Covid-19 e os espetáculos artísticos – Decreto-Lei n.º 10-I/2020

Legislação

Os contornos e o alcance da crise que estamos a atravessar são ainda desconhecidos, mas temos assistido nas últimas semanas a um grande número de intervenções legislativas que visam regular as relações de consumo.

Um dos primeiro diplomas aprovados neste domínio diz respeito a espetáculos de natureza artística não realizados devido à crise pandémica em curso.

Nos termos do art. 9.º-1-a) do Decreto-Lei n.º 23/2014, de 14 de fevereiro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 90/2019, de 5 de julho, “o promotor do espetáculo constitui-se na obrigação de restituir aos espectadores a importância correspondente ao preço dos bilhetes” no caso de “não realização do espetáculo no local, data e hora marcados”. Esta obrigação de restituir constitui-se independentemente da razão pela qual o espetáculo não se realizou, correndo, assim, o risco por conta do promotor. É o que resulta de forma clara, numa interpretação a contrario sensu, do n.º 2 do mesmo preceito, que determina que o promotor não tem de restituir a importância correspondente ao preço dos bilhetes em caso de interrupção do espetáculo se esta resultar de “motivo de força maior verificado após o início do espetáculo”.

Se não existisse esta norma especial, aplicar-se-ia o regime resultante do Código Civil. No caso de um espetáculo, o prazo encontra-se estipulado pelas partes (integrado no contrato, em regra, na sequência da sua inclusão na proposta contratual emitida pelo promotor, a qual é depois objeto de aceitação por parte do consumidor), sendo um elemento essencial do contrato. Não podendo o promotor cumprir a sua obrigação por motivo que não lhe é imputável, teremos uma situação de impossibilidade objetiva, que determina a extinção da obrigação (art. 790.º do Código Civil). Sendo o contrato sinalagmático, fica neste caso o consumidor “desobrigado da contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa” (art. 795.º-1 do Código Civil). Da remissão para o regime do enriquecimento sem causa poderá eventualmente resultar que o promotor não tenha de proceder à restituição por inteiro. No entanto, sendo liberado de uma dúvida, verifica-se um não-empobrecimento (poupança) do promotor do espetáculo com as despesas relativas a este. O promotor teria, assim, sempre, se se aplicasse o regime geral do Código Civil, de restituir um valor próximo daquele que foi pago pelo consumidor.

Ora, o Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, alterado pela Lei n.º 7/2020, de 10 de abril, veio estabelecer medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia da doença Covid-19 no âmbito cultural e artístico, em especial quanto aos espetáculos não realizados.

Nos termos do art. 2.º-1. o diploma aplica-se aos “espetáculos não realizados entre os dias 28 de fevereiro de 2020 e até 90 dias úteis após o término do estado de emergência”. No momento da publicação deste texto, ainda não terminou o estado de emergência, pelo que não é possível perceber ao certo a que período se aplica o regime excecional.

Aos espetáculos não realizados neste período não se aplica, assim, o art. 9.º-1-a) do Decreto-Lei n.º 23/2014, pelo que o portador do bilhete não pode exigir de imediato a restituição da importância correspondente ao preço dos bilhetes.

A regra geral prevista no art. 4.º-1 do Decreto-Lei n.º 10-I/2020 é a do reagendamento do espetáculo. Pode ler-se no preâmbulo que, “em primeiro lugar, os espetáculos não realizados devem, sempre que possível, ser reagendados, devendo todos os agentes culturais envolvidos na realização do espetáculo intentar todos os esforços para a sua concretização, segundo as regras da boa fé”.

O espetáculo terá de ocorrer no prazo máximo de um ano após a data inicialmente prevista (art. 4.º-2), admitindo-se a mudança do local, da data (naturalmente, sendo esta mudança o pressuposto do regime) e da hora (n.º 3).

Quanto ao local, a alteração “fica limitada à cidade, área metropolitana ou a um raio de 50 km relativamente à localização inicialmente prevista” (n.º 4). Apesar de não ser claro o sentido da alternativa introduzida neste preceito, parece-nos que a interpretação mais adequada, tendo em conta a letra do preceito e sem discriminar em função de o espetáculo estar marcado ou não para uma cidade, consiste em fazer prevalecer o critério da distância, não podendo o espetáculo ser marcado para um local a mais de 50 km do local inicialmente previsto.

Não pode ser aumentado o preço nem cobrado qualquer valor ao consumidor relativo à substituição do bilhete (n.os 7 e 8).

O promotor só deve cancelar o espetáculo se não for possível o reagendamento do espetáculo, devendo restituir integralmente o preço a quem for portador de bilhete (art. 5.º).

O art. 6.º coloca a hipótese de substituição do espetáculo, mas o efeito desta norma é muito reduzido, uma vez que não se trata de um direito potestativo do portador do bilhete, mas de uma solução que pode ser obtida por acordo entre as partes. Assim, se o portador do bilhete pedir a substituição por outro espetáculo, “os agentes podem proceder à substituição do bilhete” (itálico nosso), não estando, portanto, vinculados a fazê-lo. Ora, por acordo, além desta, qualquer outra solução é admissível.

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