Não raras vezes os centros que integram a rede de arbitragem prevista no art. 4.º da Lei n.º 144/2015 recebem reclamações de consumo em que o requerente formula, a final, pedido de declaração de inexistência de obrigação pecuniária alegadamente emergente de contrato concluído com o requerido. Pode suceder que, em momento anterior ou posterior ao início da fase de mediação em sede de RALC[1], a cobrança do correspetivo crédito pecuniário seja peticionada por meio de procedimento de injunção[2] apresentado pelo alegado credor (demandado nos procedimentos de RALC) contra o alegado devedor (demandante nos procedimentos de RALC).
A partir do acima exposto, propomo-nos desenvolver uma breve reflexão sobre se e em que medida a providência de injunção proposta pelo profissional influi no prosseguimento do processo de arbitragem e, por esta via, no conhecimento do mérito da causa pelo tribunal arbitral, não sem antes produzirmos duas breves considerações preliminares.
Assim, cumpre referir, em primeiro lugar, que a injunção se trata de um procedimento especial, que visa conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de contratos até € 15.000,00[3]. O procedimento injuntivo inicia-se com um requerimento apresentado pelo credor junto do Balcão Nacional de Injunções (BNI), secretaria-geral com competência exclusiva para a tramitação eletrónica do procedimento. Uma vez notificado para pagar, duas possibilidades se colocam em função do comportamento do requerido: ou o requerido não deduz oposição e o secretário judicial apõe fórmula executória no requerimento injuntivo (art. 14.º- 1 do Anexo ao DL 269/98) ou opta por deduzir oposição e o procedimento converte-se numa Ação Especial para o Cumprimento de Obrigações Pecuniárias Emergentes de Contratos (arts. 16.º-1 e 17.º-1 do Anexo ao DL 269/98).
Em segundo lugar, para os efeitos do presente texto, vamos considerar que o litígio de consumo submetido a resolução por entidade de RALC integra a “arbitragem necessária” que resulta da aplicação conjugada dos arts. 1.º-2 e 15.º-1 da Lei n.º 23/96 ou do disposto pelo art. 14.º-2 e 3 da Lei n.º 24/96 (ou, em alternativa, que o profissional se encontra vinculado à jurisdição do centro de arbitragem por força de declaração de adesão plena), pelo que assiste ao consumidor o direito potestativo de remeter a contenda à apreciação de tribunal adstrito a centro de arbitragem institucionalizada.
Isto posto, assentes as considerações que antecedem, estamos em condições de abordar o objeto deste texto – a interação entre a arbitragem necessária e o procedimento de injunção –, o que nos propomos realizar em face de quatro diferentes cenários, a tratar autonomamente.
1) Reclamação de consumo apresentada pelo consumidor junto do centro de arbitragem antes de aquele ser notificado de injunção apresentada junto do BNI, por iniciativa do profissional
Para a melhor compreensão dos contornos que encerra esta primeira hipótese (assim como as que se tratarão de seguida), afigura-se pertinente, antes de mais, discernir se e em que medida pode verificar-se um dos pressupostos processuais negativos previstos no art. 577.º, al. i) do CPC – litispendência ou caso julgado –, o que se afere, em relação a ambas as circunstâncias impeditivas do conhecimento do mérito da causa pelo julgador, pela tríplice identidade quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir entre ações (arts. 580.º-1 e 581.º do CPC).
Acresce que a litispendência pressupõe a existência de uma ação anterior ainda em curso e deve ser deduzida na ação proposta em segundo lugar, isto é, a ação para a qual o réu/demandado foi citado posteriormente (art. 582.º-1 e 2 do CPC)[4]. Já a situação de caso julgado – aqui entendida como exceção de caso julgado (e não como autoridade de caso julgado)[5] – depende do trânsito em julgado de sentença (ou despacho saneador) que decida do mérito da primeira causa (arts. 580.º-1 e 619.º-1 do CPC), assim definindo a relação material controvertida com força obrigatória dentro e fora do processo[6].
Ora, a injunção «não se trata (…) de qualquer forma processual diversa das já existentes na nossa lei adjetiva, mas sim do estabelecimento de uma “fase desjurisdicionalizada”, visando facultar relativamente a dívidas de montante reduzido a possibilidade (…) de acesso à acção executiva sem passagem pelo processo declarativo, garantida que se mostra a defesa do devedor através dos mecanismos normais de oposição à execução, decorrentes do artigo 815.º do Código de Processo Civil [de 1961][7]», sendo que “[a] atividade do secretário judicial não implica resolução, com recurso a critérios jurídicos, de quaisquer conflitos de interesses, não divergindo substancialmente daquela que às secretarias judiciais é atribuída por diversas disposições do processo”[8], pelo que os seus atos não revestem natureza materialmente jurisdicional[9].
Assim, retomando a hipótese em apreço, considerando que a injunção não reveste a natureza de uma verdadeira ação em que se lance mão de uma atividade jurisdicional de natureza cognitiva, carece de sentido a convocação do pressuposto processual da litispendência, isto mesmo que o demandado-injungente só venha a ser notificado da reclamação de consumo em data posterior ao momento da notificação do requerimento injuntivo ao demandante-injungido.
2) Reclamação de consumo apresentada pelo consumidor junto do centro de arbitragem e notificada ao profissional depois de o demandante-injungido ser notificado nos termos do art. 12.º-1 do DL n.º 269/98, mas antes da dedução de oposição por aquele último (ou de decorrido o prazo para o efeito)
Em relação ao quadro fático ora apresentado, para além do que já se deixou consignado acerca da (im)pertinência da convocação do pressuposto processual da litispendência, acompanhamos o entendimento segundo o qual “deve permitir-se que o consumidor inicie a arbitragem quando é notificado na injunção, desde que o faça antes da sua primeira intervenção no [procedimento de injunção]. Deve, depois, apresentar (…) oposição no procedimento de injunção, alegando a exceção de preterição do tribunal arbitral, uma vez que, nesse momento, já existe convenção de arbitragem [potestativa] (…) A empresa pode desistir da ação ou, se não o fizer, o juiz deve absolver o réu da instância, tendo em conta a exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral – arts. 96.º-b) e 577-a) do CPC”[10].
Note-se que, caso o demandante-injungido não invoque a exceção de preterição de tribunal arbitral (necessário) aquando da apresentação de oposição à injunção, tal implica a revogação tácita do ato, antes praticado, de sujeição do litígio à arbitragem de conflitos de consumo. Por outras palavras, com a apresentação de oposição à injunção nesses termos, o consumidor adota comportamento concludente no sentido da submissão do seu litígio a tribunal estadual, o que importa a perda de competência do tribunal arbitral para o julgamento da demanda[11].
3) Reclamação de consumo apresentada pelo consumidor junto do centro de arbitragem e notificada ao profissional depois de oposição à injunção apresentada pelo demandante-injungido
Por sua vez, no cenário ora em equação, considerando que a dedução de oposição à injunção importa a apresentação dos autos à distribuição que imediatamente se seguir em tribunal estadual (arts. 16.º-1 e 17.º-1 do Anexo ao DL n.º 269/98) – e a consequente transmutação do procedimento de injunção em ação declarativa –, o que é objeto de notificação ao réu pelo BNI[12], cremos que, aqui, de modo diverso, o centro de arbitragem deverá equacionar a verificação da exceção de litispendência com a ação judicial e, por via disso, concluir pela extinção do processo de RALC sem apreciação do mérito da causa (cf. art. 11.º-1-c) da Lei n.º 144/2015).
4) Reclamação de consumo apresentada pelo consumidor junto do centro de arbitragem depois de aposta fórmula executória ao requerimento injuntivo, por não apresentação de oposição à injunção, no prazo concedido para o efeito (art. 14.º-1 do Anexo ao DL n.º 269/98)
Finalmente, na hipótese que se descreve imediatamente acima, em linha com o que já preconizámos acerca da natureza jurídica do procedimento de injunção, forçoso é concluir que não se revela possível a formação de caso julgado material naquele procedimento, na medida em que nenhuma decisão jurisdicional de mérito é nele adotada, nem nenhum acolhimento legal se encontra para a tentativa de equiparação do ato de aposição de fórmula executória pelo secretário judicial a uma proclamação do Direito para o caso concreto, visto que tal ato se traduz num mero controlo “tabeliónico”[13] dos requisitos formais e objetivos previstos no DL n.º 269/98.
Assim, secundamos o entendimento de acordo com o qual a existência de um título executivo consistente em requerimento de injunção (e ao qual tenha sido aposta fórmula executória) e relativo a uma qualquer obrigação pecuniária emergente de contrato não impede o devedor de instaurar uma ação na jurisdição arbitral – ainda que os meios de defesa invocáveis possam resultar limitados pelo efeito preclusivo previsto no art. 14.º-A do Anexo ao DL n.º 269/98[14]–[15] –, sem que tal implique ou envolva qualquer julgamento a respeito da validade do referido título executivo[16]. E não se diga, em sentido contrário, que a ação arbitral não é o meio adequado para o devedor apresentar os seus meios de defesa, devendo antes fazê-lo em sede de oposição à execução, pois, se fosse de acolher idêntica compreensão, na eventualidade de nunca haver lugar à propositura de tal processo executivo, então o devedor, na prática, acabaria por se ver impedido de reagir perante um tribunal e colocar termo à situação de dúvida sobre a existência ou inexistência do direito do credor.
Em abono da posição que perfilhamos, para a qual a questão da validade do título executivo não judicial apenas releva no plano do processo executivo que, com base nele, seja instaurado, convocamos o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 264/2015, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do art. 857.º-1 do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho[17], “quando interpretada no sentido de limitar os fundamentos de oposição a execução[18] instaurada com base em requerimentos de injunção a qual foi aposta a fórmula executória”, pelo que a referida norma da lei processual civil postula atualmente, com a alteração operada pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, que “[s]e a execução se fundar em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, para além dos fundamentos previstos no artigo 729.º[19], aplicados com as devidas adaptações, podem invocar-se nos embargos os meios de defesa que não devam considerar-se precludidos, nos termos do artigo 14.º-A do regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª Instância, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, na sua redação atual”.
[1] Como se referiu aqui, nos centros de arbitragem de conflitos de consumo vigora uma lógica de “multi-step dispute resolution”, surgindo a mediação como fase prévia, seguida da conciliação e da arbitragem.
[2] O regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15.000 – procedimento de injunção e Ação Especial para o Cumprimento de Obrigações Pecuniárias Emergentes de Contratos (AECOP) – encontra-se previsto no Anexo ao DL n.º 269/98, de 1 de setembro.
[3] Embora não relevando para o objeto do presente texto, cumpre referir que, nos termos do art. 10.º-1 do DL n.º 62/2013, de 10 de maio, “[o] atraso de pagamento em transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, [também] confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida”.
[4] Exceto se, em ambas as ações, a citação tiver sido feita no mesmo dia, caso em que a ordem das ações é determinada pela ordem de entrada das respetivas petições iniciais (art. 582.º-3 do CPC).
[5] Sobre o caso julgado material, instituto que pode ser analisado numa dupla perspetiva – como exceção de caso julgado e como autoridade de caso julgado –, vide Miguel Teixeira de Sousa, “O objecto da sentença e o caso julgado material (O estudo sobre a funcionalidade processual)”, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 325, pp. 176 e 179.
[6] No que tange aos limites objetivos do caso julgado, embora alguma doutrina qualificada, sustentando uma compreensão restritiva, circunscreva a eficácia do caso julgado à parte injuntiva da decisão, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem adotando, de forma pacífica e constante, um entendimento mais amplo do alcance do caso julgado, considerando que os “precisos limites e termos em que [a sentença] julga” (art. 621.º do CPC) abrangem não só a conclusão do silogismo judiciário, mas também todas as questões e exceções suscitadas e solucionadas, ainda que implicitamente, na sentença, que funcionam como premissas necessárias e fundamentadoras da decisão final – cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06.06.2016, proferido no Processo n.º 1226/15.8T8PNF.P1, com vastas referências doutrinais e jurisprudenciais. Note-se que o efeito preclusivo do caso julgado conhece limites temporais, visto que a sentença só é válida rebus sic stantibus, pelo que a sua força se impõe enquanto se mantiverem os pressupostos que a determinaram (João de Castro Mendes, Limites Objetivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, pp. 178 e ss.).
[7] Correspondente ao atual art. 731.º do CPC.
[8] Sumário do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 95-399-2 de 27.06.1995, proferido no Processo n.º 94-0440.
[9] Sumário do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 95-654-1 de 21.11.1995, proferido no Processo n.º 95-0213.
[10] Neste sentido, Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, 2019, pp. 190-191.
[11] Assim, a Sentença do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto – Tribunal Arbitral de Consumo de 28.08.2015, proferida no Processo n.º 1219/2015, Relator: Paulo Duarte.
[12] Sendo devido, nesse caso, o pagamento de taxa de justiça pelo autor e pelo réu, no prazo de 10 dias a contar da data da distribuição – descontando-se, no caso do autor, o valor pago pela apresentação do requerimento de injunção (art. 7.º-6 do Regulamento das Custas Processuais).
[13] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.12.2018, proferido no Processo n.º 96/18.9T8CBR-A.C1.
[14] “Artigo 14.º-A (Efeito cominatório da falta de dedução da oposição)
1. Se o requerido, pessoalmente notificado por alguma das formas previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 225.º do Código de Processo Civil e devidamente advertido do efeito cominatório estabelecido no presente artigo, não deduzir oposição, ficam precludidos os meios de defesa que nela poderiam ter sido invocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2. A preclusão prevista no número anterior não abrange:
a) A alegação do uso indevido do procedimento de injunção ou da ocorrência de outras exceções dilatórias de conhecimento oficioso;
b) A alegação dos fundamentos de embargos de executado enumerados no artigo 729.º do Código de Processo Civil, que sejam compatíveis com o procedimento de injunção;
c) A invocação da existência de cláusulas contratuais gerais ilegais ou abusivas;
d) Qualquer exceção perentória que teria sido possível invocar na oposição e de que o tribunal possa conhecer oficiosamente.”
[15] Sem prejuízo da remissão expressa operada pela norma do art. 857.º-1 do CPC para o art. 14.º-A do Anexo ao DL n.º 269/98, cremos que este último artigo tem um âmbito de aplicação mais alargado, não se circunscrevendo à oposição à execução, antes se estendendo a todos os meios de reação/tutela jurisdicional possíveis à disposição do devedor.
[16] Neste sentido, a Sentença do CIAB – Tribunal Arbitral de Consumo de 13.09.2018, proferida no Processo n.º 1592/2018, Relator: Paulo Duarte.
[17] Na sua redação primitiva, a norma do art. 857.º-1 do CPC rezava nos seguintes termos: “Se a execução se fundar em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, apenas podem ser alegados os fundamentos de embargos previstos no artigo 729.º, com as devidas adaptações, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.”
[18] Como se esclarece no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.03.2019, proferido no Processo n.º 751/16.8T8LSB.L2.S1, a oposição à execução mediante embargos reveste a estrutura de ação declarativa autónoma de simples apreciação, cujo objeto é definido, na respetiva petição inicial, pelo executado, valendo cada um dos fundamentos materiais invocados como verdadeiras causas de pedir.
[19] Norma em que se elencam os fundamentos taxativos de oposição à execução baseada em sentença.