Novo Pacote Financeiro Digital na União Europeia

Legislação

A Comissão Europeia lançou, em 24 de setembro, um novo Pacote Financeiro Digital que inclui a sua Estratégia Financeira Digital e de Pagamentos, bem como propostas legislativas sobre crypto-assets, Distributed Ledger Technology (DLT) e resiliência digital.

A ideia geral é impulsionar a competitividade e inovação da Europa no setor financeiro, aumentando a escolha e oportunidades dos consumidores, mantendo a sua proteção e a estabilidade financeira do mercado.

As medidas visam a recuperação económica da UE, incentivando especialmente empresas digitais altamente inovadoras, procurando simultaneamente atenuar potenciais riscos.

Os principais objetivos da Estratégia Financeira Digital passam por tornar os serviços financeiros europeus mais favoráveis à digitalização e estimular a inovação e a concorrência responsáveis entre os fornecedores, reduzindo-se a fragmentação no mercado único digital. A gestão de dados está também no centro da estratégia, pretendendo-se promover a sua partilha, mantendo elevados padrões de privacidade e proteção de dados. A estratégia visa ainda assegurar condições equitativas entre os fornecedores, sejam empresas tradicionais ou tecnológicas, garantindo que à mesma atividade e riscos, se aplicam as mesmas regras.

No que diz respeito aos pagamentos, pretende-se que sejam seguros, rápidos e fiáveis para os consumidores e empresas europeias, incluindo soluções de pagamentos transfronteiriços instantâneos.

Novo consumo: revenge spending ou um consumo mais consciente?

Doutrina

O mês de agosto está quase chegando ao fim e, paralelamente, em Portugal estamos quase a completar os 6 meses de vivência no processo de confinamento-desconfinamento-“re”confinamento já típicos da pandemia de COVID-19. Nos últimos meses, o NOVA Consumer Lab tem investido grande parte do seu tempo na análise das mudanças inerentes ao “novo normal” da realidade global, atentos aos fatos que afetam o Direito e também a estrutura do consumo. E é com base nessa realidade que hoje nos debruçamos sobre as últimas novidades da análise comportamental dos consumidores.

Há muitos anos que a antropologia e a economia dedicam-se a questionar a forma como se desenvolve o consumo, analisando suas variantes ao longo do tempo e a conscientização ou não da sociedade. Em tempos de pandemia, quarentena e COVID-19, as ciências pareciam se contradizer para entender o futuro da influência desse “novo normal” sobre o comportamento das pessoas. O que seria consumido durante a quarentena? Como consumir? E o que se esperar da economia após meses de reclusão social e isolamento?

As tendências temerárias previam um cenário catastrófico, que em muito se concretizou, e a as curvas de análise econômica pareciam passear por todo alfabeto (L, U, V e por aí vai), indicando quedas acentuadas no consumo mundial. Alguns otimistas e simpatizantes da ideia de um consumo mais consciente chegaram a vislumbrar nos período de quarentena e do pós-pandemia uma chance para a racionalização, ou até mesmo controle no consumo social. No entanto, logo fomos (re)apresentados à noção do revenge spending.

O termo revenge spending, que em português significa “consumo por vingança”, foi cunhado na década de 80 na China, relacionando-se ao comportamento pós revolução cultural e ao crescimento vertiginoso do consumo no país após a reabertura dos mercados, como uma definição para o consumo massivo e repentino depois de um período de longa privação das atividades de comprar e de ir às lojas. Em última análise, estudiosos enxergaram o termo, inclusive, como uma tendência econômica.

A lenta e mundial reabertura das lojas físicas após a quarentena trouxe o fenômeno à tona, demonstrando que, além dos recordes de crescimento no consumo pela via digital, o retalho ainda mantinha um espaço especial tanto no gosto como nos bolsos dos consumidores. Uma espécie de consumo em resposta ao período de demanda reprimida levou, no sul da China, uma butique da marca francesa Hermès a vender o equivalente a US$ 2,7 milhões no primeiro dia de reabertura, em abril, como um de seus recordes históricos de [1].

O mesmo movimento também foi revelado em diferentes boutiques de marca de renome em países como Holanda, Suíça e França.

Já em Portugal, a reabertura dos centros comerciais no início de junho deste ano também deu provas do fenômeno quando as redes sociais foram pulverizadas com as imagens das longas filas do Braga Parque para que as pessoas pudessem entrar na loja da rede Primark[2], em contraposição ao imediatamente anterior período de ruas vazias e isolamento.

Ademais, os dados divulgados pelo último relatório da SIBS Analytics[3] demonstrou ainda a recomposição dos gastos dos portugueses após completos 100 dias da pandemia, onde declara que “volvidos 100 dias desde a declaração de estado de emergência e do início reconhecido da crise sanitária em Portugal, observamos três grandes fases no comportamento de consumo dos portugueses: “Preparação” (antes do início das restrições à mobilidade), “Confinamento” (redução abrupta e significativa do consumo) e “Retorno gradual” (progressiva recuperação dos níveis de transações)”. Interessante notar que, de acordo com estes dados, que consideram apenas os números de operações em canais SIBS, o valor médio de transação realizada pelos portugueses no período pós-pandemia (1 a 25 junho) é inclusive superior em € 3,2 ao que era anteriormente, no período normal de consumo (média de janeiro e fevereiro), quando fixava-se na faixa de € 42,6.

Evidentemente, as pesquisas a longo prazo sobre consumo e economia demonstram que mesmo com esta “vingança de consumo”, é pouco provável que se compensem as vendas perdidas e a crise gerada em toda economia global que, segundo os mesmos dados acima citados, apontam para os valores de € 8 mil milhões de quebra acumulada em transações. A dinâmica futura entre mercado e consumidores não dependerá somente da demanda reprimida, nem mesmo do fenômeno da vingança pós quarentena ou da boa colocação do mundo digital, mas de toda uma rede de estímulos oferecidos tanto pelas lojas físicas, quanto virtuais, para que o consumo possa voltar a se estabelecer dentro do “novo normal”. Seguiremos atentos ao que o futuro nos reserva.

 

[1] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/04/13/loja-da-hermes-na-china-fatura-us-27-milhoes-em-1-dia-pos-quarentena.htm

[2] https://diariodistrito.pt/praias-desertas-e-primark-com-filas-de-perder-de-vista/

[3] https://www.sibsanalytics.com/wp-content/uploads/2020/06/20200629_Report-100-dias-COVID-19_SIBS_Analytics.pdf

Comercialização à distância – pluralidade de regimes e forma do contrato celebrado por telefone

Legislação

“O que nasce torto, tarde ou nunca se endireita”. Vem este adágio a propósito da legislação relativa à comercialização à distância.

Tudo começou tortíssimo, com uma divisão de regulamentação comunitária, de finais do século XX, teoricamente avançada, que para realidade substancialmente semelhante – venda sem a presença física simultânea das partes, no caso consumidores e profissionais, porque de legislação de defesa do consumidor se tratava e trata – criou diplomas distintos. A transposição para o ordenamento jurídico nacional manteve o par. Do âmbito de aplicação do diploma mais geral relativo à comercialização à distância retiraram-se os serviços financeiros.

Quem melhor que o próprio legislador para explicar razões e causas? É assim que no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 95/2006, de 29 de maio (DL 95/2006) se esclarece: “O Decreto-Lei n.º 143/2001, de 26 de Abril, procedeu à transposição para a ordem jurídica nacional da Directiva n.º 97/7/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio, relativa à protecção dos consumidores em matéria de contratos celebrados à distância, estabelecendo o regime jurídico aplicável à generalidade dos bens e serviços. Contudo, os serviços financeiros foram expressamente excluídos do âmbito de aplicação daquele diploma, pelo que surge a necessidade de consagrar um regime específico para os contratos à distância relativos a serviços financeiros. O presente decreto-lei vem, assim, transpor para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2002/65/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Setembro (Diretiva 2002/65/CE), relativa à comercialização à distância de serviços financeiros prestados a consumidores.”.

Admitindo-se como pressuposto, o que é duvidoso, que os serviços financeiros possam apresentar especificidades, neste contexto, que realmente o sejam, facilmente se seguiria a conclusão de que se justificaria um regime jurídico autónomo. Sucede, porém, que o regime proclamado como especial foi, no essencial, semelhante ao geral. Havia, naturalmente, alguns Wallys, mas não se justificava a autonomização[1].

Atente-se na cândida expressão do legislador que, por ser tão verdadeira, chega a ter um certo encanto. “Contudo, os serviços financeiros foram expressamente excluídos do âmbito de aplicação daquele diploma [o geral], pelo que surge a necessidade de consagrar um regime específico para os contratos à distância relativos a serviços financeiros.”. Donde, parece poder-se concluir, caso não se tivesse dado aquela ocorrência de exclusão, nada disto seria necessário. Poderia, provavelmente, bastar uma parte especial que regulasse o que fosse diferente.

Evoluindo-se em Diretiva e transposição, chega-se à Diretiva 2011/83/UE, de 25 de Outubro e ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de fevereiro (DL 24/2014). A Diretiva é uma manifestação do sonho jurídico europeu nunca concretizado de harmonizar a regulamentação relativa à proteção do consumidor. Partindo de amplos e interessantes objetivos, vai-se deixando cair quase tudo, acabando a harmonizar quase nada e, neste caso, com a consequência lateral de piorar o que já não é bom.

Consegue-se uma Diretiva, transposta para um diploma nacional que “(…) regula os contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento de forma tendencialmente unitária (…)”[2].

Ao procurar essa tendencial unidade de figuras, cria-se simultaneamente um regime geral mais exigente para os contratos celebrados à distância, mantendo-se inalterado o existente para contratos relativos a serviços financeiros, tidos como mais complexos e excluídos do diploma.

Tome-se, a título de exemplo, um aspeto específico do regime do contrato “celebrado por telefone” do DL 24/2014, em comparação com as denominadas “Comunicações por telefonia vocal” do DL 95/2006. Sejam lá o que forem um e outras hoje em dia, em 2020, com os dispositivos que a tecnologia coloca à nossa disposição, em que convergem som, imagem e possibilidades de enviar instantaneamente informação.

O diploma relativo à comercialização à distância de serviços financeiros não estabelece forma especial para os contratos que regula, criando até um regime menos exigente, que resulta da conjugação do seu artigo 18.º com o seu artigo 11.º, no que diz respeito à informação pré-contratual do contrato celebrado por “telefonia vocal”.

Em contrapartida, o DL 24/2014 estabelece, no seu artigo 5.º, n.º 7 relativo aos “Requisitos de forma nos contratos celebrados à distância” que “Quando o contrato for celebrado por telefone, o consumidor só fica vinculado depois de assinar a oferta ou enviar o seu consentimento escrito ao fornecedor de bens ou prestador de serviços, exceto nos casos em que o primeiro contacto telefónico seja efetuado pelo próprio consumidor.”.

O que significa, desde logo e em termos gerais, que embora a forma especial seja uma exceção no Direito, o legislador vem tornar formais os contratos celebrados com consumidor por telefone, o que não acontece nos contratos relativos a serviços financeiros celebrados nas mesmas condições.

Então, a comercialização à distância de serviços financeiros, nomeadamente através de telefone, mais complexos a ponto de originarem diploma comunitário e nacional autónomo, têm desde 2014 um regime menos exigente, designadamente no que diz respeito a um aspeto estrutural dos contratos, a sua forma.

Donde se conclui que o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. Resta, ainda, para os mais crentes, a anunciada e muito adiada revisão da Diretiva 2002/65/CE, como uma longínqua possibilidade de se alcançar um regime mais coerente e, idealmente, melhor.

[1] Maior detalhe em Paula Ribeiro Alves, Contrato de Seguro à Distância – O Contrato Electrónico, Almedina, Coimbra, 2009.

[2] Em Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 6.ª edição, Almedina, 2019, p. 204 que, na nota 571, apresenta bibliografia relevante sobre este regime.

Inteligência Artificial na Sociedade e no Consumo

Doutrina

Consumo e Inteligência Artificial, à partida, poderiam não ter muito em comum. O consumo é efetuado por humanos que vêm providos de uma dose variável de inteligência natural, diligentemente aplicada nas compras que realizam. Para as relações jurídicas que estabelecem, que o Direito denomina contratos, usam a sua inteligência humana e, na tradição cimentada vinda da Economia, são até agentes racionais que, com base na informação que recebem, comparando as alternativas que se lhe apresentam, ponderam longa e disciplinadamente sobre o assunto, de modo a exercerem a sua assim esclarecida vontade de contratar.

Por estas razões, é defendido que o consumidor, um estereótipo cuja existência real não é tão abundante como poderia parecer, deve ser iluminado não só pela informação que recebe, como abençoado pela literacia, de modo a que compreenda os itens que lhe são obrigatoriamente facultados. Isto com vista ao equilíbrio duma relação, em abstrato, desequilibrada.

Sucede que, principalmente desde o início do milénio, com uma aceleração enorme nos últimos anos, a internet e a tecnologia digital vieram alterar substancialmente o modo como se vive e se consome. A disponibilidade individual de dispositivos móveis, a descomunal produção de dados, denominada big data, que é o alimento que potencia o desenvolvimento da Inteligência Artificial, o gigantesco aumento da capacidade de computação e a interligação de tudo em rede (por exemplo, com a Internet das Coisas) determinam que, hoje em dia, o consumo – seja online ou offline, isto é, no mundo digital ou físico – esteja umbilicalmente ligado, comandado, condicionado por Inteligência Artificial. Desde a produção, à distribuição, ao marketing, à venda, ao pagamento, potencialmente em todos os pontos da cadeia de valor de um negócio que deposita o bem ou serviço nas mãos ou no telemóvel do consumidor, está presente Inteligência Artificial. No Ocidente e no Oriente, em países desenvolvidos e em desenvolvimento o consumo em massa tem subjacente a Inteligência Artificial.

Por isso, é importante que entidades tendencialmente globais, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), publiquem informação atual e de qualidade sobre o tema, como o Relatório “Artificial Intelligence in Society”, disponível aqui em inglês, francês e coreano.

OECD (2019), Artificial Intelligence in Society, OECD Publishing, Paris.