Encomendei um casaco. A caixa chegou vazia. E agora?

Doutrina

Propomos hoje no nosso blog um desafio simples do ponto de vista dos factos, mas complexo do ponto de vista do direito. Imaginemos que um consumidor encomendou um casaco através de um site e, no dia indicado, recebeu em sua casa a encomenda. Ao abrir a encomenda, verificou que a caixa estava vazia, não contendo qualquer casaco. Partamos do princípio de que a caixa se encontrava em perfeitas condições, não havendo sinais de ter sido aberta durante o transporte. O vendedor alega que o casaco foi colocado dentro da caixa e não quer enviar um novo casaco ao consumidor.

Tendo sido celebrado um contrato de compra e venda, o consumidor/comprador tem direito à entrega da coisa, neste caso o casaco. Desde logo, nos termos do art. 879.º-b) do Código Civil, um dos efeitos essenciais da compra e venda é “a obrigação de entregar a coisa”, a que corresponde o direito subjetivo do comprador a que esta lhe seja entregue. Também o art. 9.º-B da Lei de Defesa do Consumidor, que trata do prazo da prestação em contratos de consumo, estabelece que “o fornecedor de bens deve entregar os bens (…)”.

A primeira questão que se coloca neste caso consiste em saber qual das partes tem o ónus da prova da entrega (ou da não-entrega).

A regra geral do Código Civil (art. 342.º) é a de que “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”, enquanto “a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”.

O comprador invoca o direito à entrega, resultante da celebração do contrato de compra e venda, pelo que lhe cabe fazer prova da celebração do contrato e, se for o caso, de cláusulas específicas acordadas relativas à entrega.

Ao vendedor cabe fazer prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do comprador à entrega. Neste caso, cabe-lhe, portanto, provar que já entregou o casaco (ou dito de outra forma, que já cumpriu a obrigação de entrega), o que constitui um facto extintivo do direito à entrega.

Portanto, a prova da entrega incumbe ao vendedor.

Esta conclusão está longe de resolver o problema. A segunda questão é a seguinte: de que forma pode o vendedor provar que entregou o casaco? Bastará fazer prova do envio da encomenda? Já vimos que, no caso que estamos a analisar, a encomenda foi enviada e chegou ao seu destino. Relativamente a este aspeto, não há qualquer divergência entre as partes. Só que, segundo o comprador, nada estava dentro da caixa. Ou seja, está provado o envio de uma caixa, mas não o conteúdo dessa caixa. Temos aqui uma situação paralela à carta registada com aviso de receção, em que se prova o envio da carta, mas não necessariamente o seu conteúdo.

Nos termos do art. 607.º-5 do Código de Processo Civil, “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.

Esta análise terá de ser feita pelo julgador em cada caso, tendo em conta a prova produzida, mas é difícil não defender que se deduza do facto envio de uma encomenda o facto de que o conteúdo dessa encomenda é a coisa encomendada. Esta dedução desprotege, no entanto, o comprador a quem não tenha sido entregue o casaco.

Este caso revela como todo o sistema de contratação online se baseia em grande parte na confiança entre as pessoas. O problema começa nos casos em que as partes deixam de confiar e, nesse caso, os litígios podem ser impossíveis de resolver de forma justa e compreensível.

“Segunda chave do carro” – Comentário ao Ac. TRP, 20-02-2020, rel. Aristides Rodrigues de Almeida

Jurisprudência

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Resumo do caso

A situação fática colocada perante o tribunal foi a da celebração de um contrato de compra e venda de um automóvel, coligado com um contrato de mútuo celebrado entre o comprador do carro e uma instituição bancária. No momento da celebração do contrato, o vendedor do carro comprometeu-se a entregar uma segunda chave ao comprador, uma vez que não dispunha dela naquele momento. O comprador começou a utilizar normalmente o carro, até que este foi furtado. A segunda chave nunca chegou a ser entregue, pelo que o comprador exerceu o direito de resolução extrajudicial do contrato de compra e venda com base no incumprimento dessa obrigação, resolvendo ainda o contrato de mútuo com base na cessação daquele.

Questões interessantes do ponto de vista do Direito do Consumo

  1. Ónus de alegação e prova dos factos que permitem a qualificação do comprador como consumidor

Segundo as regras gerais, a alegação e prova dos factos que consubstanciam a qualidade de consumidor do autor cabem a este, na medida em que são factos que o beneficiam (art. 342.º-1 Código Civil). Ou seja, é ao autor que incumbe o ónus de alegar e provar, nomeadamente, a utilização que confere ao bem adquirido (art. 1.º-B-a) do DL n.º 67/2003), por forma a, dando-se como provado que esse uso é privado, gozar do estatuto de consumidor.

No entanto, convém esclarecer que o consumidor não tem o ónus de invocar esse estatuto/qualidade, ou seja, não tem de invocar as normas de direito (do consumo) aplicáveis ao caso, uma vez que é ao tribunal que incumbe a aplicação do direito, independentemente da configuração jurídica que as partes dão ao conflito (art. 5.º-3 do Código de Processo Civil). Este ponto foi salientado pelo TJUE, no Acórdão Faber (1), onde se pode ler que “o tribunal está obrigado, sempre que disponha dos elementos de direito e de facto necessários para tal ou deles possa dispor mediante mero pedido de esclarecimento, a verificar se o comprador pode ser qualificado de consumidor, ainda que este não tenha expressamente invocado essa qualidade”.

O próprio TRP reconheceu a mencionada jurisprudência europeia, não tendo, no entanto, considerado que dispunha dos elementos de facto suficientes para aferir essa qualidade do comprador do carro. Argumenta o tribunal, na fundamentação de direito, que o autor não se referiu ao uso destinado ao carro e que a natureza do bem (uma carrinha) não indicia por si só uma utilização privada do mesmo.

Parece-nos que o dever de averiguação do tribunal nacional reconhecido pelo TJUE não foi incumprido, na medida em que o ónus de alegação dos factos que sustentam a aplicação do direito do consumo ao litígio permanece na esfera do autor (art. 5.º-1 do CPC), ainda que de forma “atenuada”. Se o tribunal não considerou indiciada nas peças processuais  essa qualidade nem tal resultou da discussão em julgamento, não nos parece ser exigível ao tribunal o cumprimento de tal dever de pedido de esclarecimento, à luz dos princípios gerais do dispositivo e da autorresponsabilidade das partes.

2. Conceito de desconformidade do bem para efeitos de aplicação do DL n.º 67/2003

Após excluir a existência de um defeito no bem, nos termos do artigo 913.º CC, e bem assim afastar a aplicação do DL n.º 67/2003 pelas razões que vimos no ponto anterior, o TRP analisou, ainda assim, se o bem entregue pelo vendedor ao comprador em cumprimento do contrato era desconforme com este, nos termos da legislação de proteção do consumidor.

Recapitulando a factualidade em análise, sabemos que apenas no momento da entrega do veículo objeto do contrato é que o comprador se apercebeu de que não lhe seriam entregues duas chaves. Nesse momento foi convencionada essa entrega em momento posterior, constituindo-se tal obrigação.

Essa obrigação nunca chegou a ser cumprida, o que implica a conclusão de que o bem entregue não corresponde completa e perfeitamente ao que foi convencionado pelas partes. É precisamente este um dos pontos em que o art. 2.º-1 do DL n.º 67/2003 se revela mais protetor da posição jurídica do comprador do que o regime geral do Código Civil. O conceito de “desconformidade” daquele diploma é mais abrangente do que o “defeito” previsto no regime do contrato de compra e venda civil.

Não aderimos também à argumentação do TRP quando invoca o conhecimento do facto no momento de entrega do bem para afastar a existência de uma desconformidade relevante (nos termos do art. 3.º-2 do DL n.º 67/2003). É que, como vimos, foi precisamente no momento de entrega do carro que o conteúdo do contrato se alterou/clarificou e em que se constituiu uma obrigação de entrega (da segunda chave) complementar.

Concluímos, portanto, que se o TRP houvesse entendido estar perante um contrato de consumo, deveria considerar existir uma desconformidade entre o bem entregue e o convencionado entre as partes, nomeadamente porque um dos elementos do objeto do contrato, a segunda chave, não havia sido entregue.

O que ficou dito não implica que se defenda a legitimidade do exercício de resolução, como melhor veremos no ponto 3).

3. Direito de resolução do contrato em casos de “incumprimento insignificante”

Como vimos, o comprador do carro pretendia ver reconhecido judicialmente o direito de resolução do contrato, alegando o incumprimento da obrigação de entrega da segunda chave do carro como fundamento. Considerando tal pedido improcedente, o tribunal entendeu que o incumprimento de tal obrigação acessória era insignificante no contexto global do contrato, não admitindo um remédio tão drástico (arts.  802.º-2 e 762.º-2  do CC). Salientou também que o vendedor não se encontrava ainda em incumprimento definitivo por não ter sido convencionado prazo para o prazo para a entrega da chave nem ter sido realizada a interpelação admonitória (arts. 805.º- 1 e 2-a) e 808.º CC), nem tão pouco se poderia alegar a perda objetiva de interesse na prestação devido ao furto do carro ocorrido na pendência da situação de mora do vendedor, na medida em que o artigo 808.º CC exige que essa perda de interesse seja resultado da própria mora e não de um evento exógeno, como é o caso (furto do carro).

Aderindo no essencial à fundamentação do tribunal, interessa-nos perceber se a solução seria idêntica caso fosse aplicável o DL n.º 67/2003 (que, como vimos no ponto 1), não era).

Ora, a resposta à pergunta parece-nos ser positiva. Ainda que entendamos, como explanado no ponto 2), existir uma desconformidade entre o bem entregue e o convencionado, não podemos deixar de concordar que, no contexto global do contrato, tal desconformidade seria mínima.

Ora, ainda que não exista qualquer hierarquia entre os direitos conferidos ao consumidor pelo art. 4.º do DL n.º 67/2003, seria manifestamente exagerado recorrer à resolução do contrato para reagir a tão mínimo incumprimento, configurando-se tal pretensão como abuso de direito (nos termos dos arts. 4.º-5 do DL 67/2003 e 334.º do CC).  Assim, parece-nos que seria mais adequado ao caso a redução do preço pago pelo comprador correspondente ao preço de aquisição de uma segunda chave.

Notas

(1) Acórdão TJUE de 04-06-2015, no processo C-497/13