francês, espanhol, russo, árabe e chinês).

Esta iniciativa ocorre poucos dias após a Comissão Europeia anunciar o novo pacote legislativo que contém uma Proposta de Regulamento relativo à Inteligência Artificial (IA), com o primeiro quadro jurídico comunitário sobre a matéria, aqui divulgado e algum tempo depois da União Europeia aprovar as suas próprias “Ethics Guidelines on Artificial Intelligence”, elaboradas pelo grupo de peritos que criou para o efeito, o “High Level Expert Group on AI”, apresentadas neste blog aqui.

Na sua 40ª sessão, em novembro de 2019, a Conferência Geral da UNESCO decidiu desenvolver um instrumento de definição de padrões internacionais sobre a ética da Inteligência Artificial tendo, desde então, liderado um esforço multidisciplinar, multicultural e pluralista que permitiu a elaboração de um relatório preliminar e um primeiro draft da Recomendação. Em setembro de 2020, foi distribuído aos Estados Membros para recolha dos seus comentários que foram tidos em consideração para a preparação do relatório final e do draft da Recomendação sobre a Ética da IA agora em discussão.

Nas reuniões do CEI será consensualizado o texto que constituirá o draft final da Recomendação, a ser submetido aos Estados Membros para adoção na 41ª sessão da Conferência Geral da UNESCO.

Se adotada, a Recomendação será o primeiro instrumento normativo global neste campo de crítica importância em todo o mundo.

A União Europeia pretende aprovar um Regulamento relativo à Inteligência Artificial, de aplicação tendencialmente universal, como tem vindo a acontecer com o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), com impacto em países terceiros que se relacionam com a UE e já tem as suas Orientações relativas à Ética na Inteligência Artificial.

A UNESCO prepara Recomendações universais sobre o tema.

Destacam-se, como diferenças relevantes entre o futuro Regulamento e a futura Recomendação, o facto de aquele ser vinculativo e esta indicativa, bem como o facto de o Regulamento assentar numa análise de risco (risk assessement), excluindo da sua aplicação o que considera ter risco mínimo ou nenhum e a Recomendação abranger nas suas considerações éticas toda a IA, independentemente do nível de risco que comporte.    

A UNESCO enuncia a ideia de soberania da informação (data sovereignty) e a necessidade de a manter, a par do incentivo à partilha de informação (data sharing).

Esta é a quadratura do círculo que todos procuram. É preciso que os dados circulem, por serem fundamentais à eficácia da inteligência artificial e ao desenvolvimento dos negócios e da economia e é desejável que cada individuo decida sobre os seus dados e seja protegido. O ponto final aqui serve para evitar avançar para as questões críticas “protegido de quem e de quê”, já que essas além de poderem não gerar consensos, são essencialmente desconhecidas e em permanente e muito rápida evolução.

O fim (tentado) da era das “letras pequeninas”

Legislação

Já em vários textos deste Blog falámos do regime das cláusulas contratuais gerais enquanto instrumento de proteção do consumidor, contraente mais fraco, que merece ampla proteção nestas situações.

Relembrando, as cláusulas contratuais gerais são, nos termos do art. 1.º do DL 446/85 de 25 de outubro (LCCG), as cláusulas elaboradas sem prévia negociação individual, que o proponente se limita a subscrever ou aceitar. A estas, aplica-se o regime da LCCG, sobre o qual incidiu a alteração de que aqui se falará.

Precisamente por não haver negociação individual, são impostos especiais deveres de informação e comunicação, nos arts. 5.º e 6.º, sob pena de exclusão das cláusulas do contrato, por força do artigo 8.º. 

A este propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação de 28 de janeiro de 2021, já comentado neste blog, e que segue uma linha jurisprudencial já bem sedimentada, relembrou que não basta cumprir formalmente os deveres de informação, expondo as informações relevantes sem mais. É necessário que esse dever seja cumprido segundo critérios de razoabilidade, cumprindo materialmente o seu propósito de dar a conhecer todos os aspetos do contrato ao consumidor. Afinal, é essa a sua ratio. 

Infelizmente, nestes contratos de adesão existe uma prática muito frequente de incluir em letras de menor tamanho informações bastante relevantes. Um consumidor medianamente atento provavelmente não irá reparar nestas cláusulas, pequenas no seu tamanho, e com um grande impacto normalmente associado.

Até agora esta questão das “letras pequeninas” tem sido enquadrada no incumprimento dos deveres de informação e comunicação, previstos nos arts. 5.º e 6.º. Neste sentido, veja-se, entre muitos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de maio de 2008, ou o  Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13 de outubro de 2016

No entanto, foi esta semana aprovado na Assembleia da República o Projeto de Lei nº 532/XIV/2.ª (BE e PEV), que “procede ao reforço da transparência e dos efeitos da proibição de cláusulas gerais nos contratos de adesão”, alterando pela quarta vez o Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro (LCCG). 

No art. 1º deste Projeto de Lei, enuncia-se que esta alteração visa impor que as cláusulas dos contratos que incluem cláusulas contratuais gerais sejam redigidas com letra não inferior a tamanho 11, ou não inferior a 2.5 milímetros, e com um espaçamento entre linhas não inferior a 1.15. 

Para tanto, é adicionada ao art. 21.º, sob a epígrafe “cláusulas absolutamente proibidas”, a alínea i), acrescentando ao seu elenco as cláusulas que violem as indicações objetivas referidas supra. 

Vejamos: nos termos da LCCG, são proibidas as cláusulas contrárias à boa fé, à luz do art. 15.º. Trata-se, neste caso, de um critério subjetivo, cabendo ao intérprete a tarefa de, caso a caso, verificar se determinada cláusula contraria este princípio geral de direito.

Nas relações com consumidores finais, temos ainda as cláusulas absolutamente proibidas (art. 21.º) e as cláusulas relativamente proibidas (art. 22.º).

Ao passo que as cláusulas relativamente proibidas permitem ao tribunal a sua apreciação casuística, ainda
que segundo um modelo objetivo, as cláusulas absolutamente proibidas são-no independentemente de valoração judicial, desde que constem do elenco previsto. 

Assim, nas cláusulas absolutamente proibidas não há que fazer um juízo subjetivo. Se a situação se elenca num dos casos previstos nesse artigo, a cláusula será necessariamente nula, por força do art. 12.º. 

Aplaudimos a intenção do legislador que, ao incluir esta prática no elenco do art. 21.º, tentou resolver uma situação que já há muito merecia uma tutela mais efetiva e, de certo modo, mais objetiva. Contudo, a esta alteração aplicar-se-ão os habituais problemas que decorrem de criar critérios objetivos para situações amplíssimas.

É que convém relembrar que nada obsta a que, por exemplo, de um cartaz constem determinadas cláusulas contratuais, que serão gerais por não haver prévia negociação. Quer isto dizer que, por exemplo, cláusulas de fidelização podem estar expostas em letras pequenas no referido cartaz à porta da loja, sendo o consumidor atraído pelo preço convidativo que daí consta em letras muito maiores. 

Assim, aplicando-se as novas regras estes casos, será proibida a utilização de tamanho inferior a 11 ou 2.5 milímetros. Porém, será que num cartaz esse tamanho assegura o efetivo conhecimento da cláusula por parte do consumidor? Cremos que não. Possivelmente esta será uma das estratégias utilizadas para continuar a dissimular informações importantes neste tipo de contratos. 

 Posto isto, e para concluir, o primeiro passo para a mudança consiste em reconhecer a sua necessidade. O Projeto de Lei agora aprovado é, pelo menos, o início de uma consciencialização da frequência e nocividade destas práticas, já há muito alertada pela doutrina e pela jurisprudência. Se, finalmente, será capaz de cabalmente proteger os consumidores da sua verificação? Temos as nossas dúvidas, mas mantemo-nos otimistas. 

O papel da propriedade industrial na proteção do consumidor

Legislação

A propriedade industrial é uma área do direito da propriedade intelectual que visa “garantir a lealdade da concorrência, pela atribuição de direitos privativos sobre os diversos processos técnicos de produção e desenvolvimento da riqueza”[1]. A proteção deste tipo de criações intelectuais é concedida através de vários institutos jurídicos, nomeadamente a patente, a marca, o registo de desenhos e modelos industriais, indicações geográficas, entre outros. Sendo uma área do direito que interage com várias outras, importa perceber o papel que a propriedade industrial tem na proteção dos consumidores.

O principal instrumento legal relativo à propriedade industrial em Portugal é o Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de dezembro, que aprova o novo Código da Propriedade Industrial, transpondo as Diretivas (UE) 2015/2436 e (UE) 2016/94. Neste, são várias as referências à especial atenção que tem de ser garantida ao consumidor.

Vejamos.

O registo de uma marca é um ato administrativo realizado junto do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e que está associado a vários fundamentos e exige o cumprimento de certas formalidades. Um dos motivos para recusa do registo da marca será a tentativa de induzir o consumidor em erro através da tentativa da reprodução de marca anteriormente registada para produtos (ou serviços) idênticos ou afins que poderiam induzir o consumidor em erro ou confusão. De igual modo é recusado o registo de uma marca que apresente elementos (como a bandeira nacional) que poderiam levar o consumidor a crer que se trata de um produto ou serviço proveniente de uma entidade pública nacional (art. 231.º-2-a)). Estas disposições legais não são exclusivas às marcas, existindo normas semelhantes relativas aos logótipos (art. 289.º-1-b)) e indicações geográficas (art. 302.º-2).

Para além de marcas que possam tentar induzir o consumidor em erro por reproduzirem outras marcas, há a possibilidade das próprias marcas serem enganosas: uma marca com o nome de “Motas Novas” que só venda motociclos usados estará, naturalmente, a distorcer a realidade dos seus produtos. Para estas situações a lei prevê um regime diferente do anterior: a marca deverá ter o seu registo caducado se “tornar suscetível de induzir o público em erro, nomeadamente acerca da natureza, qualidade e origem geográfica desses produtos ou serviços, no seguimento do uso feito pelo titular da marca, ou por terceiro com o seu consentimento, para os produtos ou serviços para que foi registada” (art. 268.º-2-b)). Como tal, a expectativa do consumidor é essencial para que a marca seja um elemento que identifique e distinga produtos e serviços.

Além de incluir o consumidor em normas de direito substantivo, é interessante ver que a lei também dá relevância ao consumidor em questões processuais.

Existe a possibilidade de apresentar junto do INPI um pedido de declaração de nulidade de um registo de marca (art. 262.º) ou de um desenho ou modelo (art. 204.º) quando existirem fundamentos para invalidar esse mesmo registo. Tanto num caso como no outro, a lei considera que qualquer pessoa (inclusive um consumidor[2] – individualmente ou representado através de uma associação de consumidores, desde que tenha capacidade para demandar ou ser demandado/a), deverá ser encarado como um interessado com legitimidade. Não só os consumidores são interessados com legitimidade num processo de nulidade de registo de marca ou de desenho ou modelo, como também o são na determinação de sanções acessórias. Quando os tribunais são chamados a decidir num processo judicial relacionado com esta matéria, podem aplicar sanções acessórias relativas ao destino dos bens em relação aos quais tenha havido violação do direito de propriedade industrial. Estas medidas terão de ser tomadas de forma adequada e proporcional, tendo sempre em conta os legítimos interesses de terceiros, em particular os interesses dos consumidores (art. 348.º).

Todos os produtos e serviços adquiridos por um consumidor são (diretamente ou indiretamente) criações intelectuais. Não só o produto final como a imagem. O desenho, a marca e o logótipo do produtor também o são. Desta forma, é essencial evitar que haja produtos diferentes a serem dissimulados como sendo produtos iguais. Não só isto cria problemas a nível económico como também poderá causar danos gravíssimos nos consumidores: alimentos que usam a imagem ou marca de outros produtos com padrões, qualidades e naturezas diferentes são um risco de saúde para os consumidores que possam ter alergias alimentares ou necessidade de outros cuidados especiais. Como tal, é percetível a importância que a lei dá à proteção dos consumidores, reconhecendo a urgência de garantir que estes são devidamente informados. O direito à informação dos consumidores vem previsto no art. 60.º-1 da Constituição da República Portuguesa, que refere que “os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação […]”[3]. É com base neste preceito constitucional que a lei procura garantir que a informação à qual o consumidor tem acesso é autêntica, nomeadamente na informação que o consumidor encontra quando interage com um produto ou serviço. Caberá ao Estado e às autoridades garantir que a informação é verdadeira e precisa, atuando na primeira linha de combate às manifestações de propriedade industrial que possam vir a confundir o consumidor ou a induzi-lo em erro.


[1] Art. 1.º do DL n.º 110/2018, de 10 de dezembro. Todas as referências legais neste texto serão relativas a este diploma.

[2] Apesar do legislador não utilizar o conceito de consumidor, “qualquer pessoa singular ou coletiva” com legitimidade pode apresentar o pedido junto do INPI. Como tal, consumidores e não consumidores estarão abrangidos neste conceito amplo.

[3] A proteção dos consumidores no texto constitucional em vigor foi anteriormente abordada neste blog aqui.

Inteligência Artificial – Regulamento(s) e Plano coordenado da União Europeia

Legislação

A Comissão Europeia, conforme se previa e noticiava neste blog, anunciou ontem um novo pacote legislativo que contém uma Proposta de Regulamento relativo à Inteligência Artificial (IA), com o primeiro quadro jurídico sobre a matéria. A União Europeia (UE) optou, como vem sendo regra, pelo regulamento em vez da diretiva.

O referido pacote inclui também um Regulamento sobre máquinas, revendo a Diretiva existente sobre a matéria, de 2006[1], bem como um Plano coordenado entre os Estados-membros relativo à IA, que tem em vista a liderança global pela União Europeia no que diz respeito à inteligência artificial confiável.

Todo este esforço visa tornar a Europa apta para a era digital, reforçando a confiança de todos, de modo a que tanto empresas, como consumidores, habitem e desenvolvam em segurança transações comerciais online, desenvolvendo o mercado único europeu num espaço diferente, paralelo, que tem vindo a ganhar terreno ao comércio tradicional. Desde há vários anos que a União Europeia tem consciência de que a Economia Digital é um dos campos em que poderá ter um crescimento significativo, já que as suas possibilidades de competir globalmente nos setores clássicos da agricultura, da indústria e, até, dos serviços se vão apresentando limitadas.

Observando-se o esforço e resultados, numa perspetiva global do mundo, dir-se-ia, no mínimo, que não vai adiantada.

Margrethe Vestager, vice-presidente executiva para uma Europa adequada para a era digital, afirmou que “On Artificial Intelligence, trust is a must, not a nice to have.”, manifestando a vontade da União Europeia de, com estas regras, conseguir estabelecer novos padrões globais para uma inteligência artificial confiável, salvaguardando-se a segurança e os direitos fundamentais dos cidadãos, enquanto se garante uma UE competitiva.  

As novas regras, que constando de Regulamento, serão aplicadas diretamente da mesma forma, em todos os Estados-Membros, assentam numa abordagem baseada no risco. Os sistemas de IA de risco inaceitável são banidos. Estes são os que representam uma clara ameaça à segurança, à subsistência e aos direitos das pessoas, nomeadamente sistemas de AI que manipulem o comportamento, ou que permitam que os governos atribuam “pontuações sociais” às pessoas (tendo aqui provavelmente em vista a recusa de realidades como o denominado Crédito Social chinês, apresentado neste blog aqui).

Os sistemas de IA identificados como de alto risco são sujeitos a obrigações estritas antes de serem colocados no mercado e incluem tecnologia de IA usada, por exemplo, em infraestruturas críticas ou produtos que podem colocar em risco a vida e a saúde das pessoas (Ex.: transportes, cirurgias assistidas por robôs) e em decisões que podem determinar a sua vida (Ex.: pontuação em exames, seleção de candidaturas a emprego ou crédito, administração da justiça).

Nestes casos, quando se estiver perante sistemas de IA de alto risco devem ser implementadas fortes medidas com vista à avaliação adequada do risco e à sua mitigação como, por exemplo, a verificação da qualidade dos dados usados e a possibilidade de se perceber como se chegou aos resultados apresentados (a denominado descodificação das black boxes da IA), segurança, prestação de informação e supervisão humana.

É especialmente determinado que todos os sistemas remotos de identificação biométrica são considerados de alto risco e sujeitos a requisitos especialmente rigorosos.

Sendo qualificado como “limitado” o risco dos sistemas de IA, haverá obrigações específicas de transparência. Por exemplo, ao usar chatbots, os usuários devem estar cientes de que estão a interagir com uma máquina para que possam tomar uma decisão informada sobre se pretendem continuar ou não com a interação.

Se o risco for qualificado como “mínimo”, o que acontecerá com a maior parte dos sistemas de IA, o regulamento não intervém, já que será mínimo ou nenhum o risco para os direitos e segurança dos cidadãos.

Em termos de governação, a Comissão propõe que as autoridades nacionais competentes de fiscalização do mercado supervisionem as novas regras, sendo criado um Comité Europeu de Inteligência Artificial para facilitar a sua implementação, bem como para impulsionar o desenvolvimento de normas para IA e de códigos de conduta voluntários.

Estas medidas são o culminar de um caminho, resumidamente apresentado aqui e aqui

As intenções são boas, dir-se-iam até ótimas.

Desde já, levantam-se-nos três questões. Primeira, quanto mais tempo vai passar até que existam as regras propriamente ditas, isto é, até à finalização do processo legislativo e à entrada em vigor dos diplomas que vierem a ser aprovados? Depois disso, quanto tempo vai demorar a construção da estrutura burocrática que, inevitavelmente, tudo na UE pressupõe? Por fim e mais importante, como correrá a operacionalização das regras, a começar pela qualificação, na prática, do risco de um determinado sistema de IA? Esse é o pressuposto da determinação do modo como vai ser tratado e de como, concretamente, vai existir e funcionar.


[1] Diretiva 2006/42/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Maio de 2006, relativa às máquinas.

Decreto-Lei n.º 26-A/2021 – Espetáculos, festivais e concertos em tempos de pandemia (ainda os de 2020, os de 2021 e já os de 2022)

Legislação

O Decreto-Lei n.º 26-A/2021, de 5 de abril, vem alterar pela quinta vez o Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março (comentado no nosso blog aqui e aqui). Este novo diploma surge com o objetivo de adequar as medidas excecionais de âmbito cultural e artístico à evolução pandémica, em especial no que se refere aos espetáculos não realizados.

Vejamos o que mudou. No que se refere à janela temporal, o atual Decreto-Lei estabelece no seu artigo 2.º que o mesmo é aplicável ao “reagendamento ou cancelamento de espetáculos não realizados, por determinação legislativa ou administrativa de fonte governamental, bem como da autoridade nacional de saúde”, ou seja, não existe aqui um limite temporal. O único limite imposto aparece no art. 4.º-2, que estabelece que o espetáculo reagendado tem de ocorrer até 31 de dezembro de 2022. Isto significa que qualquer espetáculo que não tenha podido ou não se possa realizar devido à crise pandémica por determinação ou recomendação de qualquer entidade referida no art. 2.º, gozará do regime deste Decreto-Lei – nunca esquecendo que este é um regime excecional.

Quer isto dizer que, aos espetáculos não realizados neste período não se aplica art. 9.º-1-a) do Decreto-Lei n.º 23/2014, pelo que o portador do bilhete não pode exigir de imediato a restituição da importância correspondente ao preço dos bilhetes, salvo se o evento for cancelado.

O n.º 1 do art. 4.º vem estabelecer que os espetáculos abrangidos pelo Decreto-Lei em questão devem ser, sempre que possível, reagendados até 14 dias úteis antes da data prevista para a realização do evento, “sob pena de o adiamento ser havido, para todos os efeitos, como cancelamento”. Ou seja, em caso de incumprimento deste prazo por parte dos promotores do evento, os portadores de bilhete terão direito ao reembolso do valor dos mesmos, a realizar no prazo máximo de 60 dias úteis a contar dessa data, nos termos do art. 5.º-3. Aqui parece-me que o objetivo desta alínea será reforçar e garantir que os promotores dos espetáculos atuam segundo as regras da boa fé, protegendo-se o consumidor de quaisquer abusos e surpresas. Claro que a regra geral continua a ser a do reagendamento do espetáculo, mas este deverá ocorrer, como já foi referido, até ao dia 31 de dezembro de 2022, eliminando-se a regra do “prazo máximo de um ano após a data inicialmente prevista”, que constava do n.º 2 do art. 4.º, presente na versão anterior do diploma.

O art. 4.º do Decreto-Lei, na versão atual, continua a consagrar e a fazer prevalecer o critério da distância, uma vez que o espetáculo não poderá ser marcado para um local a mais de 50 quilómetros do local inicialmente previsto.

Importa agora abordar os aditamentos mais relevantes introduzidos por este novo diploma. No art. 5.º-B levanta-se a proibição de realização de festivais e espetáculos de natureza análoga no ano de 2021, sendo que estes deverão seguir as orientações emitidas pela DGS face à evolução da pandemia da doença COVID-19. No n.º 2 permite-se a promoção de eventos-piloto, em parceria com a DGS, para a definição das orientações técnicas relativas à ocupação de lugares, lotação e distanciamento físico dos espectadores. No n.º 3 estabelece-se que todos os envolvidos nos espetáculos podem ser sujeitos à realização de testes de diagnóstico à COVID-19. No final do art. 5.º-B estabelece-se que os espetáculos reagendados devem ocorrer até 31 de dezembro de 2022.

Quanto ao art. 5.º-C, estabelece-se que o reagendamento de espetáculos, festivais e espetáculos de natureza análoga inicialmente agendados para o ano de 2020 e que ocorram apenas em 2022 dá lugar à restituição do preço do bilhete de ingresso ao respetivo portador, nos termos previstos na norma. Assim, “o portador do bilhete tem direito a solicitar a devolução do respetivo preço no prazo de 14 dias úteis a contar da data prevista para a realização do evento no ano de 2021”. Por outro lado, “na falta de pedido de reembolso, nos prazos referidos, considera-se que o portador do bilhete ou do vale aceita o reagendamento do espetáculo, festival ou espetáculo de natureza análoga sem direito ao reembolso do respetivo valor”.

Cumprimento da obrigação de fornecimento de conteúdos e serviços digitais

Legislação

Nos termos do seu art. 1.º, a Diretiva (UE) 2019/770 estabelece, entre outras, regras relativas “ao fornecimento de conteúdos ou serviços digitais”, no sentido de cumprimento da obrigação de fornecimento por parte do profissional, e “aos meios de ressarcimento em caso (…) de não fornecimento e as modalidades de exercício dos mencionados meios de ressarcimento”. A obrigação de fornecimento aparece no diploma estruturalmente separada da obrigação de fornecer os conteúdos ou serviços digitais em conformidade com o contrato, outra matéria nele tratada, aliás até com mais profundidade. Neste texto aborda-se apenas a obrigação de fornecimento.

No que respeita ao contrato de compra e venda, o “fornecimento” propriamente dito pode ser enquadrado no conceito de “entrega”, matéria que não é tratada pelo Diretiva (EU) 2019/771. Isto porque vários aspetos do regime da compra e venda já se encontravam abrangidos por outra diretiva (v. arts. 17.º e segs. da Diretiva 2011/83/UE), incluindo um artigo sobre a entrega (art. 18.º).

Aos contratos de fornecimento de suportes materiais que funcionam exclusivamente como meio de disponibilização de conteúdos digitais (por exemplo, CD, DVD, etc.), que são qualificados como contratos de compra e venda de coisa corpórea, aplica-se o art. 18.º da Diretiva 2011/83/UE, em matéria de entrega, o que justifica a não aplicação das regras que, na Diretiva (EU) 2019/770, regulam esta matéria (arts. 5.º e 13.º), como expressamente resulta do seu art. 3.º-3 (v. também consid. 20).

O art. 5.º trata das modalidades e do prazo do cumprimento da obrigação de fornecimento dos conteúdos e serviços digitais, entendida como a obrigação principal que recai sobre o profissional (consid. 41).

O art. 5.º-1 começa por determinar que o profissional tem a obrigação de fornecer os conteúdos ou serviços digitais ao consumidor. O n.º 2 esclarece quando é que se considera cumprida esta obrigação.

Nos termos do art. 5.º-2, considera-se cumprida a obrigação se o consumidor puder utilizar os conteúdos ou serviços digitais em conformidade com o contrato sem estar dependente de qualquer ato do profissional. Podemos imaginar vários casos em que tal sucede:

  • o conteúdo digital é disponibilizado ao consumidor (por exemplo, enviado por e-mail);
  • o consumidor descarrega o conteúdo digital numa página ou aplicação (podendo estas ser do profissional ou de terceiro, nomeadamente uma plataforma digital ou um prestador de serviços de alojamento em nuvem);
  • o consumidor acede ao conteúdo ou serviço digital numa página ou aplicação (podendo também estas ser do profissional ou de terceiro).

No caso de ser acordado, por opção do consumidor, que o conteúdo ou serviço digital ficará disponível para descarregar ou aceder numa página ou aplicação de um terceiro, o profissional cumpre a sua obrigação de fornecimento se colocar o conteúdo ou serviço digital acessível nessa página ou aplicação.

Se o consumidor não tiver optado especificamente por descarregar ou aceder ao conteúdo ou serviço digital junto de um terceiro, à qual é equiparada a situação em que não lhe foi apresentada outra opção em alternativa (v. consid. 41), considera-se cumprida a obrigação apenas quando o conteúdo ou serviço digital é disponibilizado ao consumidor ou este a ele acede. Não basta que o objeto do contrato esteja na página ou plataforma, sendo necessário que o consumidor consiga utilizá-los em conformidade com o contrato.

A Diretiva refere-se a “instalação física ou virtual”, o que parece ir mais além do que as páginas ou plataformas a que aludimos nos parágrafos anteriores. Será uma situação mais rara aquela em que o consumidor acede a conteúdos ou serviços digitais numa instalação física.

Relativamente ao momento do fornecimento, o art. 5.º-1 estabelece que este deve realizar-se, salvo acordo em contrário, “sem demora indevida”. A referência a “após a celebração do contrato”, associada à utilização do conceito indeterminado de “demora indevida” parece-nos impor, na verdade, como regra geral supletiva, o fornecimento imediato do conteúdo ou serviço digital no momento imediatamente seguinte ao da conclusão do contrato. Isto tendo em conta, como se pode ler no consid. 41, “as práticas do mercado e as possibilidades técnicas”, abrindo-se assim um certo “grau de flexibilidade”. Se as partes estipularem um prazo para o fornecimento, é nesse prazo que os conteúdos ou serviços digitais devem ser fornecidos.

Das Diretivas aos Regulamentos – Em busca da União pela regulamentação quase-federal

Legislação

A crescente opção da União Europeia pelos Regulamentos é um sinal da dificuldade em conjugar políticas e interesses nacionais, acordando no que pode ser comum, deixando espaço à diversidade. A diferença principal entre a Diretiva e o Regulamento é que aquela estabelece um regime consensual dando margem, maior ou menor, a que os Estados-membros acomodem as suas diferenças. Essa margem origina, como seria de esperar, discrepâncias entre ordenamentos jurídicos nacionais, o que dificulta o “transnacional”. O Regulamento colmata essas diferenças, estabelecendo regimes jurídicos diretamente aplicáveis e obrigatórios para todos os Estados-Membros.

Esta tendência tem vindo a aumentar e a consciência de que existe e das suas consequências é, também, crescente, constituindo o final de 2020 uma espécie de apoteose.

Destaca-se, em vigor e pela atenção que tem vindo a despertar, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD)[1].

Destacam-se, pela dimensão e previsível impacto, as recentes Propostas apresentadas, em 24 de setembro de 2020, no âmbito do Pacote Financeiro Digital (PFD)[2] que inclui, entre outros documentos, a Proposta de Regulamento relativo aos Criptoativos (Markets in Crypto Assets – MiCA)[3], a Proposta de Regulamento DLT, relativo a um regime-piloto para as infraestruturas de mercado baseadas na tecnologia de registo distribuído e a Proposta de Regulamento relativo à resiliência operacional digital do setor financeiro (Digital Operational Resilience Act – DORA), bem como as apresentadas em 15 de dezembro de 2020, no âmbito das novas regras sobre serviços e mercados digitais, que incluem a Proposta de Regulamento Serviços Digitais (DSA) e a Proposta de Regulamento Mercados Digitais (DMA)[4].

Este caminho, da Diretiva para o Regulamento, revela uma dificuldade de base da União Europeia que, tudo indica, poderá levar ao seu fim.

A atual União Europeia é fruto de uma espécie de milagre originário que mostra até que ponto as pessoas conseguem ser sensatas.

Vencedores e vencidos europeus, da Segunda Guerra Mundial, uns e outros quase totalmente destruídos, olharam para a origem do problema, constatando que boa parte se situava na bacia do Ruhr, rica em carvão e ferro (minério de base na liga de aço), fundamentais ao normal funcionamento e desenvolvimento das economias resultantes de uma revolução industrial que assentava grandemente nessas matérias-primas. A região fica situada na Alemanha, Ruhr é um rio afluente do Reno, que desagua na cidade de Duisburgo, próximo de Düsseldorf, muito perto das fronteiras com a Holanda e a Bélgica, pouco longe do Luxemburgo e de França. No final da Primeira Guerra Mundial, vencidos os alemães – em cumprimento das imposições do Tratado de Versailles, de 1919, que oficialmente lhe pôs fim – foi a região ocupada por tropas belgas e francesas. A vontade e necessidade de aceder à sua riqueza foi um ponto relevante na tensão e conflitualidade que acabou por culminar no conflito mundial de 39-45.

Por isso, saídos da guerra desfeitos, liderados por gigantes visionários, a França, os países do Benelux (Holanda, Bélgica e Luxemburgo), a Alemanha Ocidental e a Itália assinaram, em 1951, o Tratado de Paris que instituiu a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. Até aqui, embora grandioso, ainda se poderia dizer que seria uma questão de sobrevivência básica, mas decidiram ir muito mais longe criando em 1957, com o Tratado de Roma, a Comunidade Económica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia da Energia Atómica (CEEA ou Euratom), colocando assim a nova e catastrófica energia no seu âmbito.

No princípio e durante algum tempo a regra era a da unanimidade na tomada de decisões e os Tratados eram fundamento direto de muito do que se decidia. O Tratado de Maastricht (vale a pena ver no mapa onde fica a cidade), também denominado Tratado da União Europeia, os sucessivos alargamentos, com a sempre crescente necessidade de procurar acordos entre países cada vez mais diversificados, foi tornando mais difícil o governo da União. A hipótese de transformação num Estado Federal, estrutura já muito testada e com sucesso pelo mundo, foi colocada e rejeitada. Os Estados que compõem a União Europeia, na sua maioria, são antigos e têm uma forte identidade nacional. Este orgulho nacional impediu-os de aceitar disporem de parte da sua soberania a favor de um Estado Federal que integrariam e levou, recentemente, à saída inusitada do Reino Unido. A bem do comércio, a livre circulação foi sendo conseguida, foi boa a adesão ao sistema Euro e vários obstáculos vão sendo transpostos. 

O abandono da unanimidade das decisões, que originaria menor necessidade de consenso, foi contrabalançado pelo aumento de membros, com perfis muito diversificados.

Na legislação, a árdua negociação e a busca do acordo, sempre foi notória pela existência de considerandos e pela consagração de elevado número de exceções praticamente a consumir as regras.

As alterações geopolíticas das últimas décadas têm vindo a colocar a Europa numa situação delicada. À queda dos impérios do Ocidente seguiu-se a fulgurante (re)ascensão do Oriente, em que a China assume papel de grande destaque, o que só pode causar surpresa se a sua milenar história for ignorada, ofuscada pelos comparativamente minúsculos finais do século XIX e século XX. Alguém disse “A América inventa, a China copia, a Europa regula”. Já não é assim, a China (re)começou a inventar.

Neste contexto, a desunida União Europeia sabe que precisa de se manter junta e coesa para ter dimensão minimamente comparável e de rapidez semelhante à originada pela vitalidade americana e o dirigismo chinês. Sabe, também, que precisa de inovação e digitalização para ser economicamente competitiva e que, enquanto desenvolve um mercado comum com condições para ter uma palavra a dizer na nova ordem económica e política global, tem de preservar os direitos fundamentais, em geral, e os direitos dos consumidores, em particular, que são parte integrante da sua natureza e da sua identidade comum. 

A crescente adoção, pelo menos em áreas estratégicas, de Regulamentos pela UE, parece uma manifestação clara daquelas necessidades. É o instrumento com efeito “quase-federal” e menos lento que tem disponível. Assim se explicará a cascata Regulamentar em curso.

O sucesso, a julgar pelo RGPD, está longe de ser garantido. Pode ser que funcione com os futuros regulamentos prestes a sair da linha de montagem e que, em grande medida, contam conter Big Tech’s de fora da Europa. Ao ritmo a que estas andam não será tarefa fácil.


[1] Já abordado neste blog aqui.

[2] Já abordado neste blog aqui.

[3] Já abordado neste blog aqui.

[4] Neste blog anunciadas aqui, encontrando-se o tema também já tratado no que diz respeito às grandes plataformas, à liberdade de expressão, relacionado com Acórdão do STJ e com a proteção dos consumidores.

A proteção dos consumidores no Digital Services Act

Legislação

Já aqui foram escritos neste blog vários textos sobre o Digital Services Act, um de enquadramento geral, escrito por mim e pelo Martim Farinha, um sobre as grandes plataformas digitais (Francisco Arga e Lima) e outro questionando sobre se o diploma garante a liberdade de expressão (Nuno Sousa e Silva). Entretanto, também Sofia Lopes Agostinho aqui escreveu sobre o diploma, a propósito de um Ac. do STJ, de 10/12/2020.

Hoje voltamos à Proposta de Regulamento em causa, mas com um tema diferente.

Embora o Digital Services Act não esteja estruturado em torno do objetivo de proteção dos consumidores, várias normas reforçam a sua posição.

Resulta expressamente do considerando 10 e do art. 1-5(h) da Proposta que esta não afeta o acervo legislativo europeu de direito do consumo. O considerando faz referência à Diretiva 93/13/CEE, à Diretiva 98/6/CE, à Diretiva 2005/29/CE e à Diretiva 2011/83/UE, todas elas alteradas pela Diretiva (UE) 2019/2161.

Embora se defenda que as diretivas de proteção dos consumidores continuam a ser aplicáveis, o princípio da neutralidade das plataformas digitais pode afetar a aplicação prática do direito dos consumidores em muitos casos em que se justifique a responsabilização das plataformas. A própria conclusão de que as plataformas se limitam a fornecer serviços de armazenagem em servidor (hosting) é, à partida, muito duvidosa.

Contudo, este é o regime que temos, sendo mantida a essência da abordagem já adotada anteriormente pela Diretiva sobre o comércio eletrónico.

Uma das disposições do Digital Services Act que mais se destina à proteção do consumidor e que pode ser particularmente relevante para estes é a que impõe deveres às plataformas para assegurar a rastreabilidade dos comerciantes (ver considerando 49). O art. 22.º aplica-se apenas às plataformas em linha que permitem aos consumidores celebrar contratos com profissionais. O operador da plataforma deve assegurar que os profissionais só possam estar presentes na plataforma se fornecerem uma série de informações pertinentes relativas à sua identificação. Além deste dever, o operador da plataforma deve também fazer “esforços razoáveis” para avaliar se a informação é fiável, solicitar ao profissional que corrija a informação inexata ou incompleta e suspender o profissional até que essa correção seja feita. As informações devem ser armazenadas durante o período de duração da relação contratual entre as partes. O consumidor tem o direito de aceder a estas informações “de forma clara, facilmente acessível e compreensível”.

Esta informação pode ser muito importante para que o consumidor consiga exercer os seus direitos perante o comerciante.

Perdida no art. 22.º está uma norma que trata, não da rastreabilidade, mas da conceção da interface das plataformas digitais. O n.º 7 estabelece que a interface em linha da plataforma deve ser concebida e organizada “de forma a permitir que os comerciantes cumpram as suas obrigações em matéria de informação pré-contratual e de informação sobre a segurança dos produtos nos termos do direito da União aplicável”. Falamos, no essencial, dos deveres de informação que estão previstos nas diretivas de direito do consumo.

Outro aspeto tratado no Digital Services Act diz respeito à proteção do consumidor no que diz respeito ao princípio da identificabilidade da publicidade. O art. 24.º exige que, para cada anúncio específico, o consumidor possa perceber imediata e claramente que se trata de uma mensagem publicitária. A lei vai ainda mais longe ao exigir também uma indicação da pessoa em nome de quem é emitida a mensagem publicitária, ou seja, em regra, o profissional com quem o consumidor pode celebrar um futuro contrato. Os principais parâmetros utilizados para definir a razão pela qual a publicidade foi mostrada a essa pessoa em particular, e não a outra, devem também ser indicados. A automatização e a personalização da publicidade permitem selecionar os destinatários de forma cada vez mais precisa e rigorosa e pode dar origem a problemas de discriminação e a práticas não transparentes ligadas à recolha e tratamento de dados do consumidor.

O Digital Services Act também contém uma disposição para reforçar a transparência em torno dos sistemas de recomendação (art. 29.º). É especialmente dirigida a plataformas de muito grande dimensão, ou seja, “plataformas em linha que prestam os seus serviços a um número médio mensal de destinatários ativos do serviço na União igual ou superior a 45 milhões” (art. 25.º).

Visa-se assegurar que, relativamente à informação apresentada, os consumidores são, por um lado, adequadamente informados sobre os critérios para a sua apresentação de uma determinada forma e, por outro lado, são capazes de influenciar a forma como a informação é apresentada. As plataformas em linha devem apresentar várias possibilidades em alternativa aos consumidores relativamente aos principais parâmetros de priorização da informação, incluindo pelo menos uma que não se baseie na definição de perfis. As possibilidades devem ser facilmente acessíveis.

Por fim, temos o art. 5.º-3, que será talvez a norma mais discutida em torno da proteção dos consumidores no Digital Services Act. O princípio geral de isenção dos prestadores de serviços de hosting não se aplica “no que respeita à responsabilidade, nos termos do direito em matéria de proteção dos consumidores, de plataformas em linha que permitam aos consumidores celebrar contratos à distância com comerciantes, sempre que essas plataformas apresentem o elemento específico de informação ou permitam, de qualquer outra forma, que a transação específica em causa induza um consumidor médio e razoavelmente bem informado a acreditar que a informação, o produto ou o serviço objeto da transação é fornecido pela própria ou por um destinatário do serviço que atue sob a sua autoridade ou controlo”.

Apresentamos três críticas principais a esta disposição.

Em primeiro lugar, não é de todo claro o que se entende por “sempre que essas plataformas apresentem o elemento específico de informação ou permitam, de qualquer outra forma, que a transação específica em causa”. Será provavelmente a informação que pode ser acedida na plataforma em linha, mas, sendo isso, penso que poderia ser dito com bastante mais clareza.

O segundo elemento problemático desta norma diz respeito à concretização do conceito de “consumidor médio e razoavelmente bem informado”, que pode conduzir a alguma incerteza jurídica. Embora já exista jurisprudência do TJUE sobre esta matéria, os limites encontram-se indefinidos. Confiar neste conceito para um objetivo tão relevante parece não ser a melhor solução.

O mesmo se pode dizer sobre o conceito de atuas “sob a sua autoridade ou controlo”. Será que a Airbnb exerce controlo sobre os anfitriões? Julgo que sim, nos termos desta disposição, mas suspeito que muitas pessoas, incluindo certamente a própria Airbnb, dirão que não. Temos um conceito que levanta este tipo de dificuldades em relação a uma plataforma como a Airbnb, que tem claramente um controlo sobre os anfitriões, ou que pelo menos deveria ter algum grau de responsabilidade, devido à importância que tem no contrato de hospedagem posteriormente celebrado. Como é possível verificar pela análise feita, o diploma tem vários preceitos com grande relevância em matéria de direito do consumo. Espera-se que alguns dos problemas identificados possam ser resolvidos ao longo do processo legislativo.

Reconhecimento facial a quanto obrigas

Legislação

O Despacho n.º 2705/2021, de 11 de março do Gabinete Nacional de Segurança (GNS) vem tratar da “Identificação de pessoas físicas através de procedimentos de identificação à distância com recurso a sistemas biométricos automáticos de reconhecimento facial.”, assunto que é apresentado no “Sumário:”, sem bold, em tamanho de letra pequeno e com ponto final e, imediatamente a seguir, como título, em letra de tamanho grande, a bold e sem ponto final, o que, além de aparentar gaguez, indica que é coisa para continuar com algum desenvolvimento.

O que vem a seguir não desilude. Inicia com os enquadramentos, obrigatórios para evitar que o incauto cidadão seja levado a crer que se Despacha sem os devidos fundamentos programáticos, legais e, também, de Regulamento comunitário. Nestes termos se expõem: “O Programa do XXII Governo Constitucional identifica como um dos desafios estratégicos a promoção de incentivos da sociedade digital, da criatividade e da inovação, privilegiando a simplificação administrativa, o reforço e a melhoria dos serviços prestados digitalmente pelo Estado, o seu acesso e usabilidade, a par da desmaterialização de mais procedimentos administrativos.” e “O Regulamento (UE) N.º 910/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de julho de 2014, relativo à identificação eletrónica e aos serviços de confiança para as transações eletrónicas no mercado interno, veio considerar que: Criar confiança no ambiente em linha é fundamental para o desenvolvimento económico e social.”. É, ainda, indicado que a execução na ordem jurídica interna foi assegurada pelo Decreto–Lei n.º 12/2021, de 9 de fevereiro.

É, pois, por isso que o GNS, designado pelo acima referido Regulamento, vem “definir requisitos e instruções, relativamente à possibilidade dos prestadores qualificados de serviços de confiança adotarem formas de identificação não presencial, com garantias equivalentes, em termos de confiança, à da presença física”, possibilitando a “identificação por sistemas biométricos automáticos de reconhecimento facial”.

Os requisitos são apertados. A pessoa que está, em tempo real, a efetuar o pedido de reconhecimento tem de começar por mostrar que é titular do documento de identificação após o que, com consistência suficiente para convencer os sistemas de deteção, precisa de mostrar que está viva. Será ainda necessária demonstração de que “o documento de identificação apresentado é autêntico” e aí vai ser determinante conseguir convencer o sistema “de inteligência artificial e de deep learning”, que já se sabe é o mais difícil de iludir e que(m) decide.

Como usual, e já praticamente imprescindível em qualquer diploma que estabeleça normas, são apresentadas definições, neste caso no n.º 1 do Anexo A.

Destacam-se, porque merecem, as seguintes:

– “Sujeito biométrico. É uma pessoa que se submete a um processo de captura biométrica.”

– “Impostor biométrico. É um sujeito biométrico subversivo, que desenvolve ataques biométricos.”.

– “Prova de vida. Representa o estado de “estar vivo”, em tempo real. É evidenciado por características anatómicas, reações involuntárias e voluntárias, funções fisiológicas ou comportamentos.”.

É, ainda, definido “Deep learning (como) um ramo da inteligência artificial (AI), assente em sistemas/redes com capacidade de aprender com os dados, identificar padrões e tomar decisões com o mínimo de intervenção humana.”. Realce-se a ideia de “tomar decisões”, sem ser muito empatada pelo humano.

No n.º 4 do mesmo anexo vem o “Modelo funcional”, informando o Despacho que: “Este capítulo apresenta, sob o ponto de vista funcional, o sistema biométrico automático de reconhecimento facial (sBIO), de modo a poder ser facilmente identificado o âmbito, os componentes e as diversas atividades desenvolvidas por cada um destes componentes/subsistemas.”. Neste ponto não pode deixar de ser sublinhada a expressão “facilmente”, tanto no contexto do próprio parágrafo introdutório em que se insere, como depois da leitura do tal modelo funcional, que se lhe segue.

O n.º 5 apresenta os requisitos gerais estabelecendo que “Para os efeitos previstos neste documento, considera-se que a entidade que se submete ao processo de identificação, é uma pessoa física e passa a ser designada de subscritor, a entidade que verifica a identidade do subscritor, é um prestador qualificado de serviços de confiança, designada de QTSP. Quando (no original “Quanto”) um subscritor, demonstra com sucesso, a existência, posse ou controlo de mais que um mecanismo de autenticação requeridos pelo QTSP para validar a sua identidade, passa a ser designado por titular.”

Acaba, por fim e para nosso alívio, com um Anexo B, relativo à “Certificação dos sistemas biométricos automáticos de reconhecimento facial”.

Assina o Diretor-Geral do GNS, aparecendo após o nome, “CALM”. Não é, como à primeira vista se poderia pensar, um incentivo final a que o sujeito biométrico subscritor que, vivo e de cartão na mão, se sujeita a um QTSP, mantenha a calma durante o processo.

Em face de tal regulamentação parece, pois, que o reconhecimento facial vai ser reconhecido pelo Estado, como modo de identificar cidadãos, cumpridores dos requisitos do Despacho.

Na rua, um jovem aproxima o seu smartphone do rosto para o desbloquear, enquanto o amigo usa a impressão digital para desbloquear o seu. Sendo necessário confirmar os ingredientes da pizza, o primeiro diz ao seu dispositivo móvel “liga ao Manuel” e o aparelho, reconhecendo a voz, faz a ligação. No take-away a que a pandemia obriga, o segundo paga com o cartão que obteve registando-se com um documento de identificação e reconhecimento facial. Pelo caminho testam o desbloqueamento do telemóvel com a íris, funcionalidade que ainda não tinham experimentado e que funciona muito bem, o que os diverte. Sentem-se bastante confiantes, provavelmente demais, no ambiente em linha onde usualmente habitam e onde, com o confinamento, têm quase toda a sua vida.

Não sabem que, desde sexta feira, passaram a ser um sujeito biométrico e que, daqui a algum tempo, aquele que o Estado demorar a implementar o Direito, do Regulamento comunitário ao Despacho, se quiserem um reconhecimento facial a valer, vão ter de apresentar cartão e, em tempo real, fazer prova de que estão vivos a um QTSP.

A Importância dos Deveres de Adequação na Atividade de Intermediação de Crédito

Legislação

A alínea c) do n.º 1 do art. 66.º do Decreto-Lei n.º 81-C/2017 estabelece que, “além da observância dos deveres de diligência, lealdade, discrição e respeito consciencioso pelos direitos e interesses dos consumidores, os mutuantes e os intermediários de crédito, quando prestem serviços de consultoria, devem, em especial: avaliar a adequação dos contratos de crédito considerados para efeitos da emissão de recomendações à situação pessoal e financeira, objetivos, necessidades e preferências do consumidor, tendo por base informação atualizada e tendo em conta pressupostos razoáveis sobre os riscos para a situação do consumidor ao longo da vigência do contrato proposto”.

Significa isto que os intermediários de crédito, aquando da prestação de serviços de consultoria, devem cumprir zelosamente o dever de adequação ([1]). O intermediário de crédito tem o dever de realizar um “teste de adequação” adaptado ao perfil do cliente. Para a realização deste teste, deve o intermediário de crédito solicitar ao cliente uma informação detalhada sobre os seus conhecimentos quanto ao crédito que quer contratar. O dever de adequação está ligado ao investimento de confiança que é feito pelo cliente na posição profissional do intermediário de crédito ou na relação contratual que entre ambos foi firmada. Este dever encontra-se bastante desenvolvido no regime da intermediação financeira ([2]).

À semelhança do que acontece no regime do Código dos Valores Mobiliários, o dever de adequação não pode ser concretizado sem antes ser cumprido, por parte do intermediário de crédito, o dever de recolha da informação que respeita ao cliente. Esta recolha de informação poderá ser realizada através de questionários dirigidos aos clientes, de forma a obter uma informação tendo em conta os conhecimentos e experiências destes. Esta informação tem de ser, no mínimo, suficiente para avaliar se o cliente compreende os riscos envolvidos na operação de crédito.

O intermediário de crédito deve apurar detalhadamente a situação financeira do cliente, averiguando se o mesmo tem capacidade patrimonial e a liquidez suficiente para cumprir com o disposto no contrato. O intermediário de crédito deve assim obter todas as informações que ache necessárias para que possa compreender os factos essenciais relacionados com o cliente. Essa recolha de informação passa também pelos dados pessoais do cliente, nomeadamente, a sua idade, o seu estado civil, a sua situação familiar, bem como a situação laboral em que se encontra. Nestes termos, o dever de adequação encontra-se interligado com o dever de conhecimento do cliente (know your client).

Embora o grau de exigência e a extensão do dever de adequação sejam muito superiores no regime de intermediação financeira, do qual decorrem, em virtude dos riscos inerentes aos investimentos, o dever de adequação não deixa de ter de ser rigorosamente cumprido pelos profissionais que exercem as funções de intermediários de crédito.

A alínea p) do art. 3.º do Decreto-Lei n.º 81-C/2017 dispõe que os serviços de consultoria consistem na “emissão de recomendações dirigidas especificamente a um consumidor sobre uma ou mais operações relativas a contratos de crédito, enquanto atividade separada da concessão de crédito e da atividade de intermediário de crédito”.

No caso de o intermediário de crédito não obter a informação necessária para a avaliação da adequação do serviço ou operação em causa ou se considerar que não é adequado, não pode realizar ou recomendar o referido serviço ou operação ao cliente. Se o fizer, poderá incorrer em responsabilidade civil.

Refira-se que uma das exigências para a concessão de autorização para o exercício da atividade de intermediação de crédito depende da subscrição de um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional. Este contrato de seguro deve, nos termos do n.º 2 do art. 15.º do Decreto-Lei n.º 81-C/2017, abranger os territórios em que se pretende exercer a atividade, cobrir as responsabilidades resultantes de negligência profissional e observar os montantes mínimos, por sinistro e por anuidade, estabelecidos pelo art. 29.º da Diretiva n.º 2014/17/UE.

Como podemos ver, o cumprimento dos deveres de adequação aquando do exercício da atividade de intermediação de crédito assume uma particular relevância.

([1]) Sobre o dever de adequação no regime da intermediação financeira vide André Alfar Rodrigues, Deveres e Responsabilidade dos Intermediários Financeiros, Almedina, 2020, p. 71 a 92.

([2]) O regime do dever de adequação encontra-se previsto nos artigos 314.º e 314.º-A do CVM e nos artigos 54.º e seguintes do Regulamento Delegado 2017/565. O dever de adequação encontra-se previsto no artigo 25.º da Diretiva 2014/65/UE (DMIF II), que, entretanto, foi transposta para o ordenamento jurídico português.