Orçamento do Estado e linhas telefónicas de apoio ao consumidor – O princípio do fim dos “707”?

Legislação

O Orçamento do Estado para 2021, aprovado pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, tem várias normas que visam regular as relações de consumo.

Analisa-se hoje o artigo 189.º, que impõe ao Governo a aprovação, até ao final de janeiro, de legislação no sentido de “estabelecer que as chamadas efetuadas pelo consumidor para uma linha de apoio ao cliente de fornecedores de bens e prestadores de serviços não podem exceder o custo de uma chamada normal para uma linha telefónica geográfica ou móvel, exceto nos casos em que a própria chamada represente o serviço prestado ao consumidor, designadamente nos concursos que utilizam chamadas de valor acrescentado”, “impor aos operadores económicos o dever de divulgar o número ou números disponibilizados para contacto com os clientes e de obedecer a determinados critérios na sua divulgação” e “criar um regime contraordenacional para a violação das obrigações referidas nas alíneas anteriores”.

Ora, já existe legislação que proíbe que os números das linhas de apoio ao cliente excedam o custo de uma chamada normal para uma linha telefónica geográfica ou móvel.

Com efeito, o art. 9.º-D da Lei de Defesa do Consumidor (LDC) estabelece que “a disponibilização de linha telefónica para contacto no âmbito de uma relação jurídica de consumo não implica o pagamento pelo consumidor de quaisquer custos adicionais pela utilização desse meio, além da tarifa base, sem prejuízo do direito de os operadores de telecomunicações faturarem aquelas chamadas”. Este preceito transpõe o art. 22.º da Diretiva 2011/83/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores.

Chamado a pronunciar-se sobre o conceito de “tarifa base”, o Tribunal de Justiça da União Europeia – TJUE (Acórdão de 2 de março de 2017, Processo C-568/15, Acórdão Zentrale zur Bekämpfung unlauteren Wettbewerbs Frankfurt am Main) veio declarar que este “deve ser interpretado no sentido de que o custo de uma chamada relativa a um contrato celebrado e para uma linha telefónica de apoio ao cliente explorada por um profissional não pode exceder o custo de uma chamada normal para uma linha telefónica fixa geográfica ou móvel”.

É, assim, inadmissível que o número de telefone disponibilizado pelo profissional implique custos acrescidos em relação a uma chamada normal para um telefone fixo ou móvel. Não pode, por exemplo, ser disponibilizado um número iniciado por 707, devendo apenas ser admitidos os números começados por 2 ou 9 ou, naturalmente, os números gratuitos.

Esta norma aplica-se a todos os contratos de consumo, mas tem particular relevância nos contratos duradouros, nomeadamente os relativos a serviços públicos essenciais, em que a relação existente entre as partes pressupõe o estabelecimento de contactos por iniciativa do consumidor. Exemplificando, num contrato relativo a comunicações eletrónicas, a utilização da linha telefónica de apoio ao cliente do prestador de serviços não pode implicar custos para o consumidor que excedam os de uma chamada normal para um número de telefone fixo ou móvel.

Mesmo que não existisse esta regra na LDC, a disponibilização de um “707” como único meio de contacto sempre constituiria uma forma de desincentivar o consumidor a contactar o serviço de assistência, que não poderia ser tolerada pelo direito, por violação do princípio da boa-fé.

O art. 9.º-D vem, no entanto, esclarecer que, mesmo que existam outros meios de contacto, a disponibilização de uma linha telefónica não pode implicar custos acrescidos para o consumidor.

No Acórdão de 13 de setembro de 2018, Processo C-332/17, Acórdão Starman, o TJUE vem reforçar esta ideia, ao concluir que é ilícita a prática em que o profissional utiliza dois números, um sem custos acrescidos e outro com custos acrescidos, mesmo que informe os consumidores de forma adequada da existência dos dois números. O profissional apenas pode, portanto, disponibilizar números sem custos acrescidos para o consumidor.

A regra já se encontra, portanto, prevista no ordenamento jurídico português. Esperemos que seja agora garantido o seu cumprimento efetivo, até porque se prevê passar a impor aos profissionais “o dever de divulgar o número ou números disponibilizados para contacto com os clientes e de obedecer a determinados critérios na sua divulgação”.

Saúda-se, ainda, a intenção de criar um regime contraordenacional para a sua violação. Este regime deveria, aliás, ser alargado a todas as normas que, na LDC, transpõem preceitos da referida Diretiva 2011/83/EU: arts. 8.º, 9.º-A, 9.º-B e 9.º-C, além do já indicado art. 9.º-D.

Digital Services Act e Digital Markets Act – Novas regras europeias para os serviços digitais e para os mercados digitais

Legislação

Por Jorge Morais Carvalho e Martim Farinha

 

O dia que muitos aguardavam com ansiedade chegou. A Comissão Europeia apresentou um projeto ambicioso de reforma da legislação em matéria de serviços digitais e de mercados digitais (o Digital Services Act package, na versão em inglês).

Os principais objetivos elencados pela Comissão para este pacote legislativo passam pela proteção dos consumidores, por um lado, e pela existência de mercados digitais mais justos e eficientes, por outro lado.

O pacote inclui, no essencial, duas propostas de regulamento:

Proposta de Regulamento Serviços Digitais (explicação aqui);

Proposta de Regulamento Mercados Digitais (explicação aqui).

A análise de todos estes documentos pressupõe um trabalho de leitura minucioso e exaustivo, pelo que deixamos aqui apenas algumas notas gerais ligadas ao impacto que algumas normas poderão ter na regulação das relações de consumo.

Seguindo a lógica do diploma, o Digital Services Act regula os serviços de intermediação em linha, que incluem, entre outros, os serviços de hospedagem (hosting), que por sua vez incluem, entre outros serviços, as plataformas em linha (mercados em linha, lojas de aplicações, plataformas da economia colaborativa e redes sociais), que por sua vez incluem, entre outros serviços, as plataformas em linha de grande dimensão (consideradas como tais se tiverem um número igual ou superior a 45 milhões de utilizadores).

O Digital Services Act vem assim atualizar e complementar a Diretiva sobre o Comércio Eletrónico (Diretiva 2000/31/EC), um dos principais diplomas europeus de caráter horizontal em serviços digitais nos últimos 20 anos, que há muito tempo era objeto de apelos de reforma devido a todas as transformações que se têm verificado na Internet e na forma como consumidores, empresas e plataformas interagem nesta.

As regras a que estão sujeitas as categorias de prestadores de serviços de intermediação em linha identificados vão sendo cada vez mais exigentes, atingindo o grau mais elevado, naturalmente, nas plataformas de grande dimensão (v. arts. 10.º e segs.).

Uma das normas mais relevantes no que respeita à proteção do consumidor é a do art. 5.º-3, que estabelece que a isenção de responsabilidade dos prestador de serviços de hospedagem “não se aplica no que respeita à responsabilidade nos termos da legislação de defesa do consumidor de plataformas em linha que permitam aos consumidores celebrar contratos à distância com profissionais, sempre que tal plataforma em linha apresente o elemento específico de informação ou permita de outra forma que a transação específica em causa leve um consumidor médio e razoavelmente bem informado a acreditar que a informação, ou o produto ou serviço objeto da transação, é fornecida pela própria plataforma em linha ou por um destinatário do serviço que atue sob a sua autoridade ou controlo”.

A proposta de regulamento também prevê a implementação de obrigações de monitorização e de due dilligence das plataformas digitais, quanto à eliminação de conteúdos e serviços ilegais, incluindo mecanismos para a denúncia (flag) destes pelos consumidores e outros utilizadores das plataformas (art. 11.º), criando a figura dos denunciantes de confiança (trusted flaggers), e, em contrapartida, sistemas para a contestação destas denúncias e subsequente remoção de conteúdos ou serviços pelos visados (art. 17.º). As decisões de remoção de conteúdo e as sanções aplicadas aos utilizadores têm de ser devidamente jusitificadas. A liberdade de expressão e a transparência das decisões tomadas no âmbito destes litígios foram assim acauteladas pela Comissão, que afasta a solução de filtros de upload, não se pretendendo que a arbitrariedade, o abuso e a censura se tornem a regra.

As plataformas também terão de identificar claramente as empresas e os agentes económicos que utilizem os seus serviços para chegar aos consumidores (know your business customer), assumindo um papel relevante em matérias como o combate ao contrabando e à contrafação ou a comercialização de produtos perigosos.

A utilização de algoritmos para a gestão, envio e partilha de conteúdos e serviços digitais, incluindo a colocação de anúncios, também passará a ter novas regras. Os consumidores têm de ser informados de forma clara e percetível sobre os principais parâmetros utilizados no que respeita à seleção das pessoas a quem é dirigida a publicidade.

O Digital Markets Act visa regular uma parte das plataformas em linha de grande dimensão, que designa de gatekeepers, sendo um diploma enquadrável essencialmente no direito da concorrência.

O art. 1.º-1 estabelece, desde logo, que “o presente regulamento estabelece regras harmonizadas que garantem mercados concorrenciais e equitativos no setor digital em toda a União onde os gatekeepers estão presentes”. Nos termos do art. 3.º-1, uma plataforma (incluindo motores de busca, redes sociais, partilha de vídeo, comunicação interpessoal, sistemas operativos, nuvem, publicidade) será designada gatekeeper se tiver um impacto significativo no mercado interno, explorar um serviço que sirva de importante porta de entrada para utilizadores empresariais para chegar aos utilizadores finais e tiver (ou ser previsível que venha a ter) uma posição sólida e duradoura nas atividades que desenvolve.

O diploma visa garantir aos profissionais que dependem destes gatekeepers para o exercício da sua atividade um maior equilíbrio na relação. Pretende-se que exista um ambiente negocial mais justo, sem cláusulas abusivas ou práticas desleais. Os consumidores serão protegidos por via indireta, como é regra no direito da concorrência.

Entre as práticas que passam a ser expressamente proibidas para os gatekeepers estão a impossibilidade de impedir que os consumidores removam as aplicações pré-instaladas, de agregar dados pessoais recolhidos e tratados em dois serviços diferentes (ainda que do mesmo gatekeeper) sem o devido consentimento do titular [1] e favorecer os seus próprios serviços e conteúdos face a terceiros nas suas plataformas.

O valor das coimas para o incumprimento do regime poderá chegar a 10% do volume de negócios anual total da empresa a nível mundial, em conformidade com os valores do regime da Diretiva ECN + (UE) 2019/1, de harmonização do direito da concorrência.

[1] Essencialmente, o que se verificou no caso da autoridade alemã contra a Facebook, em que esta foi acusada da prática de abuso de posição dominante por agregar os dados pessoais dos utilizadores do Facebook, do Instagram e do Whatsapp. https://www.bundeskartellamt.de/SharedDocs/Entscheidung/EN/Fallberichte/Missbrauchsaufsicht/2019/B6-22-16.pdf?__blob=publicationFile&v=4

Novidades legislativas em matéria de alojamento local

Legislação

No passado dia 6 de novembro, foi publicada no Diário da República a Portaria n.º 262/2020, que estabelece as condições de funcionamento e identificação dos estabelecimentos de alojamento local, a que alude o n.º 5 do art. 12.º do Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de agosto (Regime Jurídico da Exploração dos Estabelecimentos de Alojamento Local). Estas medidas são aplicáveis a todas as modalidades de alojamento local.

A Portaria visa estabelecer as condições mínimas de funcionamento que as modalidades de estabelecimentos de alojamento local já cumprem atualmente, introduzindo outras que se consideram essenciais para o desenvolvimento e inovação deste produto turístico.

Ouvidas as associações representativas do alojamento local, e seguindo-se as políticas de sustentabilidade da Estratégia Turismo 2027, a Portaria estabelece medidas de forma a assegurar que mais de 90% das empresas do turismo adotem medidas de utilização eficiente de energia e de água e desenvolvam ações de gestão ambiental dos resíduos.

A presente Portaria visa, nestes termos, criar condições de funcionamento comuns quanto ao acolhimento de utentes, às condições de funcionamento e serviços de arrumação e limpeza, ao serviço de pequeno-almoço, ao reporte de informações de dormidas, às instalações sanitárias, incluindo ainda regras quanto às áreas e requisitos dos estabelecimentos de alojamento local, obedecendo estas às regras de edificação urbana aplicáveis, incluindo os regimes de exceção e de isenção, previstas na Portaria.

São ainda estabelecidas as condições de funcionamento específicas dos estabelecimentos de hospedagem, dos hostels e os estabelecimentos de alojamento local de moradia e apartamento.

Como condições de sustentabilidade, estatui o art. 17.º da Portaria que os estabelecimentos de alojamento local devem privilegiar a adoção e a implementação de medidas que promovam o consumo eficiente de água, de energia e de políticas de informação sobre práticas de turismo sustentável por parte dos utentes. Uma medida particularmente positiva é a adoção exclusiva de detergentes e produtos biodegradáveis. Os estabelecimentos de alojamento local devem ainda garantir a separação de resíduos sólidos urbanos. A formação contínua dos colaboradores sobre boas práticas ambientais e standards de trabalho mostra-se indispensável para garantir a adoção destes procedimentos pró-ambientais. Por fim, estes estabelecimentos devem possuir certificação ambiental ou selo de qualidade ambiental atribuído por entidade nacional ou internacional de reconhecido mérito

É ainda previsto um período de transitório de 12 meses, a contar da data de entrada em vigor da Portaria, para que os estabelecimentos de alojamento local, que já se encontrem registados no Registo Nacional de Alojamento Local, se possam adaptar às novas condições de funcionamento.

As novidades constantes da Portaria n.º 262/2020 são um primeiro (e pequeno) passo para garantir que os estabelecimentos de alojamento local adotem procedimentos a favor de práticas que promovam a sustentabilidade ambiental. No nosso entender, deveria ter-se procurado assegurar alterações substanciais, ao invés de procurar “privilegiar” condições de sustentabilidade, por exemplo, do estabelecimento de ações de fiscalização, realizadas por entidades públicas ou por entidades contratadas pelo Estado, para tornarem efetivas as medidas enumeradas pela Portaria.

Proteção do Consumidor na Proposta da Comissão Europeia para a Regulação de Crypto-assets

Legislação

No passado dia 24 de setembro, a Comissão Europeia publicou um novo Pacote Financeiro Digital, que já foi tratado num artigo deste Blog. Entre as propostas legislativas, encontra-se um Regulamento sobre Crypto-assets, criados através da utilização de Distributed Ledger Technology (DLT), com recurso a protocolos blockchain.

A proposta deste regulamento surge no seguimento do crescimento exponencial dos mercados de crypto-assets em 2017, da publicação do Plano Fintech da Comissão em Março de 2018 e das conclusões dos estudos da Autoridade Bancária Europeia (EBA) e da Autoridade Europeia de Mercados de Valores Mobiliários (ESMA) em 2019, sobre a aplicabilidade de Direito Europeu a estes ativos.

Atendendo aos desafios e problemas levantados pelos reguladores, a proposta da Comissão assumiu a forma de um regulamento, versando sobre a definição de crypto-assets, as suas categorias, os requisitos para a sua emissão na UE, para a criação e funcionamento de plataformas de exchange destes, a fiscalização destas atividades, entre vários assuntos, tendo como objetivo a proteção de investidores e consumidores sem limitar excessivamente a inovação.

Nas matérias ligadas ao Direito de Consumo são de destacar as seguintes opções do legislador europeu:

  • no considerando 14 é referida a obrigatoriedade de publicação de um white paper – uma já reconhecida prática de mercado, que antes deste Regulamento era marcada frequentemente pela falta de precisão das informações contidas nestes documentos – com regras e requisitos claros, previamente aprovado pelas entidades reguladoras para uma oferta pública, com as informações necessárias sobre os direitos associados à aquisição do ativo, as funcionalidades deste e uma descrição da tecnologia empregue, para que potenciais compradores, consumidores ou investidores possam tomar uma decisão livre e devidamente informada;
  • pequenas e médias empresas ficam isentas da obrigação da publicação do white paper, porém, segundo o considerando 16, o Direito do Consumo Europeu mantém-se aplicável nestes casos. Entre os diplomas aplicáveis, são enumeradas as diretivas sobre as Práticas Comerciais Desleais, sobre as Cláusulas Contratuais Abusivas e a Diretiva dos Direitos dos Consumidores (DDC), garantindo-se um nível de proteção aos consumidores nas relações contratuais com estas entidades menos fiscalizadas;
  • no considerando 45, os detentores de e-money tokens – o termo utilizado para referir criptomoedas na proposta da CE, que tenham como referência uma única moeda com curso legal – têm o direito a requerer ao emissor das mesmas a conversão destas na moeda de referência, com a possibilidade de o emissor cobrar uma taxa de câmbio proporcional;
  • é assegurado aos consumidores que adquirem utility tokens – o termo utilizado para referir tokens que têm como função possibilitar o acesso a bens e serviços na DLT (como a celebração de smart contracts na rede Ethereum) – o direito de retratação, mais conhecido no ordenamento jurídico português como direito à livre resolução ou direito ao arrependimento, que pode ser exercido perante o emissor dos ativos, nos termos do art. 12.º do Regulamento.

Este direito é exercido nos mesmos moldes do que na DDC, sem a alegação de motivos, com um prazo de 14 dias e prevendo-se a devolução integral do valor pago sem penalizações, utilizando a mesma forma de pagamento para o reembolso.

Em relação a este último ponto, é necessário frisar que, sem a inclusão deste preceito, o exercício do direito ao arrependimento com base na DDC quanto às utility tokens será muito improvável, dado que estas seriam consideradas conteúdos digitais (v. art. 2.º-11 da DDC), aplicando-se assim a exceção do art. 16.º-m), que permite que o consumidor abdique deste direito a priori, bastando que o contrato de fornecimento das tokens inclua esta cláusula. Quanto às restantes categorias de tokens previstas no Regulamento (e-money e asset-referenced), estão fora do âmbito de aplicação quer do referido art. 12.º quer da DDC (art. 16.º-b)).

Estas são apenas algumas das principais propostas do legislador europeu em matéria de Direito do Consumo incluídas no Regulamento, que ainda podem sofrer muitas mutações, revisões e mesmo ser eliminadas durante o processo legislativo que irá brevemente decorrer no Conselho e no Parlamento Europeu.

Estado de emergência e destino dos contratos celebrados

Legislação

A evolução da pandemia Covid-19 levou o Presidente da República a declarar novamente o estado de emergência (v. Decreto do Presidente da República n.º 51-U/2020, de 6 de novembro). A figura está pensada precisamente para situações de calamidade pública como a que estamos atualmente a viver, tendo-se entendido ser necessário, neste momento, tomar medidas adicionais com vista à contenção da pandemia.

Ontem, o Governo veio regulamentar a aplicação do estado de emergência (Decreto n.º 8/2020, de 8 de novembro).

Entre outras medidas, proíbe-se a circulação na via pública, nos dias úteis, das 23h às 5h, e aos fins de semana das 13h às 5h. O regime prevê várias exceções, entre as quais destacamos as “deslocações a mercearias e supermercados e outros estabelecimentos de venda de produtos alimentares e de higiene, para pessoas e animais”, podendo nestes estabelecimentos ser “adquiridos outros produtos que aí se encontrem disponíveis”. Os estabelecimentos que comercializam produtos alimentares e de higiene (mercearias, supermercados, pastelarias, restaurantes) podem, portanto, atender clientes, mas apenas para take away.

Não se prevê o encerramento dos restantes estabelecimentos, mas será esta a decorrência normal do facto de não poderem receber clientes, por estes se encontrarem abrangidos por uma proibição de circulação.

A questão que nos propomos tratar aqui consiste em saber qual o destino dos contratos de consumo celebrados em contrariedade a este regime. Por exemplo, um contrato celebrado no sábado da parte da tarde numa loja de roupa; ou o contrato celebrado com um restaurante para jantar no local no sábado à noite.

Em ambos os casos, o cliente desrespeitou a proibição de circulação na via pública. O regime prevê algumas consequências, nomeadamente o dever de respeitar as ordens emitidas pelas forças e serviços de segurança, tendo-se considerado, neste caso, não prever sanções contraordenacionais específicas para o incumprimento da proibição referida.

Nada se refere quanto ao destino dos contratos celebrados.

Tratando-se esta proibição de um elemento externo ao negócio propriamente dito (a proibição de circulação), aplica-se o art. 294.º do Código Civil, que estabelece que “os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de caráter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei” [1].

Estando em causa um aspeto exterior ao âmago do negócio jurídico, deve concluir-se que não tem com este uma relação tão próxima que seja suscetível de o ferir mortalmente. Defendo mesmo que se pode arriscar numa leitura invertida do preceito. Assim, os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo têm a consequência expressa ou tacitamente prevista no diploma legal, só sendo nulos no caso de esta não apresentar outra solução.

Ora, como já se referiu, o Decreto n.º 8/2020, de 8 de novembro, apresenta “outra solução”, tendo-se considerado suficiente prever, neste caso, um dever de respeitar as ordens emitidas pelas forças e serviços de segurança. Não se justifica, portanto, que os contratos celebrados em contrariedade a este regime sejam considerados nulos. Estamos perante contratos válidos, que produzem os seus efeitos normais, isto sem prejuízo de às partes poderem ser aplicadas as consequências previstas no regime.

[1] Sobre o art. 294.º do Código Civil, v. o meu livro Os Limites à Liberdade Contratual, Almedina, 2016, pp. 141 e seguintes.

Novo Pacote Financeiro Digital na União Europeia

Legislação

A Comissão Europeia lançou, em 24 de setembro, um novo Pacote Financeiro Digital que inclui a sua Estratégia Financeira Digital e de Pagamentos, bem como propostas legislativas sobre crypto-assets, Distributed Ledger Technology (DLT) e resiliência digital.

A ideia geral é impulsionar a competitividade e inovação da Europa no setor financeiro, aumentando a escolha e oportunidades dos consumidores, mantendo a sua proteção e a estabilidade financeira do mercado.

As medidas visam a recuperação económica da UE, incentivando especialmente empresas digitais altamente inovadoras, procurando simultaneamente atenuar potenciais riscos.

Os principais objetivos da Estratégia Financeira Digital passam por tornar os serviços financeiros europeus mais favoráveis à digitalização e estimular a inovação e a concorrência responsáveis entre os fornecedores, reduzindo-se a fragmentação no mercado único digital. A gestão de dados está também no centro da estratégia, pretendendo-se promover a sua partilha, mantendo elevados padrões de privacidade e proteção de dados. A estratégia visa ainda assegurar condições equitativas entre os fornecedores, sejam empresas tradicionais ou tecnológicas, garantindo que à mesma atividade e riscos, se aplicam as mesmas regras.

No que diz respeito aos pagamentos, pretende-se que sejam seguros, rápidos e fiáveis para os consumidores e empresas europeias, incluindo soluções de pagamentos transfronteiriços instantâneos.

Proteção dos consumidores no Anteprojeto de transposição do Código Europeu das Comunicações Eletrónicas

Legislação

No passado dia 4 de agosto de 2020, a ANACOM entregou ao Governo e à Assembleia da República o seu Anteprojeto de transposição do Código Europeu das Comunicações Eletrónicas (CECE), que irá substituir a Lei das Comunicações Eletrónicas (Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro).

O CECE corresponde a um pesado pacote legislativo da União Europeia, com vista à modernização do setor das telecomunicações em todo o mercado único, de forma transversal, em matérias de regulação, segurança, concorrência, proteção dos utilizadores finais e, claro, a implementação da tecnologia 5G.

O CECE (Diretiva (UE) 2018/1972, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018), que tem como prazo final de transposição o dia 20 de dezembro, foi alterado posteriormente pela Retificação da Diretiva (UE) 2018/1972, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11.12.2018, pelo  Regulamento de Execução (UE) 2020/1070, de 20.07.2020, e pelo Regulamento de Execução (UE) 2019/2243, da Comissão, de 17.12.2019.

Encontramos as disposições relativas ao Direito do Consumo, em particular, nos arts. 98.º a 116.º do CECE, sendo que as normas constantes dos arts. 102 a 115º são de harmonização máxima. Estas disposições são transpostas para o Anteprojeto da ANACOM nos artigos 109.º a 144.º, num capítulo dedicado aos “Direitos dos utilizadores finais”.

Estas disposições do Anteprojeto abordam inúmeras matérias, das quais destacamos: não discriminação e garantia de direitos fundamentais (arts. 110.º e 111.º); requisitos de informação pré-contratuais (arts. 112.º, 115.º, 119.º e 120.º); pacotes de serviços (art. 113.º); critérios de transparência, avaliação e comparação dos termos e qualidade dos serviços prestados (arts. 112.º, 117.º, 118.º e 120.º); suspensão e incumprimento (arts. 127.º a 129.º); duração, denúncia e resolução do contrato, com destaque para cláusulas de fidelização e mobilidade dos utilizadores (arts. 130.º a 137.º); mudança do fornecedor (arts. 138.º e 139.º); resolução alternativa de conflitos e reclamações (art. 141º e 142º).

Uma das principais inovações está relacionada com o caso de mudança de morada pelo consumidor durante o período de fidelização, em que este passa a estar protegido face a deteriorações no serviço. Até aqui, se, com a mudança de morada, o serviço piorasse ou tivesse de sofrer um downgrade devido a condições técnicas (por exemplo, na morada anterior tinha sido estipulada a prestação de internet por fibra ótica, mas a operadora só fornece por satélite na nova localização), o consumidor poderia ser forçado a manter o contrato até ao termo final do período de fidelização. Na minha opinião, trata-se de um caso de alteração de circunstâncias, que permite a resolução do contrato sem penalização dentro do período de fidelização. No entanto, esta corrente não é de todo consensual. Se o novo art. 132.º-1 do Anteprojeto for aprovado, o consumidor poderá livremente denunciar o contrato, sem ser forçado a pagar a penalização relativa à fidelização. O consumidor em situação de emigração ou de desemprego também passará a estar expressamente protegido (art. 133.º).

Aguardaremos com entusiamo as próximas etapas do procedimento legislativo relativo à transposição desta Diretiva, que deverá acontecer até 20 de dezembro deste ano.

Portugal adere à Convenção das Nações Unidas sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias

Legislação

Hoje no nosso blog fugimos um pouco ao direito do consumo para dar nota da muito aguardada adesão de Portugal à Convenção das Nações Unidas sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias, adotada em Viena, em 11 de abril de 1980, e também conhecida pelo acrónimo CISG, do inglês United Nation Convention on Contracts for the International Sale of Goods.

A Convenção foi aprovada, para adesão, pelo Decreto n.º 5/2020, de 7 de agosto, que contém em anexo a versão autenticada em inglês e uma tradução em língua portuguesa.

Da longa lista de (85 países) aderentes, constam todos os países da União Europeia, com exceção da Irlanda (e do Reino Unido), e algumas das outras principais economias mundiais, como o Brasil, a China, os Estados Unidos da América ou a Rússia.

A Convenção tem 101 artigos, divididos em quatro partes:

I – Âmbito de aplicação e disposições gerais

II – Formação do contrato

III – Compra e venda de mercadorias

IV – Disposições finais

Nos termos do art. 1.º-1, a Convenção aplica-se a contratos de compra e venda de mercadorias entre partes que tenham o seu estabelecimento em diferentes Estados, nos casos em que ambos os Estados são Estados contratantes ou em que as regras de direito internacional privado conduzem à aplicação da lei de um Estado contratante.

Como já referimos, a Convenção não se aplica a contratos de consumo. Com efeito, o artigo 2.º-a) estabelece que a Convenção não é aplicável às vendas de “mercadorias adquiridas para uso pessoal, familiar ou doméstico, salvo se o vendedor, em qualquer momento anterior à conclusão do contrato ou no momento da sua conclusão, não conhecesse nem devesse ter conhecimento que as mesmas tinham sido adquiridas para um desses usos”.

Apesar de não se aplicar a relações de consumo, a Convenção constitui uma das principais fontes inspiradoras das diretivas sobre venda de bens de consumo [Diretiva 1999/44/CE e Diretiva (UE) 2019/771], em especial no que respeita à introdução do conceito de conformidade do bem com o contrato. Tal como as diretivas referidas, a Convenção também se aplica a “contratos de fornecimento de mercadorias a fabricar ou a produzir” (artigo 3.º-1).

A adesão à Convenção será certamente um passo importante para o aprofundamento das relações comerciais internacionais das empresas portuguesas e o seu estudo será cada vez mais relevante para os juristas nacionais.

Então e a sustentabilidade?

Legislação

O diploma que regula a venda de bens de consumo em território nacional não deixa dúvidas: em caso de desconformidade, o consumidor tem direito à reparação, à substituição, à redução do preço ou à resolução do contrato. Mas até uma redação escorreita como esta tem feito correr mais tinta na jurisprudência e na doutrina do que aquela que seria de esperar.

Não é novidade a velha discussão sobre a existência ou inexistência de hierarquia entre os acima citados direitos. Muitos apontam a crescente gravidade das soluções plasmadas como uma clara opção do legislador no sentido de atribuir uma hierarquia entre os direitos. Por seu turno, outros (a grande maioria) clamam pela clareza da lei ao não dispor no sentido da existência dessa hierarquia. E a questão parecia estar mais ou menos saldada.

Com a nova Diretiva sobre a venda de bens de consumo (a Diretiva (UE) 2019/771 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2019), fica claro que, depois de transposta, a legislação nacional terá definitivamente de prever a existência de hierarquia entre direitos. Daqui resultará que a disposição nacional deverá passar a dar prevalência ao direito de reparação e ao direito de substituição, em detrimento do direito de redução do preço e do direito de resolução do contrato.

A questão que se coloca é: porquê? Que o direito à reparação é provavelmente a melhor solução do ponto de vista da manutenção contratual, bem como de um ponto de vista ambiental, já nós sabemos. Mas de que modo se justifica a prevalência do direito à substituição, no mesmo pódio que o direito à reparação? Que é pela manutenção da relação contratual, também já nós sabemos. Não será, no entanto, caso para perguntar: então e a sustentabilidade?

Na era da reciclagem, da circular economy, da compra em segunda mão, da reutilização, do movimento zero waste, de que forma a substituição do bem é uma solução sustentável?

Comissão Europeia, viagens organizadas e vouchers

Legislação

Há cerca de uma semana, chamamos aqui a atenção para a circunstância de o regime do art. 3.º-1 do Decreto-Lei n.º 17/2020, de 23 de abril, contrariar a Diretiva (UE) 2015/2302, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa às viagens organizadas e aos serviços de viagem conexos.

Ora, hoje, a Comissão Europeia decidiu iniciar um processo por infração contra 10 Estados-Membros, incluindo Portugal (os outros são República Checa, Chipre, Grécia, França, Itália, Croácia, Lituânia, Polónia e Eslováquia), por violação, precisamente, do artigo 12.º-4 da Directiva (UE) 2015/2302.

Aí se refere que “a Comissão tem deixado constantemente claro que os direitos dos consumidores permanecem válidos no atual contexto sem precedentes e que as medidas nacionais de apoio à indústria não devem baixá-los”. Os Estados-Membros não estão, portanto, autorizados a prever medidas, ainda que temporárias e excecionais, que contrariem o previsto na Diretiva, nomeadamente baixando o nível de proteção dos consumidores.

Segundo a Comissão, nos 10 países referidos, são aplicáveis regras nacionais específicas sobre viagens organizadas que permitem aos organizadores de viagens organizadas emitir vales de viagem, em vez de reembolso em dinheiro, para viagens canceladas, ou adiar o reembolso muito além do período de 14 dias, tal como estabelecido na Diretiva.

Do ponto de vista formal, a Comissão enviou cartas de notificação para cumprir aos países referidos. Estes têm agora dois meses para responder à Comissão e tomar as medidas necessárias para colmatar as lacunas identificadas.

Portugal terá, portanto, como referimos no dia 24 de junho neste espaço, de revogar o regime do art. 3.º-1 do Decreto-Lei n.º 17/2020.

Note-se que, enquanto não for revogada, a norma é aplicável. As Diretivas não são diretamente aplicáveis, pelo que é este o regime português no atual contexto. O direito europeu prevê apenas, nestes casos, a possibilidade de responsabilização dos Estados-Membros.