TOI Story: Crónicas de uma Desvinculação

Consumo em Ação

Por Guilherme Bica Vicente, João Maria Dias e Sara de Almeida Patrício Mendes

Caso prático: No dia 1 de fevereiro, António recebeu uma chamada de um representante da TOI propondo-lhe a celebração de um contrato de prestação de serviços de comunicações eletrónicas incluindo internet, televisão, telefone e telemóvel.

Foi ainda informado de que, se aderisse de imediato, receberia totalmente grátis um telemóvel iCoiso XII, sendo a instalação do serviço (estimada pela empresa em € 300) também oferecida. O valor mensal seria, neste caso, de € 120, com um período de fidelização de 24 meses.

António aceitou de imediato. Recebeu, cinco minutos depois, uma mensagem SMS com a referência ao acordo e um pedido para confirmar se realmente pretendia aderir. António respondeu dizendo que sim.

No dia seguinte (2 de fevereiro), a TOI foi a casa de António instalar o serviço e este ficou operacional. No dia 8 de fevereiro, o telemóvel foi entregue também na casa de António. António reparou que se tratava de um iCoiso X (e não de um iCoiso XII conforme prometido). Estava tão atarefado que decidiu que reclamaria mais tarde.

No dia 21 de fevereiro, António ficou desempregado. Pretende reduzir despesas, pelo que o/a contactou nesse mesmo dia para saber se tem alguma forma de se desvincular do contrato celebrado com a TOI sem o pagamento de qualquer valor.

Resolução: Em primeiro lugar, cumpre fazer o enquadramento jurídico do contrato celebrado para depois invocar os diplomas de Direito do Consumo que são relevantes para o caso sub judice.

Ora, neste caso, estamos perante a celebração entre António (doravante “A”) e a TOI de um contrato misto com elementos de prestação de serviços/empreitada (em relação ao serviço de internet, da televisão e do telefone e respetiva instalação), de compra e venda (em relação ao telemóvel) e de locação (quanto aos bens associados aos serviços prestados – box, router, telefone fixo).

Por sua vez, trata-se de um contrato com período de fidelização, muito frequente no que respeita a contratos de comunicações eletrónicas, e que corresponde ao “período durante o qual o utilizador final se compromete a não denunciar um contrato ou a não alterar as condições acordadas” [art. 3.º, n.º 1, al. ee), da Lei n.º 16/2022, de 16 de agosto].

Nos termos da Lei n.º 16/2022, só é possível estabelecer-se períodos de fidelização mediante a atribuição de vantagens específicas ao consumidor (art. 131.º, n.º 4), que, neste caso, são, por um lado, a oferta do serviço de instalação (no valor de €300) e, por outro, a entrega “gratuita” de um telemóvel iCoiso XII.

No respeitante à oferta do telemóvel, desde logo, é importante esclarecer que, por muito que a TOI anuncie ao A que este irá receber o mesmo de forma totalmente gratuita, tal não significa que estejamos perante um negócio de doação que mereça autonomização.

Isto porque o consumidor não deixa de ter de pagar um preço para aceder ao conjunto de benefícios contratados (onde se inclui o telemóvel). Assim, a partir do momento em que A tem de pagar uma mensalidade de €120 durante 24 meses para que lhe seja entregue o telemóvel, não existe qualquer liberalidade.

Trata-se também de um contrato de adesão, na medida em que implica a aceitação por A de um conjunto de cláusulas não negociadas, predispostas unilateralmente pela TOI, pelo que o Decreto-Lei n.º 446/85 será também relevante.

Releva desde logo o Decreto-Lei n.º 84/2021, sendo que a sua aplicação (e dos demais diplomas) está dependente da circunstância de podermos classificar esta relação contratual como sendo uma relação de consumo. Olhando para a alínea g) do art. 2.º-A, é com efeito um consumidor ao abrigo deste diploma: trata-se de uma pessoa singular (elemento subjetivo) que celebra um contrato objetivamente abrangido pelo diploma e que atua com fins não-profissionais (elemento teleológico). Dada a informação da hipótese, é seguro assumir que os serviços e bens contratados são para uso doméstico.

Por sua vez, para compreender o elemento objetivo, devemos atender ao art. 3.º, n.º 1, alíneas a) e b). Daí, resulta que estão abrangidos os “contratos de compra e venda celebrados entre consumidores e profissionais” [al. a)] e os “bens fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada ou de outra prestação de serviços (…)” [al. b)]. Dito isto, o diploma é também aplicável aos bens fornecidos pela TOI como resultado dos serviços prestados, (router, box, telefone, entre outros). Já no que respeita à entrega do telemóvel, a conclusão de que este não se trata de um negócio gratuito autónomo permite a sua inclusão na alínea a) deste art. 3.º. Por fim, temos de averiguar se a TOI pode ou não ser considerada profissional nos termos da al. o) do art. 2.º (elemento relacional). Com a informação de que dispomos, tudo indica que a TOI se dedica à prestação deste tipo de serviços, atuando assim no âmbito da sua atividade profissional.

Concluímos, então, pela existência de uma relação de consumo nos termos do DL 84/2021. Por sua vez, sabemos que este diploma só se aplica aos contratos celebrados após 1 de janeiro de 2022, sendo que os negócios celebrados em data anterior continuam a ser regidos pelo já revogado Decreto-Lei nº 67/2003. Não tendo informação específica sobre o ano em que o contrato foi celebrado, vamos assumir que as datas mencionadas se referem ao presente ano de 2023. Assim, tendo o contrato sido celebrado a 1 de fevereiro de 2023, o DL 84/2021 é aplicável.

Estamos ainda perante um contrato celebrado por via telefónica, na sequência de um contacto promovido pela TOI, pelo que devemos ter também em conta o Decreto-Lei nº 24/2014.

Em primeiro lugar, no que se refere à definição dos elementos que compõem a relação de consumo, o DL 24/2014 aproxima-se do DL 84/2021, como podemos ver no art. 3.º, alíneas e) e n), do primeiro. Logo, os elementos subjetivo, teleológico e relacional estão também preenchidos no que toca a este novo diploma, sendo que só em relação ao elemento objetivo é que existem algumas particularidades, dada a natureza dos contratos que se incluem no âmbito objetivo de aplicação do diploma.

Em termos de âmbito de aplicação objetivo, este contrato é um contrato celebrado à distância (art. 2.º, n.º 1, do DL 24/2014). Isto porque se enquadra na definição prevista pela alínea h) do art. 3.º: além de o consumidor e o representante da TOI estarem fisicamente em locais diferentes, são utilizadas duas técnicas de comunicação à distância até à celebração do contrato (chamada telefónica e SMS). Por último, é necessário também que o contrato tenha tido por base um “sistema de venda ou prestação de serviços organizado para o comércio à distância”. Ora, o facto de o primeiro contacto ter partido do profissional por aquele canal específico é indicativo de que, à partida, se trata de uma forma utilizada pela TOI para contratar com os seus clientes.

Assim, concluímos que estamos perante um contrato celebrado à distância nos termos do DL n.º 24/2014 e que este diploma é aplicável.

Finalmente, a natureza dos serviços prestados pela TOI é relevante. Com efeito, os serviços de comunicações eletrónicas são abrangidos especificamente pela Lei n.º 23/96, nos termos do seu art. 1.º, n.º 2, al. d). De facto, o conceito de “comunicações eletrónicas” referido na lei é bastante amplo, incluindo a prestação de todo um conjunto de serviços que, na prática social, costumam ser contratados em “pacote” pelos consumidores, como sejam a própria Internet, televisão, telefone e telemóvel. 

Este diploma aplica-se às relações entre utentes e prestadores de serviços, nos termos dos n.os 3 e 4 do já referido art. 1.º. Assim, enquanto pessoa a quem são prestados serviços de comunicações eletrónicas, A é considerado utente (n.º 3). Já a TOI é considerada prestadora de serviços, enquanto entidade que presta o respetivo serviço de telecomunicações.

Feito este enquadramento e uma resenha dos principais diplomas aplicáveis, é agora altura de olhar para a questão colocada: poderá o A desvincular-se do contrato celebrado com a TOI sem o pagamento de qualquer valor?

Comecemos pelo DL 24/2014.

Primeiramente, em termos formais, cumpre-nos analisar os requisitos especiais de forma previstos no art. 5.º. Tendo sido a TOI a efetuar o primeiro contacto telefónico junto de A, não se aplica a exceção do n.º 8 deste artigo, pelo que o contrato está sujeito a forma especial: o consentimento escrito do consumidor. Tendo A confirmado a celebração do contrato via SMS, temos acordo escrito por parte do consumidor: o requisito especial de forma está preenchido, pelo que questões formais não poderão ser invocadas por A no sentido de se desvincular do contrato celebrado.

Como vimos, estamos perante um contrato misto: analisando as alíneas j) e k) do art. 3.º, é de destacar, aqui, que predomina o elemento do serviço, apesar de o contrato pressupor a aquisição do iCoiso XII. Isto porque o telemóvel assume uma relevância menor no plano estrutural do contrato, quando comparado com a prestação dos serviços. Isto terá implicações ao nível dos prazos para o exercício do direito ao arrependimento.

Não temos dados suficientes que indiquem a violação de deveres de informação pré-contratual (elencados no art. 4.º) pela TOI. Pode levantar-se a questão de saber se o dever de informação relativo ao direito de resolução [art. 4.º, n.º 1, alínea m)] foi cumprido pela TOI, uma vez que A não parece ter presente a ideia de que pode exercer, em abstrato, esse direito. Atendemos à circunstância de A estar em dúvida quanto aos fundamentos a que pode lançar mão para se desvincular do contrato: questão central do caso em apreço. É, por isso, possível suscitar a hipótese de que A não fora informado, nos termos da alínea m) do n.º 1 do art. 4.º, dado que, se a comunicação tivesse sido feita de forma efetiva, este estaria ciente dos direitos que lhe assistem. Esta hipótese poderia ter consequências ao nível do prazo previsto no art. 10.º, n.º 1, que veremos adiante. O incumprimento de deveres de informação (ainda que tivesse ocorrido e fosse relevante) não gera, em geral, qualquer invalidade, mas apenas sanções contraordenacionais (art. 31, n.º 2).

A figura central deste diploma é o direito ao arrependimento (direito de livre resolução), previsto no art. 10.º, idóneo para a pretensão de A de resolver o contrato sem quaisquer encargos.

A situação não se enquadra em qualquer exceção prevista no art. 17.º.

Ora, analisando o regime, temos três modalidades em termos de prazos de arrependimento: a alínea a), relativamente a contratos de prestação de serviços, e a alínea b), afeta aos contratos de compra e venda, são as que mais nos interessam, uma vez que estamos perante um contrato misto.

É controversa a questão de saber qual o elemento predominante deste contrato para efeitos do prazo para o exercício do direito de arrependimento: a vantagem concedida ao consumidor, nomeadamente, o iCoisoXII – quer pelo seu valor, preferência pessoal ou exclusividade da oferta – pode criar um incentivo acrescido à adesão a contratos de fidelização de serviços de telecomunicações, também com o propósito de aquisição do telemóvel. No entanto, entendemos que o elemento caracterizador do contrato se prende com a prestação dos serviços de telecomunicações, uma vez que, mesmo sendo relevante, a oferta do iCoiso XII surge como vantagem associada à fidelização ao serviço. Parece evidente que A queria, antes de tudo, poder usufruir de televisão, internet e serviços de telefone e telemóvel, sendo a oferta do iCoiso XII relevante, no limite, para a escolha da operadora ou da modalidade de fidelização. Assim, concluímos que a alínea b) do art. 10.º se deve aplicar ao caso sub judice.

Desta forma, A disporia de 14 dias para exercer o seu direito de livre resolução (partindo do pressuposto de que as partes não acordaram, nos termos do n.º 4 do art. 10.º, um prazo mais alargado), a contar da data da celebração do contrato, tal como consta do art. 10.º, n.º 1, al. a).

Tendo o contrato sido celebrado no dia 1 de fevereiro, a dia 21 já transcorrera o prazo para o exercício do direito de livre resolução. Conclui-se, então, que A também não poderia desvincular-se livremente do contrato por esta via.

É, no entanto, importante mencionar que, caso tenham efetivamente sido incumpridos os deveres de informação, pela TOI, constantes da alínea m) do n.º 1 do art. 4.º, o prazo para exercício do direito de resolução estender-se-ia para 12 meses, o que tornaria possível, nestes termos, a pretensão de livre resolução de A (art. 10, n.º 2).

Ressalve-se que, se A conseguisse exercer o direito de arrependimento, no que à prestação de serviços diz respeito e ocorrendo esta, pelos dados de que dispomos, desde o dia 2 de fevereiro (pelo que se presume o cumprimento do disposto no n.º 1 do art. 15) é pacífica a conclusão de que, tendo usufruído do serviço durante cerca de 19 dias, A deva compensar a TOI pelo período em que utilizou o serviço, nos termos do n.º 3 e para os efeitos do n.º 2 do art. 15.º. Assim, se €120 corresponderem a 31 dias, A deveria compensar a TOI em cerca de € 73,55. Não se abate, no montante total da prestação mensal, o valor – ou qualquer parcela do valor – do telemóvel que também é devolvido[1].

Avançando, no que respeita à obrigação de entrega do telemóvel, temos um problema de conformidade, na aceção do DL 84/2021, o qual merece uma análise mais detalhada. 

Nos termos do art. 5.º, incumbe ao profissional entregar ao consumidor bens que estejam em conformidade, de acordo com requisitos subjetivos e objetivos de conformidade.

In casu, as partes acordam expressamente na entrega de um telemóvel iCoiso XII, mas que na verdade é entregue um telemóvel de dois modelos abaixo: um iCoiso X. Trata-se assim de uma situação em que, claramente, o bem entregue pelo profissional não corresponde ao “tipo” previsto no contrato celebrado entre as partes [art. 6.º, al. a), do DL 84/2021], pelo que os requisitos subjetivos de conformidade não são respeitados. Apelamos a estes porque pode até acontecer que o telemóvel entregue não tenha qualquer problema, funcionando totalmente de acordo com o que é expectável daquele equipamento, do ponto de vista objetivo. Porém, haverá sempre um problema de conformidade, já que o consumidor não celebrou um contrato para a entrega de um iCoiso X, mas sim de um iCoiso XII. Concluímos, assim, pela existência de uma falta de conformidade entre a prestação realizada pelo profissional e o contrato celebrado com o consumidor. 

O profissional é responsável por qualquer falta de conformidade que se manifeste no período de três anos (art. 12.º, n.º 1), sendo que nos dois primeiros anos a contar da data da entrega do bem o consumidor beneficia de uma presunção bastante favorável: se a desconformidade se revelar nesse prazo, então esta presume-se existente à data da entrega do bem (art. 13, n.º 1). Num contexto em que o que está em causa é a entrega de um telemóvel de modelo diferente e em que, por isso, a falta de conformidade se manifesta imediatamente à data da entrega, não existem dúvidas de que a TOI é responsável. Pela sua própria natureza, a desconformidade só pode ser originária, pelo que a presunção do n.º 1 do art. 13 não pode ser ilidida pelo profissional.

Posto isto, a questão que agora se coloca é a seguinte: poderá esta falta de conformidade servir de fundamento à desvinculação unilateral do contrato por A, mediante o exercício de um direito de resolução [art. 15, n.º 1, al. c)]? 

Em primeiro lugar, existe uma hierarquização específica feita pelo art. 15.º em relação aos direitos que o consumidor pode exercer perante uma situação de desconformidade, nos termos da qual o recurso à resolução contratual é residual e só pode ocorrer com fundamento num dos pressupostos do n.º 4 do mesmo artigo, nomeadamente se não for possível proceder à reposição da conformidade do bem. Ainda assim, o art. 16.º prevê a possibilidade de o consumidor ultrapassar esta hierarquia, já que, se a desconformidade se manifestar no prazo de 30 dias após a entrega do bem, este pode solicitar, de imediato, a sua substituição ou a resolução do contrato (última parte). Ademais, no nosso caso, o bem foi entregue a 8 de fevereiro e a falta de conformidade manifestou-se precisamente nesse mesmo dia, já que A reparou desde logo que o bem não estava de acordo com o modelo que lhe havia sido prometido. Consequentemente, o prazo previsto no art. 16 foi plenamente respeitado, podendo A, à partida, solicitar a imediata resolução do contrato.

O problema está em que devemos olhar para os direitos que o DL 84/2021 atribui ao consumidor, perante uma situação de desconformidade, à luz da relevância que aquela assume no plano estrutural do contrato, entendido na sua globalidade. Neste sentido, estamos perante uma desconformidade que se refere apenas a uma parte dos bens prestados, já que só identificamos esse problema em relação à entrega do telemóvel. 

Como estabelece o n.º 3 do artigo 20.º, a regra geral em situações em que a desconformidade afeta apenas uma parte dos bens é a de que o consumidor tem direito a resolver o contrato apenas na parte relativa ao bem desconforme (resolução parcial do contrato). Contudo, excecionalmente, poder-se-á admitir a resolução do contrato como um todo, com base em desconformidade parcial, se provarmos que “não é razoavelmente expectável que o consumidor aceite a manutenção do contrato apenas com os bens conformes”. O critério é, portanto, de expetativa razoável do consumidor[2], com base em considerações como “a natureza e a finalidade do contrato, as circunstâncias do caso e os usos e práticas das partes envolvidas” (considerando 24 da Diretiva 2019/771/EU).

Outro aspeto importante é que o n.º 3 do art. 20.º só se refere expressamente às situações em que o consumidor tem um fundamento de resolução nos termos do art. 15.º (n.º 4), pelo que se poderia colocar a questão de saber se essa norma se aplica também às situações de resolução que resultem do exercício de um direito de rejeição (art. 16.º). Com efeito, entendemos que não faria sentido que o direito atribuído ao consumidor (poder optar imediatamente pela resolução do contrato caso a desconformidade se manifeste pouco tempo após a entrega) não estivesse sujeito às limitações previstas no n.º 3 do art. 20.º, nos casos de desconformidade de parte dos bens prestados, sob pena de comprometer a lógica já referida.

Dito isto, atendendo à “natureza e finalidade” do contrato misto sub judice, a desconformidade relativa ao telemóvel em nada contamina o funcionamento dos restantes serviços prestados pelo profissional e dos quais o consumidor já usufruiu.

Na verdade, trata-se de uma desconformidade que não faz com que seja irrazoável, à luz da ratio do DL 84/2021, que o consumidor mantenha o contrato só com os bens conformes, tendo em conta que, no âmbito de um contrato como este, o consumidor não deixa de preservar o interesse nos serviços de telecomunicações que lhe são prestados e que constituem a parte mais significativa do contrato (conforme supramencionado), bem como nos respetivos bens que os incorporam (a box, o router, o telefone, etc.).

Diferente seria se a falta de conformidade se reportasse ao router, por exemplo, deixando este de funcionar: neste cenário, não deixamos de estar perante uma desconformidade em apenas parte dos bens entregues, mas a sua relevância já seria significativa, ao ponto de afetar o funcionamento de outros serviços prestados pela TOI (como o serviçoda televisão, que regra geral só funciona havendo Internet), o que poderia motivar a irrazoabilidade da subsistência da relação contratual como um todo.

Por isso, concluímos que não deve ser admitido que A se possa desvincular unilateralmente do contrato com fundamento na entrega do telemóvel de modelo errado, tendo em conta uma análise holística desta relação contratual.

Em suma, o consumidor tem apenas direito à resolução parcial do contrato, restituindo o telemóvel à TOI [art. 20.º, n.º 4, al. a)]. O problema está em saber como é que se deve concretizar a obrigação de restituição do preço pela TOI [art. 20.º, n.º 4, al. b)], já que o consumidor não pagou um preço específico pelo bem (paga, apenas, pela prestação dos serviços de telecomunicações, no qual o valor do bem está incluído).

No nosso entender, na ausência de qualquer previsão legal relativa à restituição do preço, há duas soluções que se afiguram possíveis: a primeira seria descontar a totalidade do valor do telemóvel na totalidade do preço a pagar durante o período de fidelização (€ 2.880, correspondentes à soma de cada prestação durante os 24 meses), devolvendo a diferença ao consumidor. Outra solução, que nos parece mais acertada, seria a de dividir o valor total do telemóvel pelos 24 meses de fidelização e descontar parte correspondente desse valor a cada prestação mensal, de forma a reduzir o preço pago pelo consumidor em cada mês.

Esta solução afigura-se-nos enquanto a mais correta uma vez que permite acautelar a circunstância de o contrato poder cessar antes dos 24 meses de fidelização, pelo que talvez não faça sentido ter como valor de referência o preço total da fidelização (que só se alcança se o contrato for executado na totalidade), sendo preferível ter por referência o valor a pagar a cada mês. Assim, assegura-se que, devolvendo o telemóvel, o consumidor paga apenas pelos serviços de telecomunicações de que usufrui efetivamente a cada mês.

Tratando-se de um contrato de adesão com período de fidelização como supramencionado cabe abordar a matéria das cláusulas contratuais gerais (“CCG”), previstas no DL 446/85. Como sabemos, estas são cláusulas pré-elaboradas por uma das partes sem negociação prévia e cujo conteúdo o destinatário não pode influenciar[3]. Por esta natureza de imposição unilateral, é importante que tais cláusulas passem por um controlo triplo, nomeadamente: 1. Conexão com o contrato; 2. Comunicação ao aderente e 3. Prestação de esclarecimentos e informações. A inserção dessas CCG num contrato singular implica a verificação destes três requisitos cumulativos.

Ora, no caso sub judice não parece haver qualquer problema de conexão, já que a TOI fez referência às cláusulas integrantes do contrato quer oralmente, quando explicou o contrato ao telefone, quer por escrito (SMS com referência ao acordo). Num segundo momento, cabe avaliarmos a comunicação destas CCG. O art. 5.º, n.º 1, do DL 446/85 prevê este requisito, explicitando, no seu n.º 2, os elementos que a comunicação deve respeitar, nomeadamente a realização de modo adequado e com a antecedência necessária. Acresce ainda que deve ser tomada em conta a importância do contrato, a sua extensão e a complexidade das cláusulas. Assim sendo, tratando-se de um contrato cujo objeto são comunicações eletrónicas (isto é, serviços essenciais no quotidiano digital), com uma fidelização de 24 meses, parece-nos tratar-se de um contrato de elevada importância e complexidade. Posto isto, podemos aqui questionarmo-nos se, porventura, foram devidamente comunicadas todas as cláusulas relevantes à celebração deste contrato. Aí, seria importante perceber se o critério da antecedência adequada foi respeitado ou se, por outro lado, o meio utilizado era idóneo a que um consumidor de comum diligência conhecesse das cláusulas.

Se concluíssemos pelo não preenchimento do requisito da comunicação, e ao abrigo do art. 8.º, al. a), isto resultaria na exclusão das cláusulas não comunicadas. Não obstante, e ainda que esta hipótese seja interessante, não nos parece de grande pertinência para o resultado desejado por A.

Para além disso, cabe agora olharmos para as práticas comerciais utilizadas pela TOI para celebrar o contrato com A, à luz do Decreto-Lei n.º 57/2008.

O art. 4.º proíbe as práticas comerciais desleais. Temos categorias específicas de práticas comerciais desleais, entre as quais as ações enganosas. O art. 7.º, n.º 1, estabelece como enganosa qualquer prática comercial “que contenha informações falsas ou que, mesmo sendo factualmente corretas, por qualquer razão, nomeadamente a sua apresentação geral, induza ou seja suscetível de induzir em erro o consumidor (…)”, conduzindo-o, ou sendo passível de o conduzir, a tomar uma decisão que não tomaria. Cabe acrescentar que, ao prever a possibilidade de a informação ser “factualmente correta”, o regime assegura que não basta a informação ser verdadeira, mas que o seu fornecimento também tem de ser realizado de forma correta pelo profissional, de modo a não induzir o consumidor em erro. 

Assim sendo, a TOI, ao prometer um iCoiso XII, entregando, depois, um iCoiso X, estará sempre a incorrer numa prática comercial desleal: quer tenha fornecido informações falsas a título de publicidade enganosa para incentivar o consumidor a contratar; ou ainda, quer tenha prestado informações factualmente corretas, mas fornecendo bem diferente do prometido. Trata-se assim de uma ação enganosa prevista no art. 7.º, n.º 1, al. a), do DL 57/2008.

Além disso, o art. 8.º apresenta, taxativamente, um conjunto de ações que são sempre tidas como enganosas, independentemente das circunstâncias. Na alínea i), proíbe-se a declaração falsa de que o bem ou as condições especiais só estarão disponíveis durante um período muito limitado: isto porque se procura evitar que o profissional obtenha uma decisão imediata do consumidor, pouco ponderada e informada. Ora, neste caso, a TOI liga a A, apresentando uma proposta contratual à qual acrescenta um conjunto de condições especiais, caso o último aderisse de imediato (a aquisição do iCoiso XII e a instalação do serviço de modo gratuito). Atendendo à natureza genérica do bem oferecido (o iCoiso XII), não parece haver elementos que justifiquem que a sua disponibilidade seja de tal forma limitada que o consumidor tenha de aderir de imediato, sob pena de não aceder ao mesmo. Diferente seria se o bem se revestisse de características muito específicas ou que fosse mais raro: caso em que a declaração de que só estaria disponível se o consumidor aderisse de imediato poderia ser razoavelmente presumida como verdadeira.

Independentemente disso, tal prática comercial não é apenas enganosa (criando no consumidor a ideia incorreta de que a disponibilidade das condições fornecidas é limitada), como permite ao profissional explorar a posição vulnerável do consumidor, limitando a sua liberdade de decisão e fazendo-o crer que encontra uma oportunidade única, não havendo espaço para esclarecimento, ponderação e comparação. Isto resulta numa sujeição de A a um contrato que limita a sua liberdade contratual e capacidade negocial durante 24 meses, influenciado sob pressão de aproveitar estas vantagens e ofertas “especiais”.

Ademais, a classificação do telemóvel e da instalação como “totalmente gratuito(s)” é, ainda, uma prática enganosa à luz da al. x) do art. 8.º. Aqui, está em causa a indução do consumidor em erro relativamente à gratuitidade do bem e serviço: como sabemos, não basta estar a palavra “gratuito” para o ser, já que A não deixa de pagar um preço (€ 120/mês). A ratio por detrás desta prática é semelhante à anterior: proteger o consumidor de contratar acreditando estar a ter uma vantagem quando, na realidade, fora apenas uma técnica de incentivo e manipulação comportamental do mesmo.

Os direitos do consumidor lesado vêm previstos no art. 14.º, n.º 1, do DL 57/2008. Esta norma atribui ao consumidor o direito à redução adequada do preço (o que aqui parece não fazer sentido, dado que A se quer desvincular do contrato sem o pagamento de qualquer valor) ou à resolução do contrato, relativamente aos produtos adquiridos por efeito de uma prática comercial desleal. Por sua vez, o n.º 2 prescreve que tal direito não poderá ser exercido se constituir um abuso de direito; ora, teremos aqui algum abuso de direito por A? 

Antes do mais, cabe destacar que o DL 57/2008 estabelece uma proteção objetiva do consumidor, prevendo um conjunto de práticas comerciais desleais que devem ser sancionadas. Assim sendo, estando desempregado ou não, A não deixou de ser enganado por tais práticas, tendo, por isso, fundamento para, ao abrigo do art. 14.º, n.º 1, solicitar a resolução do contrato. O facto de A querer desvincular-se do contrato, fruto da situação de desemprego em que se encontra, não torna o exercício deste direito abusivo, na medida em que, objetivamente, tivemos a utilização de práticas comerciais desleais pela TOI.

Não obstante, em última instância, a própria Lei 16/2022 reconhece a suspensão do contrato em situações de desemprego do consumidor [art. 137.º, n.º 1, al. e)], transformando-se posteriormente em caducidade, caso a situação se prolongue por mais de 180 dias (art. 137.º, n.º 4). Logo, de todo o modo, a circunstância de A estar desempregado é atendível à luz deste diploma.

Por fim, tendo em vista o exercício dos direitos que aqui explorámos, o consumidor poderia provocar a intervenção de um Tribunal Arbitral, sem que o profissional a isso se pudesse opor, uma vez que o valor da causa é inferior a € 5.000 (art. 14.º da Lei de Defesa do Consumidor).


[1] Seguimos, aqui, apesar da existência do telemóvel enquanto objeto do contrato, o raciocínio do Tribunal de Justiça da União Europeia, no Acórdão de 8 de outubro de 2020, EU contra PE Digital GmbH, C‑641/19, EU:C:2020:808, n.º 27-29, 31 e 32, concluindo-se, neste último, que “(…) para determinar o montante proporcional a pagar pelo consumidor ao profissional (…), deve, em princípio, ter‑se em conta o preço acordado nesse contrato para o conjunto das prestações objeto do mesmo contrato e calcular o montante devido pro rata temporis. Só quando o contrato celebrado prevê expressamente que uma ou várias das prestações são fornecidas integralmente desde o início da execução do contrato, de maneira distinta, a um preço a pagar separadamente, é que o preço integral previsto para tal prestação deve ser tido em conta no cálculo do montante devido ao profissional (…)”. Ver, também, no mesmo sentido (por analogia): Acórdãos de 23 de janeiro de 2019, Walbusch Walter Busch, C‑430/17, EU:C:2019:47, n.o 41; de 27 de março de 2019, Slewo, C‑681/17, EU:C:2019:255, n.o 39; e de 10 de julho de 2019, Amazon EU, C‑649/17, EU:C:2019:576, n.o 44.

[2] Jorge Morais Carvalho, Compra e Venda e Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais – Anotação ao Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro, Almedina, 2022, pp. 75 e 76.

[3] Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 6.ª ed., Almedina, 2019, p. 117.

Comercialização à distância – pluralidade de regimes e forma do contrato celebrado por telefone

Legislação

“O que nasce torto, tarde ou nunca se endireita”. Vem este adágio a propósito da legislação relativa à comercialização à distância.

Tudo começou tortíssimo, com uma divisão de regulamentação comunitária, de finais do século XX, teoricamente avançada, que para realidade substancialmente semelhante – venda sem a presença física simultânea das partes, no caso consumidores e profissionais, porque de legislação de defesa do consumidor se tratava e trata – criou diplomas distintos. A transposição para o ordenamento jurídico nacional manteve o par. Do âmbito de aplicação do diploma mais geral relativo à comercialização à distância retiraram-se os serviços financeiros.

Quem melhor que o próprio legislador para explicar razões e causas? É assim que no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 95/2006, de 29 de maio (DL 95/2006) se esclarece: “O Decreto-Lei n.º 143/2001, de 26 de Abril, procedeu à transposição para a ordem jurídica nacional da Directiva n.º 97/7/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio, relativa à protecção dos consumidores em matéria de contratos celebrados à distância, estabelecendo o regime jurídico aplicável à generalidade dos bens e serviços. Contudo, os serviços financeiros foram expressamente excluídos do âmbito de aplicação daquele diploma, pelo que surge a necessidade de consagrar um regime específico para os contratos à distância relativos a serviços financeiros. O presente decreto-lei vem, assim, transpor para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2002/65/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Setembro (Diretiva 2002/65/CE), relativa à comercialização à distância de serviços financeiros prestados a consumidores.”.

Admitindo-se como pressuposto, o que é duvidoso, que os serviços financeiros possam apresentar especificidades, neste contexto, que realmente o sejam, facilmente se seguiria a conclusão de que se justificaria um regime jurídico autónomo. Sucede, porém, que o regime proclamado como especial foi, no essencial, semelhante ao geral. Havia, naturalmente, alguns Wallys, mas não se justificava a autonomização[1].

Atente-se na cândida expressão do legislador que, por ser tão verdadeira, chega a ter um certo encanto. “Contudo, os serviços financeiros foram expressamente excluídos do âmbito de aplicação daquele diploma [o geral], pelo que surge a necessidade de consagrar um regime específico para os contratos à distância relativos a serviços financeiros.”. Donde, parece poder-se concluir, caso não se tivesse dado aquela ocorrência de exclusão, nada disto seria necessário. Poderia, provavelmente, bastar uma parte especial que regulasse o que fosse diferente.

Evoluindo-se em Diretiva e transposição, chega-se à Diretiva 2011/83/UE, de 25 de Outubro e ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de fevereiro (DL 24/2014). A Diretiva é uma manifestação do sonho jurídico europeu nunca concretizado de harmonizar a regulamentação relativa à proteção do consumidor. Partindo de amplos e interessantes objetivos, vai-se deixando cair quase tudo, acabando a harmonizar quase nada e, neste caso, com a consequência lateral de piorar o que já não é bom.

Consegue-se uma Diretiva, transposta para um diploma nacional que “(…) regula os contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento de forma tendencialmente unitária (…)”[2].

Ao procurar essa tendencial unidade de figuras, cria-se simultaneamente um regime geral mais exigente para os contratos celebrados à distância, mantendo-se inalterado o existente para contratos relativos a serviços financeiros, tidos como mais complexos e excluídos do diploma.

Tome-se, a título de exemplo, um aspeto específico do regime do contrato “celebrado por telefone” do DL 24/2014, em comparação com as denominadas “Comunicações por telefonia vocal” do DL 95/2006. Sejam lá o que forem um e outras hoje em dia, em 2020, com os dispositivos que a tecnologia coloca à nossa disposição, em que convergem som, imagem e possibilidades de enviar instantaneamente informação.

O diploma relativo à comercialização à distância de serviços financeiros não estabelece forma especial para os contratos que regula, criando até um regime menos exigente, que resulta da conjugação do seu artigo 18.º com o seu artigo 11.º, no que diz respeito à informação pré-contratual do contrato celebrado por “telefonia vocal”.

Em contrapartida, o DL 24/2014 estabelece, no seu artigo 5.º, n.º 7 relativo aos “Requisitos de forma nos contratos celebrados à distância” que “Quando o contrato for celebrado por telefone, o consumidor só fica vinculado depois de assinar a oferta ou enviar o seu consentimento escrito ao fornecedor de bens ou prestador de serviços, exceto nos casos em que o primeiro contacto telefónico seja efetuado pelo próprio consumidor.”.

O que significa, desde logo e em termos gerais, que embora a forma especial seja uma exceção no Direito, o legislador vem tornar formais os contratos celebrados com consumidor por telefone, o que não acontece nos contratos relativos a serviços financeiros celebrados nas mesmas condições.

Então, a comercialização à distância de serviços financeiros, nomeadamente através de telefone, mais complexos a ponto de originarem diploma comunitário e nacional autónomo, têm desde 2014 um regime menos exigente, designadamente no que diz respeito a um aspeto estrutural dos contratos, a sua forma.

Donde se conclui que o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. Resta, ainda, para os mais crentes, a anunciada e muito adiada revisão da Diretiva 2002/65/CE, como uma longínqua possibilidade de se alcançar um regime mais coerente e, idealmente, melhor.

[1] Maior detalhe em Paula Ribeiro Alves, Contrato de Seguro à Distância – O Contrato Electrónico, Almedina, Coimbra, 2009.

[2] Em Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 6.ª edição, Almedina, 2019, p. 204 que, na nota 571, apresenta bibliografia relevante sobre este regime.