Ac. STJ 10-12-2019, rel. Nuno Pinto Oliveira
Sumário
“I. O condomínio deve ser considerado como um consumidor desde que uma das fracções seja destinada a uso privado.
II. A relação entre empreiteiro e comprador deve considerar-se como uma relação de consumo desde que o empreiteiro conhecesse, ou devesse conhecer, o fim do dono da obra de dividir o edifício em fracções autónomas e de vender cada uma das fracções autónomas a consumidores.
III. Em relação aos defeitos das partes comuns do edifício, o prazo de garantia do art. 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril deverá contar-se a partir da constituição da administração do condomínio.
IV. Em relação aos defeitos das partes próprias, das fracções autónomas, o prazo deverá contar-se a partir da entrega da coisa ao primeiro adquirente — ao primeiro comprador / consumidor — de cada uma das fracções.”
Anotação
Inauguro a minha participação neste blog abordando um tema que me é já familiar, a questão do “condomínio-consumidor”, tema da minha tese de mestrado (1). Faço-o a propósito do comentário a um acórdão do STJ que aborda a mesma temática.
Centrando-nos no aresto, são duas as questões jurídicas alvo de análise nesta anotação:
i) Quando se inicia a contagem dos prazos (dies a quo) de caducidade do exercício dos direitos dos condóminos quanto aos defeitos detetados nas partes comuns do edifício;
ii) Se, e em que condições, deve o condomínio considerar-se consumidor para efeitos do DL n.º 67/2003 (venda de bens de consumo e garantias).
Quanto à primeira das questões, a decisão segue a doutrina maioritária do Supremo, entendendo que a contagem dos prazos de reação face aos defeitos detetados nas partes comuns do edifício apenas deve iniciar-se no momento da constituição da administração do condomínio, ou seja, quando a assembleia de condóminos se reúne pela primeira vez e elege o administrador, e não quando são vendidas a primeira ou a última fração autónoma do edifício, nem tão-pouco quando no momento em que a obra é entregue pelo empreiteiro/construtor do prédio ao dono da obra/vendedor das frações.
Quanto à segunda problemática, como consta do sumário, o Supremo defendeu que para o condomínio beneficiar da proteção acrescida conferida pelas normas de direito do consumo basta que um dos condóminos haja adquirido a sua fração para a destinar a um uso privado (neste caso, habitação própria). É esta também a tese que defendemos na nossa tese de mestrado, no desenvolvimento do que é apontado por Jorge Morais Carvalho no seu Manual (2).
Uma última nota para destacar o raciocínio desenvolvido no acórdão que permite ao condomínio (autor) a dedução da sua pretensão contra o vendedor da fração e, em simultâneo, contra o construtor do prédio/empreiteiro. Dado que o conceito de consumidor é um conceito relacional, ou seja, depende da existência de uma relação entre um consumidor e um profissional, enquanto a qualificação do contrato entre vendedor e comprador da fração como contrato de consumo é pacífica, já não o será a relação entre este e o construtor do prédio. Em rigor, nem sequer existe uma relação contratual entre estes, mas a jurisprudência do STJ (3) vem entendendo que se deve ficcionar uma relação de consumo quando o empreiteiro conheça ou deva conhecer o fim do dono da obra de dividir o edifício em frações autónomas e vendê-las a consumidores. Este entendimento funda-se no espírito de proteção especial do consumidor e na consideração da elevada experiência técnica e negocial dos empreiteiros.
Notas
(1) O Condomínio e as Relações de Consumo: Um Teste à Elasticidade do Conceito de Consumidor, Julho 2019, publicada no Anuário do NOVA Consumer Lab, Ano I, 2019, disponível no site do NOVA Consumer Lab
(2) Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 2020
(3) Além do acórdão em análise, veja-se o Ac. STJ de 17-10-2019, rel. Oliveira Abreu