Mais um pouco sobre viagens organizadas, cancelamentos e reembolsos

Legislação

Já aqui falamos de viagens organizadas por duas vezes nos últimos meses, a primeira a propósito do Decreto-Lei n.º 17/2020, de 23 de abril, que estabelece, em traços gerais, que o cancelamento de viagens organizadas marcadas para o período entre 13 de março de 2020 e 30 de setembro de 2020 não permite ao viajante a resolução imediata do contrato e o consequente direito ao reembolso, que só poderá ser efetivado no início do ano de 2022, e a segunda sobre a resposta europeia, embora nesse contexto nos tenhamos centrado essencialmente no transporte aéreo.

Imaginemos agora o seguinte exemplo: em 2019, o consumidor celebra um contrato de viagem organizada, a realizar em junho de 2020, que inclui o transporte aéreo e um cruzeiro, pagando de imediato. Nos termos do contrato, o consumidor pode cancelar a reserva até ao final de março de 2020, pagando um valor (penalização) correspondente a 10% do preço da viagem. Sem que a viagem tenha sido entretanto cancelada, o consumidor, na última semana de março, procede ao seu cancelamento.

Aplicar-se-á neste caso o Decreto-Lei n.º 17/2020, podendo a agência de viagens adiar o reembolso até 2022?

A resposta deve ser em sentido negativo. Com efeito, o regime aplica-se às viagens “que não sejam efetuadas ou que sejam canceladas por facto imputável ao surto da pandemia da doença Covid-19”. Ora, neste caso, a viagem foi cancelada ao abrigo da cláusula contratual que permite ao consumidor desvincular-se do contrato, sem indicação de motivo, dentro de um determinado prazo. Essa cláusula contratual visa precisamente dar segurança ao consumidor no momento da celebração do contrato, salvaguardando a posição da agência de viagens, que pode reter 10% do valor da viagem se este direito for exercido. Neste caso, o valor pago deve, portanto, ser restituído de imediato, depois de deduzidos os 10% da penalização.

Se a resposta fosse em sentido positivo, aplicando-se o Decreto-Lei n.º 17/2020 a este caso, considerar-se-ia o surto da pandemia como causa da cessação do contrato e o viajante poderia optar entre a emissão de um vale ou o reagendamento da viagem (art. 3.º-1). O reagendamento da viagem é impossível do ponto de vista lógico, uma vez que o consumidor já tinha cancelado a reserva antes do cancelamento da viagem. Quanto ao vale, este deve ser “de igual valor ao pagamento efetuado pelo viajante” [art. 3.º-1-a)]. Não pode, portanto, ter valor inferior. No exemplo que estamos a analisar, se a agência de viagens quiser impor a atribuição de um vale, prática que como já vimos não respeita o regime legal, não poderá nesse caso deduzir ao valor creditado os 10% da penalização. Seria ter o melhor dos dois Mundos, considerando simultaneamente que a causa da cessação do contrato é o arrependimento do consumidor (cancelamento da reserva) e o cancelamento da própria viagem.

Uma ultima nota para referir que este regime do art. 3.º-1 do Decreto-Lei n.º 17/2020 é excecional e temporário, limitando neste período o direito do consumidor à resolução do “contrato de viagem antes do início da mesma sem pagar qualquer taxa de [resolução], caso se verifiquem circunstâncias inevitáveis e excecionais no local de destino ou na sua proximidade imediata que afetem consideravelmente a realização da mesma ou o transporte dos passageiros para o destino”, previsto no art. 25.º-4 do Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março (regime jurídicos das viagens organizadas). O n.º 5 estabelece que a resolução “do contrato de viagem nos termos do número anterior confere ao viajante o direito ao reembolso integral dos pagamentos efetuados, sem direito a indemnização adicional, sendo a agência de viagens e turismo
organizadora responsável por esse reembolso”.

O problema é que estes preceitos transpõem o art. 12.º-2 da Diretiva (UE) 2015/2302, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa às viagens organizadas e aos serviços de viagem conexos, não podendo os Estados-Membros manter ou introduzir no direito nacional disposições divergentes (art. 4.º). Ora, é precisamente isso que o legislador português faz no art. 3.º-1 do Decreto-Lei n.º 17/2020, que viola, assim, o direito europeu, devendo ser eliminado.

A este propósito, a Vice-Presidente da Comissão Europeia, Margrethe Vestager, referiu no mês passado que “os consumidores têm direito ao reembolso em dinheiro. E, ponto final”.

Quebra de rendimentos e serviços públicos essenciais

Legislação

Há pouco menos de um mês, publicamos aqui um texto sobre a Lei n.º 18/2020, de 29 de maio, que alterou o art. 4.º da Lei n.º 7/2020, de 10 de abril, passando a prever-se no n.º 2 que a proibição de suspensão do fornecimento dos serviços de fornecimento de água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas se aplica “quando motivada por situação de desemprego, quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 %, ou por infeção por Covid-19”. Nos termos do n.º 3, estes factos também permitem ao consumidor, no que respeita a serviços de comunicações eletrónicas, a cessação unilateral do contrato, sem lugar a compensação ao fornecedor, ou a sua suspensão temporária.

Se a situação de desemprego ou a infeção por Covid-19 são fáceis de demonstrar, a demonstração da quebra de rendimentos pode ser mais complexa. Remeteu-se, então, esta questão para “portaria a aprovar,
no prazo de 15 dias, pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas das comunicações, do ambiente, da energia e da administração local” (art. 4.º-6).

Não foram 15 dias, mas foi hoje publicada a Portaria n.º 149/2020, de 22 de junho, que define e regulamenta os termos em que é efetuada a demonstração da quebra de rendimentos.

O art. 3.º-1 estabelece que a quebra de rendimentos “é calculada pela comparação entre a soma dos rendimentos dos membros do agregado familiar no mês em que ocorre a causa determinante da alteração de rendimentos e os rendimentos auferidos pelos mesmos membros do agregado no mês anterior”.

Não se define “causa determinante”, o que pode gerar dúvidas interpretativas. Poderá ser, no caso de trabalhadores dependentes, a colocação em regime de layoff e, no caso de trabalhadores independentes, a perda de um ou mais clientes. Em geral, poderá ser muito complexo perceber qual a “causa determinante”, no caso de se verificar uma concorrência de causas. É igualmente difícil conseguir delimitar esta análise por períodos mensais. Imaginemos um trabalhador independente que não recebeu nada nos dois meses anteriores e que perde entretanto todos os seus clientes. Não terá tido uma perda de rendimentos em comparação com o mês anterior, mas a sua situação caberá certamente no espírito do regime.

O art. 3.º-2 elenca os rendimentos relevantes para a aplicação deste regime, incluindo os de trabalho dependente, os de trabalho independente, os de pensões, os de prestações sociais recebidas de forma regular e os de outros rendimentos recebidos de forma regular ou periódica.

No que respeita aos comprovativos, a regra geral prevista no art. 2.º-1 é a da suficiência da declaração sob compromisso de honra, por parte do utente, que ateste quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20%. Os prestadores de serviços públicos essenciais poderão, em momento posterior, solicitar ao utente que comprove a alteração de rendimentos através do documento previsto no art. 3.º-3 (recibos de vencimento ou declaração da entidade patronal, no caso de rendimentos de trabalho dependente, ou documentos emitidos pelas entidades pagadoras ou outros documentos que evidenciem o recebimento, nos restantes casos).

Comercialização à distância – pluralidade de regimes e forma do contrato celebrado por telefone

Legislação

“O que nasce torto, tarde ou nunca se endireita”. Vem este adágio a propósito da legislação relativa à comercialização à distância.

Tudo começou tortíssimo, com uma divisão de regulamentação comunitária, de finais do século XX, teoricamente avançada, que para realidade substancialmente semelhante – venda sem a presença física simultânea das partes, no caso consumidores e profissionais, porque de legislação de defesa do consumidor se tratava e trata – criou diplomas distintos. A transposição para o ordenamento jurídico nacional manteve o par. Do âmbito de aplicação do diploma mais geral relativo à comercialização à distância retiraram-se os serviços financeiros.

Quem melhor que o próprio legislador para explicar razões e causas? É assim que no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 95/2006, de 29 de maio (DL 95/2006) se esclarece: “O Decreto-Lei n.º 143/2001, de 26 de Abril, procedeu à transposição para a ordem jurídica nacional da Directiva n.º 97/7/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio, relativa à protecção dos consumidores em matéria de contratos celebrados à distância, estabelecendo o regime jurídico aplicável à generalidade dos bens e serviços. Contudo, os serviços financeiros foram expressamente excluídos do âmbito de aplicação daquele diploma, pelo que surge a necessidade de consagrar um regime específico para os contratos à distância relativos a serviços financeiros. O presente decreto-lei vem, assim, transpor para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2002/65/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Setembro (Diretiva 2002/65/CE), relativa à comercialização à distância de serviços financeiros prestados a consumidores.”.

Admitindo-se como pressuposto, o que é duvidoso, que os serviços financeiros possam apresentar especificidades, neste contexto, que realmente o sejam, facilmente se seguiria a conclusão de que se justificaria um regime jurídico autónomo. Sucede, porém, que o regime proclamado como especial foi, no essencial, semelhante ao geral. Havia, naturalmente, alguns Wallys, mas não se justificava a autonomização[1].

Atente-se na cândida expressão do legislador que, por ser tão verdadeira, chega a ter um certo encanto. “Contudo, os serviços financeiros foram expressamente excluídos do âmbito de aplicação daquele diploma [o geral], pelo que surge a necessidade de consagrar um regime específico para os contratos à distância relativos a serviços financeiros.”. Donde, parece poder-se concluir, caso não se tivesse dado aquela ocorrência de exclusão, nada disto seria necessário. Poderia, provavelmente, bastar uma parte especial que regulasse o que fosse diferente.

Evoluindo-se em Diretiva e transposição, chega-se à Diretiva 2011/83/UE, de 25 de Outubro e ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de fevereiro (DL 24/2014). A Diretiva é uma manifestação do sonho jurídico europeu nunca concretizado de harmonizar a regulamentação relativa à proteção do consumidor. Partindo de amplos e interessantes objetivos, vai-se deixando cair quase tudo, acabando a harmonizar quase nada e, neste caso, com a consequência lateral de piorar o que já não é bom.

Consegue-se uma Diretiva, transposta para um diploma nacional que “(…) regula os contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento de forma tendencialmente unitária (…)”[2].

Ao procurar essa tendencial unidade de figuras, cria-se simultaneamente um regime geral mais exigente para os contratos celebrados à distância, mantendo-se inalterado o existente para contratos relativos a serviços financeiros, tidos como mais complexos e excluídos do diploma.

Tome-se, a título de exemplo, um aspeto específico do regime do contrato “celebrado por telefone” do DL 24/2014, em comparação com as denominadas “Comunicações por telefonia vocal” do DL 95/2006. Sejam lá o que forem um e outras hoje em dia, em 2020, com os dispositivos que a tecnologia coloca à nossa disposição, em que convergem som, imagem e possibilidades de enviar instantaneamente informação.

O diploma relativo à comercialização à distância de serviços financeiros não estabelece forma especial para os contratos que regula, criando até um regime menos exigente, que resulta da conjugação do seu artigo 18.º com o seu artigo 11.º, no que diz respeito à informação pré-contratual do contrato celebrado por “telefonia vocal”.

Em contrapartida, o DL 24/2014 estabelece, no seu artigo 5.º, n.º 7 relativo aos “Requisitos de forma nos contratos celebrados à distância” que “Quando o contrato for celebrado por telefone, o consumidor só fica vinculado depois de assinar a oferta ou enviar o seu consentimento escrito ao fornecedor de bens ou prestador de serviços, exceto nos casos em que o primeiro contacto telefónico seja efetuado pelo próprio consumidor.”.

O que significa, desde logo e em termos gerais, que embora a forma especial seja uma exceção no Direito, o legislador vem tornar formais os contratos celebrados com consumidor por telefone, o que não acontece nos contratos relativos a serviços financeiros celebrados nas mesmas condições.

Então, a comercialização à distância de serviços financeiros, nomeadamente através de telefone, mais complexos a ponto de originarem diploma comunitário e nacional autónomo, têm desde 2014 um regime menos exigente, designadamente no que diz respeito a um aspeto estrutural dos contratos, a sua forma.

Donde se conclui que o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. Resta, ainda, para os mais crentes, a anunciada e muito adiada revisão da Diretiva 2002/65/CE, como uma longínqua possibilidade de se alcançar um regime mais coerente e, idealmente, melhor.

[1] Maior detalhe em Paula Ribeiro Alves, Contrato de Seguro à Distância – O Contrato Electrónico, Almedina, Coimbra, 2009.

[2] Em Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 6.ª edição, Almedina, 2019, p. 204 que, na nota 571, apresenta bibliografia relevante sobre este regime.

Covid-19, espetáculos artísticos e festivais de verão

Legislação

No dia 29 de maio de 2020, caracterizado por uma atividade legiferante particularmente intensa, o legislador voltou à temática dos espetáculos culturais e artísticos, alterando algumas das medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia da doença Covid-19 que haviam sido estabelecidas pelo Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, que em boa hora foi comentado no nosso blog.

A Lei n.º 19/2020, de 29 de maio, além de alterar algumas das medidas excecionais e temporárias introduzidas por aquele diploma, vem regular de forma especial (além de excecional) os festivais (de verão) e espetáculos de natureza análoga.

Comecemos a nossa análise pelas alterações introduzidas.

Quanto ao âmbito temporal de aplicação, estende-se a aplicação do regime aos espetáculos reagendados ou cancelados cuja realização estivesse prevista até dia 30 de setembro deste ano (2.º-1), eliminando-se a referência ao final do estado de emergência que constava da versão original.

Note-se que este regime excecional se aplica aos eventos que não possam ser realizados na data e hora previstas (1.º-1 do DL n.º 10-I/2020, de 26 de março). O novo n.º 2 do art. 2.º vem  auxiliar a interpretação daquele preceito, considerando-se que um evento não pode realizar-se quando seja proibido/interdito por lei ou quando as restrições que são colocadas pelas autoridades de saúde pública para a sua realização o “desvirtuem” ou tornem “economicamente inviável”. Estes dois conceitos indeterminados concedem ampla margem aos promotores de espetáculos para invocar a aplicação deste regime, sabendo que este lhes é favorável. De facto, o essencial deste regime excecional, que constava já do diploma original, é prever que aos espetáculos não realizados neste período não se aplica art. 9.º-1-a) do Decreto-Lei n.º 23/2014, pelo que o portador do bilhete não pode exigir de imediato a restituição da importância correspondente ao preço dos bilhetes, salvo se o evento for cancelado.

A alteração mais relevante ficou reservada para o artigo 4.º. No seu n.º 1, onde antes se referia apenas o dever de reagendamento dos espetáculos, sempre que tal fosse possível, passou a constar também uma limitação temporal para esse reagendamento. Assim, se a nova data para a realização do evento não for marcada até 30 de setembro, tal adiamento valerá e será tratado como um cancelamento, para todos os efeitos. Mantém-se o limite de 1 ano para a realização do evento adiado (n.º 2).

Não pode deixar de notar-se uma inversão legislativa, ainda que tímida, reduzindo o âmbito da prevalência do reagendamento sobre o cancelamento e limitando o período de incerteza a que os consumidores poderiam ficar submetidos.

Assim, no caso dos eventos adiados sem marcação de nova data até 30 de setembro, os portadores de bilhete terão direito ao reembolso do valor dos mesmos, a realizar no prazo máximo de 60 dias úteis a contar dessa data, nos termos do art. 5.º-3 do diploma (não alterado).

Vejamos, por fim, os aditamentos mais relevantes.

Primeiro, atenta a provisoriedade de qualquer medida adotada neste momento, compromete-se o Governo a anunciar com uma periodicidade mínima mensal a manutenção, levantamento ou adequação das restrições à realização de espetáculos ao vivo.

Por fim, estabelece-se um regime especial para os festivais e eventos e natureza análoga, proibindo-se a sua realização até 30 de setembro de 2020 (art. 5.º-A-1). Salvaguarda-se a possibilidade de o Governo, mediante recomendação da Direção-Geral da Saúde (DGS), prorrogar ou antecipar o fim da proibição, nos termos do n.º 3 do mesmo preceito.

Excecionalmente, estes eventos poderão realizar-se, desde que cumpridas as regras de lotação máxima definidas pela DGS e mediante a marcação de lugares (n.º 2).

Não podendo ser realizados os festivais, têm os portadores de bilhetes direito à emissão de um vale de valor igual ao pago no momento da celebração do contrato, válido até 31 de dezembro de 2021, que pode ser utilizado para adquirir bilhetes para a nova data do mesmo espetáculo ou para outro espetáculo do mesmo produtor. Não utilizando o vale, o seu portador terá 14 dias para pedir o reembolso do valor correspondente.

Covid-19 e venda de bens de consumo

Legislação

A propósito do Decreto-Lei n.º 24-A/2020, de 29 de maio, que aditou o artigo 18.º-A ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020

Os nossos leitores já teriam certamente estranhado a circunstância de, em quase dois meses de legislação em torno da Covid-19, ainda não ter sido aprovada qualquer norma sobre venda de bens de consumo.

Aí está ela, no contexto da décima terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março.

O novo artigo 18.º-A, que tem como epígrafe “prorrogação dos prazos para exercício de direitos do consumidor”, estabelece que “os prazos para o exercício de direitos previstos no artigo 5.º-A do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, na sua redação atual, cujo término se tenha verificado entre os dias 18 de março de 2020 e 31 de maio de 2020, são prorrogados até 30 de junho de 2020”.

Esta medida reforça de forma clara os direitos dos consumidores, tendo como objetivo dar resposta à impossibilidade ou dificuldade de contacto com o profissional durante o período da crise pandémica, quer pelo eventual encerramento de estabelecimentos comerciais quer pela necessidade de confinamento do consumidor.

O artigo 5.º-A-1 do Decreto-Lei n.º 67/2003 estabelece prazos (i) para a denúncia da falta de conformidade (dois meses ou um ano a contar da deteção da falta de conformidade, consoante se trate de um bem móvel ou imóvel, respetivamente) e (ii) para a caducidade da ação (dois ou três anos a contar da data da denúncia, consoante se trate de um bem móvel ou imóvel, respetivamente).

A prorrogação prevista no artigo 18.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 implica que, se o prazo para a denúncia, por exemplo, tiver terminado no dia 19 de abril (por ter sido detetada a falta de conformidade no bem móvel no dia 19 de fevereiro), a denúncia ainda poderá ser feita até ao dia 30 de junho. Do mesmo modo, se o prazo para propor a ação terminasse no dia 19 de abril (por a denúncia ter sido feita nesse mesmo dia em 2018), prolonga-se até ao dia 30 de junho.

E se o período da garantia legal de conformidade, que não é prorrogado por este novo regime, terminar entre os dias 18 de março e 31 de maio sem que o consumidor tenha feito a denúncia? Nos termos do artigo 5.º-A-1 do Decreto-Lei n.º 67/2003, os direitos do consumidor caducariam nessa data, não sendo possível a denúncia em momento posterior. No entanto, deve fazer-se uma interpretação do artigo 18.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 tendo em conta a sua teleologia, permitindo que a denúncia da falta de conformidade seja feita após o termo final do prazo da garantia legal de conformidade, no limite até ao dia 30 de junho.

Salienta-se aqui um problema levantado pelo novo art. 18.º-A. Ao prever-se a prorrogação dos prazos que terminavam entre os dias 18 de março e 31 de maio até ao dia 30 de junho, os prazos que terminavam  depois (entre os dias 1 de junho e 29 de junho) vão terminar efetivamente na data prevista, ou seja mais cedo do que aqueles.

Recorrendo a um exemplo, imaginemos que o consumidor A detetou a falta de conformidade no dia 20 de janeiro, o consumidor B no dia 31 de março e o consumidor C no dia 1 de abril. Os consumidores A e B poderão cumprir o ónus de denúncia até ao dia 30 de junho, enquanto o consumidor C, apesar de ter detetado a falta de conformidade mais tarde, apenas o poderá fazer até ao dia 1 de junho.

Mais sobre Covid-19 e serviços públicos essenciais

Legislação

A propósito da Lei n.º 18/2020, de 29 de maio.

Quem nos acompanha com regularidade lembra-se seguramente do texto que publicamos há pouco menos de um mês sobre o art. 4.º da Lei n.º 7/2020 e o impacto da Covid-19 nos contratos relativos a serviços públicos essenciais.

O legislador volta agora ao tema, alterando o art. 4.º da Lei n.º 7/2020, o que vem resolver alguns problemas, mas criar outros.

As duas principais novidades introduzidas agora pela Lei n.º 18/2020 consistem (i) no alargamento do prazo relativo à proibição de suspensão do fornecimento dos serviços públicos essenciais abrangidos (água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas) e (ii) na limitação da proteção aos utentes, quer em função da sua natureza quer em função da situação em que se encontram.

Quanto ao prazo, a proibição de suspensão alarga-se agora até ao dia 30 de setembro. Ultrapassa-se, assim, a dúvida interpretativa suscitada pelo art. 4.º-1 da Lei n.º 7/2020, que consistia em saber se a proibição de suspensão se aplicava até ao dia 2 de junho (prazo de um mês a contar do termo final do estado de emergência) ou 30 de junho (mês subsequente ao do termo final do estado de emergência).

No que respeita à limitação da proteção dos utentes, por um lado, é necessário ter em conta que, no que concerne à prestação dos serviços de fornecimento de água, de energia elétrica e de gás natural, a regra se aplicava, na versão originária do diploma, independentemente da verificação de qualquer pressuposto. Ora, na versão atual, “a proibição de suspensão (…) aplica-se quando motivada por situação de desemprego, quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 %, ou por infeção por Covid-19”. Equipara-se, por baixo, ou seja, com um nível menor de proteção, os quatro serviços públicos essenciais abrangidos por este regime, uma vez que já era esta a regra para os serviços de comunicações eletrónicas.

Por outro lado, na versão originária do diploma, no que respeita à prestação dos serviços de fornecimento de água, de energia elétrica e de gás natural, o regime protegia qualquer utente (incluindo empresas) e não apenas a consumidores. Atualmente, com a inclusão de pressupostos que remetem para “desemprego”, “agregado familiar” ou “infeção”, teremos de estar necessariamente perante pessoas singulares, o que aponta para a restrição da proteção a utentes/consumidores.

Esta restrição entra em vigor no dia 1 de junho de 2020 (art. 3.º-2), o que significa que teremos uma redução do nível de proteção dos utentes, que poderá ser mais ou menos significativa em função da interpretação do prazo da proibição de suspensão previsto na versão originária do art. 4.º-1.

Lembramos, contudo, que, nos termos dos Regulamentos 255-A/2020 e 356-A/2020, da ERSE, não podem ser interrompidos os serviços de fornecimento de energia elétrica e de gás natural a qualquer utente/consumidor, independentemente da existência de um fundamento, até 30 de junho de 2020.

O diploma prolonga igualmente até 30 de setembro de 2020 o prazo dentro do qual o utente/consumidor de serviços de comunicações eletrónicas (em situação de desemprego ou com uma quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 % face aos rendimentos do mês anterior) se pode desvincular do contrato, mesmo que se encontre dentro do período de fidelização. Atribui-se igualmente ao utente/consumidor o direito à suspensão temporária do contrato.

Covid-19 e a cobrança de equipamentos de proteção individual em estabelecimentos de prestação de cuidados de saúde

Legislação

Muitos dos leitores já terão tido a oportunidade de se dirigir a um estabelecimento privado, social ou cooperativo de prestação de cuidados de saúde e sido informados sobre o aumento do preço da consulta, por motivos relacionados com a aquisição de equipamentos de proteção individual, utilizados no âmbito da epidemia SARS-CoV-2 e da infeção epidemiológica por Covid-19.

O crescente número de pedidos de informação suscitou, inclusive, a necessidade de a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) emitir o Alerta de Supervisão n.º 3/2020. Assim, assevera a ERS que é permitida a inclusão no preço de tais equipamentos, desde que haja a previsão desses custos numa tabela de preços disponível ao público. Decorrerá tal entendimento da já conhecida necessidade de o utente ter, na sua esfera, os necessários elementos a uma tomada de decisão esclarecida no momento da contratação, dos quais o montante a pagar é, naturalmente, um ponto fundamental no processo decisório.

Resta esclarecer, no entanto, qual o raciocínio jurídico a aplicar às consultas anteriormente agendadas, cujo preço estava já previamente acordado. Isto é, deverá a situação ímpar dos tempos em que vivemos justificar a alteração unilateral do preço? Ou deverá, em alternativa, ser honrado o contrato anteriormente celebrado e abster-se o profissional da cobrança do montante adicional, onerando a sua própria posição contratual?

Fica também por ilustrar qual o limite de aumento que uma tal cobrança poderá implicar. É sabido que a estas entidades prestadoras de cuidados de saúde é permitido o estabelecimento do preço. Contudo, não deixará de preocupar que uma determinada prestação de serviço que, numa situação normal, implicaria, por exemplo, o pagamento de 10 euros, permita agora a cobrança de um valor total de 25 euros, à ordem do cumprimento de aquisição de equipamentos de proteção individual.

Aproximam-se tempos curiosos. E de muita substância para o direito do consumo.

Covid-19, transporte aéreo e outras viagens

Legislação

Já aqui trouxemos há algumas semanas as novidades legislativas nacionais em matéria de viagens organizadas e reservas em empreendimentos turísticos e estabelecimentos de alojamento local, tendo então previsto que teríamos novidades em breve em matéria de transporte aéreo. É este o tema a que hoje nos dedicamos, embora, como verão, indo um pouco além, a outras viagens, incluindo as organizadas.

Em matéria de cancelamento de voos, vigora o Regulamento (CE) n.º 261/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos.

No dia 18 de março de 2020, foi emitida uma Comunicação pela Comissão Europeia com orientações interpretativas relativas aos direitos dos passageiros no contexto da pandemia.

Neste documento, defende-se que o cancelamento resultante de medidas restritivas adotadas a nível nacional se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias, para efeito do art. 5.º-3 do Regulamento 261/2004, o que determina que a transportadora aérea não é obrigada a pagar uma indemnização aos passageiros.

Não fica, naturalmente, afastado o direito ao reembolso do valor total pago, previsto nos arts. 5.º-1-a) e 8.º-1-a) do Regulamento, o qual deve ser feito no prazo máximo de sete dias, “em numerário, através de transferência bancária eletrónica, de ordens de pagamento bancário, de cheques bancários ou, com o acordo escrito do passageiro, através de vales de viagem e/ou outros serviços”.

O passageiro não tem, portanto, de aceitar qualquer solução que passe pelo reagendamento da viagem ou pela atribuição de um vale para utilização em momento posterior. Em alterativa ao reembolso do preço, o passageiro pode também exigir o reencaminhamento. O direito a assistência (art. 9.º do Regulamento) também se mantém.

Esta orientação é, no essencial, mantida pela Comissão Europeia na Recomendação, de 13 de maio de 2020, sobre vouchers oferecidos aos passageiros e viajantes como alternativa ao reembolso para viagens e serviços de transporte cancelados no contexto da pandemia da Covid-19, integrada no contexto da Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 13 de maio de 2020, sobre turismo e transporte em 2020 e mais além.

A Recomendação aplica-se, não apenas às viagens aéreas, mas também ao transporte ferroviário, marítimo e rodoviário e às viagens organizadas.

A aceitação de vouchers por parte dos clientes, em alternativa ao reembolso, é fortemente incentivada por esta Recomendação. Com efeito, no ponto 21 pode ler-se que “as organizações de consumidores e de passageiros nacionais e europeias devem incentivar viajantes e passageiros a aceitar, em alternativa ao reembolso em dinheiro, vouchers que apresentem as caraterísticas e beneficiem da proteção em caso de insolvência descritas nesta recomendação”.

Recomenda a Comissão, no ponto 2, que os vouchers tenham as caraterísticas indicadas nos pontos 3 a 12 e estejam cobertos por uma proteção em caso de insolvência “que seja suficientemente efetiva e robusta”.

No que respeita às caraterísticas dos vouchers, estes devem ter um período de validade mínima de doze meses, findo o qual, em caso de não utilização, o cliente deve ser automaticamente reembolsado no prazo de catorze dias. O cliente deve ser reembolsado do valor total do voucher ou do valor remanescente no caso de o ter utilizado parcialmente. Se o voucher tiver um período de validade superior aos doze meses, o cliente deve ter a possibilidade de solicitar o reembolso no máximo após doze meses.

O voucher deve poder ser utilizado para a reserva de viagens em data posterior ao seu período de validade. Deve igualmente poder ser utilizado junto do profissional para o pagamento de qualquer viagem que este comercialize, sugerindo-se aos profissionais que estendam esta possibilidade a viagens comercializadas por outros profissionais do mesmo grupo empresarial. No caso de a viagem ter sido contratada através de agência de viagens ou outro intermediário, nomeadamente plataforma digital, os vouchers devem poder ser utilizados para reservas através dessa agência de viagens ou intermediário.

Os profissionais devem ainda assegurar que os vouchers permitem aos clientes realizar a viagem inicialmente marcada (mesmo trajeto, mesmos serviços), independentemente do preço que a viagem tenha no momento da nova reserva. Esta possibilidade pode ficar sujeita, naturalmente, à disponibilidade de lugares.

O voucher deve poder ser transferido, sem custos, para qualquer outra pessoa (exceto, no caso das viagens organizadas, os custos que possam ser exigíveis por algum dos prestadores dos serviços incluídos no pacote).

Recomenda-se, ainda, que, “para tornar os vouchers mais atraentes”, os profissionais ponderem a atribuição de vouchers com um valor superior ao valor pago, exemplificando-se com a atribuição de um valor monetário adicional ou com a inclusão de outros serviços.

Por fim, recomenda-se que os vouchers indiquem o período de validade e os direitos conferidos ao cliente e sejam emitidos num suporte duradouro, sendo remetidos ou entregues, por exemplo, em papel ou através de mensagem de correio eletrónico.

Trata-se de (meras) recomendações, mas parece-nos que, na prática, estas recomendações vão servir de referência nesta matéria ao longo dos próximos meses.

Covid-19 e saldos – Lei n.º 20-E/2020

Legislação

O Decreto-Lei n.º 20-E/2020, de 12 de maio, vem, na senda de outros diplomas aprovados nos últimos meses, estabelecer um regime excecional e temporário motivado pela crise pandémica em curso, neste caso em matéria de venda em saldos.

A problemática da comercialização de bens ou serviços com redução de preço encontra-se no limiar entre o direito do consumo e o direito da concorrência: por um lado, o objetivo é assegurar o conhecimento dos preços pelo consumidor, garantindo que existe uma diferença efetiva entre o preço praticado antes e depois da promoção; por outro lado, pretende defender-se o funcionamento regular dos mercados.

A matéria encontra-se regulada pelo Decreto-Lei n.º 70/2007.

O art. 3.º contém uma enumeração taxativa das práticas comerciais com redução de preços: saldos, promoções e liquidação. Os profissionais apenas podem publicitar uma redução de preços se esta consistir numa destas práticas (art. 3.º-3) e não podem utilizar uma expressão que não corresponda à prática utilizada (art. 3.º-4).

Note-se que, uma vez que o preço dos bens ou serviços pode ser livremente fixado, um profissional pode, em qualquer momento, fazer um desconto no valor da contraprestação. Ao contrário do que se poderia supor da letra da lei (“só são permitidas as práticas comerciais com redução de preço nas modalidades referidas no número anterior”), não está em causa a permissão da prática, mas o seu anúncio ao público em geral.

Assim, se um bem custa € 20 num estabelecimento comercial e, na semana seguinte, o comerciante o coloca à venda por € 10, sem fazer qualquer publicidade ao desconto, trata-se de uma redução do preço, que é válida e não tem de respeitar o regime do diploma em análise (com exceção das poucas normas que não dependem da existência de uma redução de preço, como os arts. 7.º-2 e 9.º). O que não é permitido é anunciar que é conferido um desconto e não cumprir as determinações da lei.

Se o conceito de promoção é bastante amplo, abrangendo qualquer redução de preços, independentemente da duração e do período do ano, o conceito de saldos é mais limitado.

Com efeito, o Decreto-Lei n.º 10/2015 alterou significativamente a teleologia subjacente aos saldos, tendo estes deixado de ter como caraterística a circunstância de se realizarem em fim de estação, em datas predefinidas pela lei (28 de dezembro e 28 de fevereiro e entre 15 de julho e 15 de setembro), podendo realizar-se em quaisquer períodos do ano, desde que não ultrapassassem, no total, quatro meses por ano. O Decreto-Lei n.º 109/2019 foi ainda mais longe, alargando ligeiramente a duração máxima da comercialização em saldos, que corresponde agora a 124 dias por ano (art. 10.º-1). Os saldos caraterizam-se atualmente apenas pelo seu objetivo: escoamento acelerado de bens ou serviços [art. 3.º-1-a)].

É precisamente com o objetivo de ajudar os profissionais a escoar produtos que o art. 3.º do Decreto-Lei n.º 20-E/2020 estabelece que “a venda em saldos que se realize durante os meses de maio e junho de 2020 não releva para efeitos de contabilização do limite máximo de venda em saldos de 124 dias por ano, previsto no n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março, na sua redação atual”.

Pode ler-se no preâmbulo do diploma que se torna “imperioso atender a que os estabelecimentos comerciais que se mantiveram encerrados ou cuja atividade foi suspensa se viram privados da possibilidade de escoar os respetivos produtos, diretamente ou através dos serviços prestados, acumulando agora existências nos respetivos inventários, que se revela essencial escoar, não apenas para permitir um esvaziamento e renovação dos produtos, como também para dinamizar a respetiva atividade económica”. Acrecenta-se ainda no preâmbulo que importa “introduzir soluções que permitam aos estabelecimentos comerciais escoar as respetivas existências, o que passa, nomeadamente, pela modificação provisória do regime das práticas comerciais com redução de preço, criando oportunidades de venda ou de prestação de serviços para os operadores económicos e novas oportunidades de compra de bens e serviços para os consumidores”.

É interessante que a lei reconheça que o anúncio de “saldos” é especialmente eficaz (provavelmente no subconsciente do consumidor) para a comercialização de bens e serviços, tendo um efeito mais significativo na decisão de contratar do consumidor do que o anúncio de “promoções”, que sempre estaria acessível aos profissionais nos termos do Decreto-Lei n.º 70/2007, sem necessidade de qualquer alteração da lei.

É bem mais duvidosa a afirmação de que a simples permissão do anúncio de comercialização de bens e serviços em saldos crie “novas oportunidades” para os consumidores. As oportunidades já estão nos bens não comercializados anteriormente, vindo a lei permitir apenas que a redução do preço seja anunciada de uma forma mais eficiente para o profissional.

O art. 4.º do Decreto-Lei n.º 20-E/2020 vem ainda estabelecer que “o operador económico que pretenda vender em saldos durante os meses de maio e junho de 2020 está dispensado de emitir, para este período, a declaração, prevista no n.º 5 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março, na sua redação atual, dirigida à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica”. Flexibiliza-se, portanto, ainda um pouco mais o anúncio de uma operação de saldos durante o período indicado.

É interessante notar que, em Espanha, a mensagem que se pretende passar é diferente no que respeita a promoções feitas em estabelecimentos comerciais físicos. Vejamos a disposição adicional segunda da Orden SND/399/2020, de 9 de mayo, para la flexibilización de determinadas restricciones de ámbito nacional, establecidas tras la declaración del estado de alarma en aplicación de la fase 1 del Plan para la transición hacia una nueva normalidad: “Os estabelecimentos não podem anunciar ou adotar práticas comerciais que possam ter como efeito a aglomeração de pessoas dentro do estabelecimento comercial ou na sua vizinhança. Esta restrição não afeta as vendas com desconto ou as vendas em oferta ou promoção realizada através do site”.

Proíbe-se, portanto, em Espanha, durante este período, o anúncio de promoções ou saldos nos estabelecimentos comerciais. Sobrepõe-se, assim, o objetivo de evitar aglomerações ao objetivo de garantir o escoamento de existências por parte dos profissionais.

Covid-19 e serviços públicos essenciais – Lei n.º 7/2020

Legislação

A Lei n.º 7/2020, de 10 de abril, veio estabelecer regimes excecionais e temporários de resposta à epidemia SARS-CoV-2, tendo como objeto, entre outros, a “não interrupção de serviços essenciais” [art. 1.º-c)].

Esta matéria encontra-se tratada no art. 4.º, que regula a “garantia de acesso aos serviços essenciais”, protegendo os utentes de alguns serviços públicos essenciais.

Com efeito, o n.º 1 determina que, “durante o estado de emergência e no mês subsequente”, os serviços de fornecimento de água, de energia elétrica e de gás natural não podem ser suspensos por falta de pagamento pelo utente das respetivas faturas. Esta regra aplica-se a qualquer utente, independentemente de este ser consumidor ou profissional, pessoa singular ou coletiva.

No que respeita aos serviços de comunicações eletrónicas, é necessário ter em conta igualmente o n.º 2 do art. 4.º, que foi retificado pela Declaração de Retificação n.º 18/2020, de 30 de abril. Neste caso, ao contrário do que sucede com os serviços anteriormente referidos, a proibição de suspensão do fornecimento está dependente da verificação de determinado facto, o que significa que terá de ser fundamentada pelo utente. São três os factos previstos na lei, bastando que se verifique um deles: desemprego; quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 %; infeção por Covid-19.

Esta diferença de tratamento revela de forma clara uma hierarquização dos serviços públicos essenciais em função do seu caráter essencial, colocando-se as comunicações eletrónicas atrás da água, da energia elétrica e do gás natural. Parece-nos, contudo, estranho que assim seja em plena pandemia, uma vez que, entre outros aspetos, muitos trabalhadores estão a exercer a sua atividade à distância a partir de casa, os estudantes estão a ter aulas à distância a partir de casa e aconselha-se quem está doente a não se deslocar às urgências, telefonando em alternativa para a linha SNS 24. Todas estas atividades pressupõem o acesso a serviços de comunicações eletrónicas.

No caso de existirem valores em dívida relativos aos serviços públicos essenciais a que este regime se aplica (água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas), o art. 4.º-4 impõe aos prestadores de serviços o dever de elaborar um plano de pagamentos em conjunto com o utente. O utente encontra-se, assim, adicionalmente protegido, não tendo de pagar, de imediato e na totalidade, os valores da dívida acumulada durante este período de crise, devidos a partir do dia 20 de março de 2020 (v. art. 12.º-1).

O plano de pagamentos é definido por acordo entre o prestador de serviço e o cliente, iniciando-se apenas o respetivo cumprimento no segundo mês posterior ao termo final do estado de emergência. Fica por saber a consequência no caso de não ser possível a obtenção de um acordo entre as partes. Não sendo aprovada, entretanto, nenhuma outra norma sobre a matéria, a decisão terá de ser tomada, em última análise, por um tribunal, não podendo o prestador de serviço impor ao utente um plano de pagamentos com o qual este não esteja de acordo.

O art. 4.º-3 contém uma norma muito relevante no que respeita à proteção do utente do serviço de comunicações electrónicas, uma vez que lhe permite, em determinados casos, desvincular-se do contrato celebrado, mesmo durante o período de fidelização, sem ter de indemnizar o prestador do serviço.

A norma aplica-se “durante a vigência da presente lei”. Não definindo a lei um termo final para a sua vigência, julgamos que esta expressão se refere ao período indicado no art. 4.º-1, ou seja, “durante o estado de emergência e no mês subsequente”.

Se o consumidor (e não, portanto, qualquer utente) se encontrar (i) em situação de desemprego ou, em alternativa, (ii) com uma quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 % face aos rendimentos do mês anterior, pode denunciar o contrato de prestação de serviços de comunicações eletrónicas sem ter de compensar o prestador de serviço pelo incumprimento da cláusula de fidelização.

Este regime protege efetivamente os utentes de alguns serviços públicos essenciais, em especial aqueles que se encontrem em situação de maior vulnerabilidade na sequência da crise pandémica em curso.