Por Nuno Sousa e Silva
Este texto apresenta uma breve reflexão sobre o regime de responsabilidade dos prestadores de serviços da sociedade da informação na proposta de Regulamento “Ato dos Serviços Digitais” (doravante “Proposta”). Para uma panorâmica da Proposta veja-se aqui, e, especificamente sobre a regulação das grandes plataformas, aqui.
A Diretiva do comércio eletrónico (transposta em Portugal pelo DL 7/2004, de 7 de Janeiro) tem mais de 20 anos, o que, tendo em conta a dinâmica da Internet equivalerá a mais de um século de existência. Quando esta Diretiva foi aprovada não conhecíamos o Facebook, o Youtube, o Whatsapp, o Flickr ou o Uber, e a Netflix e a HBO ainda não ofereciam serviços de streaming. A Internet teve uma evolução mais rápida que a cidade de Xangai, onde antes existiam barracas e descampados estão agora arranha-céus. Não obstante, a Diretiva foi um sucesso. Os seus princípios aguentaram bem o teste do tempo e as transformações que este trouxe. Apesar disso, há um consenso quanto à necessidade de atualizar o quadro normativo aplicável. A vida contemporânea depende mais intensamente da Internet e o ciberespaço mudou muito.
Os Estados-Membros foram adaptando as suas regras, procurando responder a alguns destes desafios, o que, naturalmente, levou a uma certa fragmentação das regras, indesejável do ponto de vista do mercado único.[1] Nessa linha, a forma mais eficaz de evitar competência regulatória/dumping passa pela intervenção da União Europeia. Nesta Proposta isso é levado muito a sério, até porque também se centraliza o enforcement.
Como refere o art. 1.º/1 da Proposta, esta lida essencialmente com três aspetos: a) as isenções de responsabilidade de intermediários; b) os deveres dos intermediários, que variam de acordo com a sua categoria e dimensão e c) a supervisão e tutela relativamente a estas regras. Vou concentrar-me no primeiro.
Em relação às isenções de responsabilidade (mas não de deveres) a Proposta reconhece o valor da Diretiva do comércio eletrónico, replicando, no essencial, os seus arts. 12.º a 15.º, nos arts. 3.º (simples transporte), art. 4.º (armazenagem temporária – “caching”), 5.º (armazenagem principal – “hosting”) e 7.º (ausência de obrigação geral de vigilância) respetivamente. Por isso mesmo, o art. 71.º da Proposta prevê a revogação dos arts. 12.º a 15.º da Diretiva. O remanescente, nomeadamente a cláusula do mercado interno e as regras relativas à conclusão de contratos mantêm-se em vigor (ainda que, à luz da Proposta, haja alguma relativização do princípio do país de origem).
Em geral as regras básicas de isenção de responsabilidade dos intermediários permanecem inalteradas. O art. 6.º esclarece que a adoção voluntária de medidas de fiscalização por parte dos intermediários não afasta a isenção de responsabilidade.
Uma relevante novidade, animada por uma ideia de tutela da confiança/aparência, é a exclusão da isenção de responsabilidade “nos termos da legislação de defesa do consumidor de plataformas em linha que permitam aos consumidores celebrar contratos à distância com profissionais, sempre que tal plataforma em linha apresente o elemento específico de informação ou permita de outra forma que a transação específica em causa leve um consumidor médio e razoavelmente bem informado a acreditar que a informação, ou o produto ou serviço objeto da transação, é fornecida pela própria plataforma em linha ou por um destinatário do serviço que atue sob a sua autoridade ou controlo” (art. 5.º/3). O objetivo é abranger aqueles casos em que as empresas, além de venderem produtos ou prestarem serviços diretamente também gerem “marketplaces”, permitindo a terceiros oferecer os seus produtos ou serviços na sua página. Este artigo colocará, para ser aplicado, um problema da qualificação – porque é que esta regra está limitada às regras de defesa do consumidor? Pode ser uma questão de competência da UE, mas não creio que seja a melhor solução.
Além disso, há pequenas nuances que podem ou não ser relevantes. Na Diretiva do comércio eletrónico falava-se em atividade ilegal ou informação ilegal, agora fala-se em conteúdo ilegal (ver considerando 12, que o concretiza dando exemplos muitos diferentes, desde o discurso de ódio, noção que me parece muito difícil de concretizar, à pornografia infantil). Haverá uma diferença?
Chegou a ser discutida, e na posição do PPE volta a fazer-se a proposta, de incluir também obrigações relativas a conteúdo nocivo (“harmful content”). Se definir conteúdo ilegal já não é fácil, bem mais difícil será saber o que é conteúdo nocivo. A meu ver, certas músicas ou programas de televisão muito populares cairiam facilmente nessa categoria…
Acresce ainda, obviamente, o tema das fake news, que toda a gente concorda serem um problema (deep fakes e, mais insidiosos, os shallow fakes), mas o consenso acaba aí. Aliás, será sequer possível traçar uma fronteira entre o que é diferença factual e diferença de opinião? O que é que são factos? Muito daquilo que há vinte anos eram factos ou pelo menos consensos em vários domínios científicos estão hoje em dia ultrapassados. Com efeito, como é que a ciência avançou? Graças à liberdade de expressar opiniões “contra-factuais”. O dissenso é uma fonte de progresso de inexcedível importância.
Não por acaso, na Proposta há alguma preocupação com a salvaguarda da liberdade de expressão e de criação. Nesse sentido, o considerando 47 e o art. 20.º parecem equilibrados ao referir a necessidade de o conteúdo ser manifestamente ilegal ou de as denúncias serem manifestamente infundadas para os intermediários poderem (respetivamente) remover ou suspender um utilizador. No entanto, não parece que haja qualquer exigência de carácter evidente ou manifesto da ilegalidade do conteúdo para que se afaste a isenção de responsabilidade prevista no art. 5.º. Creio que essa qualificação deveria existir.
Se eu escrever na minha página do Twitter ou Facebook “Miguel Sousa Tavares é um palhaço”.[2] Isto é conteúdo ilegal? Pode ser, mas certamente não será manifestamente ou claramente ilegal.
Há quem proponha que não deve haver diferença entre o online e o offline. A dificuldade está em encontrar as equivalências certas. O jornal que publique um artigo em que eu escreva as palavras “Miguel Sousa Tavares é um palhaço” será responsável por isso? Devemos tratar de forma igual um editor de um livro ou de um jornal e quem gere uma plataforma? Não é certamente igual um jornal que tem controlo editorial sobre um número limitado de conteúdos e uma plataforma que recebe e aloja centenas de conteúdos por segundo. E, mesmo quanto ao regime, não é claro que os editores sejam e devam ser responsáveis pela informação que publicam.
Há um fascinante caso norte-americano de 1991 – Winter v. Putnam – relativo à responsabilidade do editor de um livro sobre cogumelos que continha erros graves e que, por isso, causou o envenenamento de alguns leitores. Mesmo assim, em atenção à liberdade de expressão, o editor não foi considerado responsável. Esta talvez seja uma postura extrema (até porque o livro seria um produto defeituoso), mas a decisão parte da valorização do discurso e da liberdade.
Há um risco de consequências imprevistas ou de distorção dos objetivos desta Proposta – quanto mais severos formos com os intermediários, maior o perigo para os pequenos negócios e para os cidadãos. Se os incentivos não estiverem devidamente alinhados, isto pode facilmente levar ao empobrecimento do discurso, da diversidade cultural e em última análise da democracia.
Nesse sentido, a Eurodeputada Christel Schaldemose já sublinhou que não se devem equiparar as plataformas a editores e que devemos distinguir aquelas que se dedicam à venda de produtos (“marketplaces”), daquelas que promovem e alojam discurso. O debate ainda está a começar, mas promete ser animado.
[1] Cfr. o estudo de Jan Bernd Nordemann https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2020/648802/IPOL_STU(2020)648802_EN.pdf e, mais recente, o estudo de Andrea Bertolini https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2021/656318/EPRS_STU(2021)656318_EN.pdf (sublinhando a complexidade regulatória emergente, mesmo no Direito Europeu).
[2] https://www.publico.pt/2013/07/02/sociedade/noticia/mp-arquivou-processo-de-cavaco-contra-miguel-sousa-tavares-1598996